Pensamento grego impactou significativamente meios acadêmicos e sociais e continua estimulando a reflexão
“A Grécia é para nós um gérmen: nem um modelo,
nem um espécime entre outros, mas um gérmen.”
(Cornelius Castoriadis, 1987)[1]
Com esta frase, o filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis (1922-1997) equacionou séculos de relacionamento histórico com a Grécia, do mundo romano às várias vagas neoclássicas modernas, alcançando também nossos meios acadêmicos e sociais. Por um lado, recusa-se a idealização que predominou até Nietzsche, por outro, evita-se a redução da cultura grega à condição de similaridade formal com qualquer cultura. Ciente destes embates, a interpretação da memória clássica avança e perpetua um diálogo que jamais se esgota, onde as fontes antigas conferem solidez à formação cultural e à aquisição de linguagens, conceitos, teorias e métodos e, estrategicamente, alimentam a reflexão necessária e dão potência à incidência social das ideias. Nesses processos, atuam modos dinâmicos de pensar o passado, ampliados por metáforas do método: arqueologia, origem, causa e fundamento, para pensarmos a fonte causal portadora de memória, a potência que rege por anterioridade, e gérmen, genética e genoma, para compreendermos que aquela memória codificada pode vir-a-ser a qualquer momento, como fenômeno do mundo atual. A história grega não está soterrada, mas plantada em adubo do tempo, pronta para rebrotar, regada pelas ideias e demandas de cada era.
Homero e a superação de paradigmas
Por seu compromisso com a memória ancestral, com as formas do mito e com um modelo de sociedade aristocrática, Homero (século IX a.C.) tornou-se o monumento ideal para gerações de vanguarda contraporem-se e formularem novos paradigmas, para gregos e para a humanidade sua herdeira. A primeira grande contestação a Homero foi comportamental e estética, na obra de poetas como Safo (630-570 a.C.), mulher que compôs uma nova música animada por sexualidade autônoma e plena.[2] O núcleo do legado grego é pagão e erótico, e identifica-se com personalidades divergentes, seguras de si e plenas de vitalidade. Esse ethos aparece também nos versos iconoclastas de novos guerreiros, hoplitas, donos de suas armaduras e de seus destinos, como Arquíloco de Paros (712-648 a.C.), prontos para desdenhar as estruturas de poder tradicionais.[3] Nossa relação com a poesia lírica e com aquele mundo de criações admiráveis em todas as artes é ética e estética, com o encanto de obras-primas geradas por mentes e atitudes insurgentes. (Figura 1)
Figura 1. Busto de Homero, tipo de Epimênides. À época de Homero, séc. IX a.C., não havia retrato na arte grega. Eis uma imaginação tardia do rapsodo cego, cuja obra foi o paradigma central da cultura grega.
(Cópia romana de original grego do século V a.C.. Exposto na Glyptotek de Munique. Reprodução)
Foi nessa época arcaica (séculos VII-VI a.C.), entre a obra de Homero e o apogeu clássico (séculos V e IV a.C.), tempo de crise social, que se elaboraram os marcos da revolução cultural grega. Além da nova poesia (erótica ou lírica), desenvolveram-se as religiões de mistérios, movimentos religiosos em contraponto ao credo olímpico, na era que viu surgir a pólis, regida por leis pactuadas, e também novas tecnologias, como a escrita (750 a.C.) e a moeda (século VII a.C.). Nesse cenário de transformações, ergueu-se a fortaleza mais possante da história do conhecimento, a filosofia, em Mileto, onde Tales (dito “o fenício”, 625-558 a.C.) predisse com sucesso o eclipse de 28 de maio de 585 a.C.. Fazendo bom uso da fecunda herança oriental, de astronomia e geometria, o primeiro filósofo fez da análise empírica um novo fundamento para o conhecimento, um mudo de evidências, associado ao poder de teorias lógicas. Na escola de Mileto floresceu por séculos o racionalismo especulativo, aplicado a cosmos, cidade e corpo, e da filosofia proveio a etiologia – análise da aitia, causa.
“A interpretação da memória clássica avança e perpetua um diálogo que jamais se esgota, onde as fontes antigas conferem solidez à formação cultural e à aquisição de linguagens, conceitos, teorias e métodos.”
