O que as ciências médicas aprenderam com a pandemia de covid-19
Ao longo da história, diferentes áreas da ciência foram fundamentais para lidar com problemas de saúde e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Paulo Saldiva, médico patologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), lembra que por muito tempo os sanitaristas, os projetos de planejamento urbano e os serviços de higiene pública foram muito mais eficientes em lidar com doenças do que a medicina. Esse quadro só se altera na segunda metade do século XIX, quando as ciências médicas passam a acumular importantes descobertas no laboratório. “Foi a descrição das doenças sob o microscópio, as vacinas e o antibiótico que aumentaram muito a expectativa de vida e a capacidade de lidarmos com as doenças”, afirma.
Durante a pandemia de covid-19, a CT&I foi essencial para o sequenciamento do DNA do vírus e o desenvolvimento de vacinas. O enfrentamento da pandemia deixará alguns legados para as ciências médicas. Um deles é a tecnologia envolvida no desenvolvimento da vacina de RNA mensageiro. Ela permite que as vacinas carreguem uma parcela do código genético do vírus que contém a “receita” para a produção de proteínas. Munidas dessas instruções, as células humanas são capazes de produzir proteínas que constituem o vírus. São essas proteínas estranhas ao nosso corpo que estimulam o sistema imunológico a produzir anticorpos capazes de combatê-las. Saldiva prevê que essa nova tecnologia possibilitará não somente o desenvolvimento de vacinas mais eficazes para diversos agentes infecciosos, mas também a criação de terapêuticas contra doenças como o câncer: “poderemos ativar o sistema imune contra proteínas específicas expressas pelas células tumorais. Será possível inclusive desenhar um remédio específico para aquele câncer daquele indivíduo”.
No entanto, o pesquisador pondera que esses avanços possivelmente beneficiarão apenas parcelas mais ricas da população mundial: “A pandemia também mostrou que embora a ciência possa muito, nós ainda não chegamos a uma solução para o dilema que acompanha o desenvolvimento tecnológico: essas novas tecnologias são desenhadas para quem mais precisa ou somente para quem pode pagar por elas? Teremos que decidir o quanto da ciência médica é commodity e o quanto da ciência médica é um bem comum.”
“Durante a pandemia de covid-19, a CT&I foi essencial para o sequenciamento do DNA do vírus e o desenvolvimento de vacinas.”
O epidemiologista Pedro Hallal, professor do Departamento de Ginástica e Saúde da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), acredita que essa é uma das principais questões que precisam ser enfrentadas pelas ciências médicas. A indústria curativa e individualizada ainda é muito mais potente do que a indústria coletiva e preventiva, e isso sobrecarrega os sistemas de saúde nacionais, que não conseguem fazer frente a problemas que já enfrentamos hoje e enfrentaremos ainda mais no futuro, como doenças crônicas e epidemias. “A saúde brasileira está muito mais preparada para lidar com pessoas doentes do que com populações doentes. É essa a lógica que precisa mudar. A CT&I precisa inverter essa pirâmide e investir mais em prevenção e promoção de saúde, e menos em tratamento”.
Outro legado da pandemia para as ciências médicas é a experiência adquirida em vigilância genômica, que permite o monitoramento ágil de mutações e variantes de agentes infecciosos. Os esforços de vigilância genômica mobilizados no enfrentamento dessa pandemia foram inéditos. As epidemias e pandemias do passado, quando comparadas a de covid-19, se espalharam lentamente, de modo que não tínhamos até então um modelo de monitoramento e resposta rápida para mutações e variações de agentes infecciosos. “Basta lembrarmos que foi preciso mais de 100 anos para que a epidemia de cólera atingisse todos os continentes. Foi preciso inventar o navio a vapor, o Canal de Suez e o Canal do Panamá”, aponta Saldiva. Hoje, com o adensamento populacional e o mundo interconectado, a vigilância global e rápida será cada vez mais fundamental.
Figura 1. Sequência completa do genoma do coronavírus, feito no Instituto Pasteur (Paris), usando uma plataforma única (P2M), aberta a todos os Centros Nacionais de Referência franceses.
(Imagem por: Instituto Pasteur/ CNR de vírus de infecção respiratória. Reprodução)
A principal barreira para a vigilância genômica eficaz é a desigualdade econômica entre os países. Em um cenário ideal, todos os países precisariam ter infraestrutura e profissionais especializados para sequenciar as amostras do agente infeccioso que circula em seu território. Estamos muito longe dessa realidade hoje. Poucos países apresentam esse tipo de autonomia de sequenciamento e isso é grave, pois, como visto na pandemia de covid-19, quanto mais cedo se descobre uma mutação ou variante, melhor – e elas podem ocorrer em qualquer país.
Gulnar Azevedo e Silva, professora do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), acredita que a cooperação entre países precisa avançar muito para que possamos atingir um nível de vigilância genômica melhor no futuro: “o mundo é globalizado e são enormes as desigualdades entre países e dentro deles. O apoio a países pobres que ainda encontram grande dificuldade de criar e manter seus sistemas de informação deve se dar a partir da cooperação internacional e a troca de experiências. Ainda é grande o caminho a ser feito pelas agências multilaterais no sentido de que este processo ocorra em todos os países.”
Aliados digitais
Na década de 1950 o conhecimento médico duplicava a cada 50 anos. Em 1980 esse número caiu para sete anos, e hoje ele duplica em poucos meses. O fluxo e o volume de conhecimento ultrapassou tanto a capacidade humana de absorvê-lo que se quisermos acompanhá-lo em tempo real, será preciso contar cada vez mais com o auxílio das máquinas. A ciência de dados se tornará tão importante para as ciências médicas que já é esperado o desenvolvimento de algoritmos tanto preditivos quanto diagnósticos e mesmo terapêuticos.
“A pandemia também mostrou que embora a ciência possa muito, nós ainda não chegamos a uma solução para o dilema que acompanha o desenvolvimento tecnológico: essas novas tecnologias são desenhadas para quem mais precisa ou somente para quem pode pagar por elas?”
Sobre a presença cada vez mais ubíqua de sistemas de dados e inteligência artificial (IA) no exercício da medicina, Hallal acredita que devem ser utilizados para antecipar problemas, e não resolvê-los após aparecerem: “Ficou nítido durante a pandemia de covid-19 que, muitas vezes, lidávamos com o eco dos problemas ao usarmos informações de mortes ao invés de casos novos, por exemplo”. Outro problema apontado por Silva é relativo ao processo de coleta destes dados, que precisa ser aprimorado para que os algoritmos possam nos fornecer informações mais precisas: “é necessário a disponibilidade de dados de qualidade para que os modelos possam predizer de forma mais acurada os desfechos em saúde. Portanto, o investimento em sistemas de informação com base em dados reais e de qualidade deve estar entre as prioridades das políticas de saúde.”
Uma preocupação recorrente ao discutir esse assunto é a possibilidade dos algoritmos tornarem a medicina menos humana. Saldiva acredita que não corremos esse risco. Pelo contrário: o pesquisador acredita que a ciência de dados e a IA irão libertar os médicos, que deixarão de ser repositórios de conhecimento para se tornarem profissionais mais completos e empáticos. “Liberando espaço, você se dedica a outras coisas […] Vamos poder dar atenção a outros domínios na área da saúde que pertencem ao campo das humanidades: o exercício da alteridade, de se colocar no lugar do outro, desenhar uma perspectiva de tratamento que se adeque a valores, crenças e possibilidade econômicas de cada um. Eu prevejo que o futuro da medicina vai incorporar necessariamente um grande conteúdo de humanidades”, diz.
Figura 2. Inteligência artificial será aliada de médicos e pacientes no diagnóstico, na prevenção e no tratamento de doenças
(Imagem por Fusion Medical Animation. Unsplash.com. Reprodução)
Do laboratório para as mídias
O enfrentamento da pandemia de covid-19 demandou — ou catalisou — uma mudança no paradigma comunicacional entre pesquisadores e sociedade. Hoje podemos acompanhar pesquisadores por meio de seus perfis pessoais e profissionais em redes sociais e também em novas plataformas de mídia, como podcasts e canais de vídeo. Hallal avalia positivamente essa comunicação direta do pesquisador com a população, sem a necessidade de intermediários. “A CT&I se reinventou durante a pandemia no que se refere a comunicação: os pesquisadores tiveram que aprender a se comunicar diretamente com a população, especialmente por meio da mídia, em detrimento a um modelo antigo em que os pesquisadores se comunicavam prioritariamente com seus pares. Essa mudança veio para ficar”.
“O investimento em sistemas de informação com base em dados reais e de qualidade deve estar entre as prioridades das políticas de saúde.”
Tal mudança, inclusive, pode ser provar uma importante arma para o combate à desinformação, um mal que não é novo, mas que, com as redes sociais, se tornou muito maior e capaz de eclipsar esforços e conquistas da ciência. “Temos vacinas para pólio há mais de 70 anos, mas a pólio está voltando. Teremos que lidar e entender os fatores que impedem que as pessoas utilizem essa vacina, que vão além da questão econômica e tecnológica. Pertencem a valores culturais”, alerta Saldiva.
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