Thauma
No diálogo Teeteto, e em outras passagens, Platão (427-367 a.C.) faz Sócrates declarar que “o espanto (thauma) é único princípio da filosofia” (155d); Aristóteles (384-322 a.C.), pensando em qual fator gera um filósofo, diz: “todos começam espantando-se de que todas as coisas são como são.”[4] Há no pensar grego o vigor de atos inaugurais, que desvelam conceitos para edificar visões complexas sobre o mundo, a vida, a sociedade, o indivíduo e seus dilemas. Naquela coleção de espantos, lemos a gênese vigorosa de ideias fundamentais, o glossário dos conceitos com que se pode examinar o que importa, em qualquer era. Com a compreensão do princípio de ordem – logos, avançamos para examinar o fundamento que é também origem com poder para ordenar (arché) ou, como fez Anaximandro (610-547 a.C.), movemo-nos para a análise do ápeiron (ilimitado) ou das aporias (perplexidades) que inquietaram Platão em seus diálogos de maturidade. Desde Tales e sua proposta física, tó hydor – a água – para examinar o mundo por critério empírico, aqueles filósofos nos fizeram ver que o conhecimento depende de evidência (tekmérion), para com isso compreendermos o fundamento seguro que desloca o mito em favor de saberes determinados e comprovados. Com esse critério formal, a evidência, nutriu-se o direito, a medicina, a história e todas as ciências beneficiadas pela análise objetiva de fenômenos, em uma sociedade em que a norma (nómos) escrita se impôs como patrimônio coletivo para dar segurança ao convívio e seus conflitos. Que bela lição para nós, que temerariamente recuamos para as fantasias por vezes terríveis do mito, desdenhando o valor elementar das provas e sua análise lógica para estribar cada diagnóstico ou sentença – mormente as que podem alterar o destino de muitas vidas e de uma nação. (Figura 2)
Figura 2. Esfinge em bronze, um dos três pés de largo recipiente, de c. 600 a.C. A Grécia antiga é também esfinge enigmática: ou a deciframos, ou a ignorância nos devora.
(Acervo do Metropolitan Museum of Art – MET. Reprodução)
Nómos e isonomia
O exame do nómos – norma, convenção ou lei (também modo musical) – leva-nos ao quadro histórico mais importante do mundo grego, a elaboração de juízos sobre a natureza da lei e suas transformações na vida em sociedade. Partimos, então, da crítica social aguda, apresentada pelo último épico, Hesíodo (século VII a.C.), em “Os trabalhos e os Dias”.[5] Escrito em era de luta civil e penúria, o texto mostra a indignação do autor com seu irmão, Perses, e com reis-juízes “comedores de presentes” (doróphagoi), cuja iniquidade produz mal para todos – inclusive para quem julga beneficiar-se de injustiças. Então o poeta antepõe o prefixo dys (torto, deformado) e forma a palavra que expressa a lei deturpada, de juízes corruptos e homens indevidamente ambiciosos, a disnomia, grande mal moral e social. Algumas décadas após Hesíodo, Sólon de Atenas (638-558 a.C.), legislador (nomotheta) que encaminhou Atenas para sua modernização política, retomou a palavra nómos para pensar a boa norma que poderia conter a arrogância (hybris) dos poderosos e levar ao equilíbrio na polis, a eunomia, boa norma (prefixo eu), nome de um de seus poemas, em que se cantava e dançava regra amigável para a pólis.[6] (Figura 3)
Figura 3. Planta de Priene, cidade grega na Ásia menor (atualmente Turquia), no vale do rio Meandro. Na encosta do monte Mykale, no século IV a.C., implantou-se a cidade ideal, expressão do racionalismo de Mileto, consagrado na obra do urbanista Hipódamos de Mileto (498-408 a.C.), referências ainda vivas em nossa cultura e em nossas cidades.
(Imagem de Griechische Stadeanlagen, Wellcome. Reprodução)
Duas gerações após as reformas de Sólon (594 a.C.), quando Atenas superou a tirania e avançou para sua revolução política, na reforma de Clístenes (510-508 a.C.), agregou-se a nomos o prefixo iso para designar o regime em que se trataria da equalização da sociedade por via jurídica – a isonomia, termo com que os gregos designaram o que nós chamamos democracia, e tomamos por modelo sem lhe observar corretamente fundamentos e potências. A palavra democracia, utilizada pela primeira vez somente em 424 a.C., quando o regime já vivia crises severas, designava soberania popular, motor da isonomia. Esta palavra, contudo, além da matriz jurídica, implicava também a dimensão política da assimetria econômica, os conflitos entre ricos e pobres, e o imperativo de achar-se solução harmônica, para o bem de todos, na pólis. É preciso pensar a natureza e o poder de boas leis (eunomiai) para reformas sociais que solucionem conflitos, e não para regras deformadas que ampliem iniquidades (disnomia), como ocorre nas manipulações ideológicas em se agravam a violência e a miséria.
Da isonomia (democracia) clássica, resta-nos aprender o modo ousado com que mobilizavam o conjunto de cidadãos, por meio de sorteios e muitas atribuições cívicas para todos, algo que tangenciamos, no Brasil, na experiência do Orçamento participativo, a partir de 1989 em Porto Alegre, aliás insuflado pelo mesmo Castoriadis (aqui citado em epígrafe).[7] Carecemos igualmente de versões atualizadas do principal foro judiciário ateniense clássico, a heliaia, tribunal popular. À falta deste ou de formas de controle popular da prática judicial, expomo-nos a situações penosas, como os casos de lawfare recentemente evidenciados, ou vemos o risco da alienação de classe, cevando-se oligarquia no seio da democracia.
“Da isonomia (democracia) clássica, resta-nos aprender o modo ousado com que mobilizavam o conjunto de cidadãos, por meio de sorteios e muitas atribuições cívicas para todos, algo que tangenciamos, no Brasil, na experiência do Orçamento participativo.”
Respondamos, ainda, às críticas vulgares à democracia clássica: seus males, escravismo, ginecofobia e xenofobia, são conhecidos e hoje facilmente combatidos; não há porque descartar o exame das relações entre aquela experiência e nossas condições históricas, como o fez, admiravelmente, o historiador inglês Moses Finley, nas obras “Democracia antiga e moderna” [8] e “Escravidão antiga e ideologia moderna”, [9] avatares no trato da recepção política de memória e história clássicas. Mais que herdar palavra, precisamos compreender o fenômeno histórico, e dar à sua memória genética as mutações necessárias em nossa era.[10] (Figura 4)
Figura 4. A) Kouros (estátua de jovem) ático, c. 590 a.C. B) As proporções do Canon (460 a.C.) de Policleto (480-420 a.C.), em seu Doríforo. A passagem da idade arcaica, com sua herança oriental, para a modernidade clássica foi realizada com conquistas do método e o estabelecimento de padrões de proporção e veracidade, expressos no Canon de Policleto. Esta é a imagem de maior influência em toda a história da arte.
(Figura 4A – Acervo do Metropolitan Museum of Art – MET. Figura 4B – Imagem editada por Gustavo Rodrigues da Silva, no banco de imagens do StudioClio Instituto de Arte & Humanismo – Porto Alegre. Reprodução).
Emancipação
Grau maior de nossa vida no pensamento grego realiza-se quando passamos a especular com palavras helênicas e com elas criar conceitos atuais, modernos e enraizados no fecundo território clássico. É o que fez Immanuel Kant (1724-1804) em sua “Fundamentação da metafísica dos costumes”, [4] quando partiu do conceito antigo de autonomia, antes usado para designar a cidade que vive pelas próprias leis, [11, 12] para passar a referir a independência moral do indivíduo. Foi neste contexto que Kant cunhou o neologismo complementar e oposto, heteronomia, que funde heteros (o outro) e nomos (regra), para designar os casos em que a norma é imposta de fora para dentro, pelo Estado ou pela religião, à custa da aquisição ética dos princípios por opção ou determinação do indivíduo. Desta matriz evoluiu um dos mais percucientes conceitos de ética e filosofia política, tratado especialmente por Marcel Gauchet [13] para pensar religião, sociedade, poder, Estado e liberdade, do mundo antigo ao atual. Esta discussão se atualiza no momento em que cresce o poder da tutela religiosa e de outras fontes de informação manipuladoras na sociedade contemporânea, à custa da liberdade individual e da democracia, exposta a um contrabando de princípios que pode feri-la letalmente. Resta-nos recuperar e renovar, a cada geração, o vigor das fontes do pensamento grego, para muitas e nobres finalidades, na necessária missão de ampliarmos os caminhos para a emancipação e a felicidade.