Como a CT&I pode contribuir com os problemas enfrentados no Brasil hoje?
O país enfrenta muitos problemas sociais e econômicos e o caminho para superá-los passa invariavelmente pela universidade. É no ambiente acadêmico que se investiga os problemas sociais, econômicos e políticos de um país, gerando dados e informações que possam orientar políticas públicas e privadas. Além disso, a universidade é responsável pela formação de profissionais qualificados, que podem atuar nas áreas da saúde, educação, engenharia e tecnologia, propondo soluções para problemas complexos.
Para que a universidade possa desempenhar bem todos esses papéis, é fundamental que sejam garantidos autonomia e recursos adequados. Nos últimos anos, o governo federal tomou iniciativas na direção oposta, promovendo duros ataques às instituições de pesquisa e aos pesquisadores brasileiros. Portanto, para a universidade contribuir com a reconstrução do país, talvez seja preciso reconstruí-la primeiro.
Maria Angélica Pedra Minhoto, professora do Departamento de Educação da Unifesp e coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), avalia que foram muitos os golpes sofridos pela ciência no Brasil: “Para além do cenário de insuficiência de recursos públicos e privados para a pesquisa e a inovação, o baixíssimo investimento em conservação e ampliação de infraestrutura e a perda de cérebros, nos deparamos nesses últimos quatro anos com uma política deliberada de precarização e intervenção nas universidades públicas, atingindo a formação acadêmica, e, consequentemente, a formação de novos cientistas.”
“É no ambiente acadêmico que se investiga os problemas sociais, econômicos e políticos de um país, gerando dados e informações que possam orientar políticas públicas e privadas.”
A pesquisadora acredita que o desmonte da ciência nos últimos anos afetou o futuro do Brasil, direta e indiretamente, e, para o país recuperar a rota do desenvolvimento sustentável, a ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I) devem ser políticas de Estado: “É preciso destinar recursos orçamentários de forma estável e perene, investindo em competências científicas instaladas e em infraestrutura, identificando necessidades e novos setores potenciais, além de constituir democraticamente um Sistema Nacional de Educação articulado a um Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia”.
O Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCTI) foi instituído na Emenda Constitucional nº 85, de 2015, com a atribuição de organizar e distribuir as responsabilidades do desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação entre os governos federal, estadual e municipal. A Emenda prevê a criação de uma lei federal para o estabelecimento de normas gerais, mas não houve movimentação para a criação da lei até agosto de 2022, quando o Ministério da Ciência, e Tecnologia e Inovação (MCTI) abriu consulta pública sobre o SNCTI e a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que visa definir um conjunto de objetivos, princípios e diretrizes para o setor. A consulta pública terminou em outubro de 2022.
Uma agenda prioritária
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos SoU_Ciência em outubro de 2021 apontou que “fome e pobreza” eram os maiores problemas do Brasil para 62,1% dos entrevistados. Hoje, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN), 33 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar grave no país.
“O desmonte da ciência nos últimos anos afetou o futuro do Brasil, direta e indiretamente, e, para o país recuperar a rota do desenvolvimento sustentável, a ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I) devem ser políticas de Estado.”
A CT&I vem atuando no combate à fome do país em várias frentes. Dentre elas, destacam-se pesquisas na área da agricultura, voltadas à maior produtividade nas lavouras. Essas iniciativas, no entanto, precisam ser acompanhadas de políticas públicas que estabeleçam a ponte entre a universidade e a agricultura familiar, principal responsável pela produção de alimentos para o mercado interno. Luciana Vanni Gatti, pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) explica que os grandes produtores agrários brasileiros, donos de monoculturas voltadas à exportação, são parte do problema da fome do Brasil, não a solução. A destruição da vegetação promovida pelo agronegócio desregula o clima, provocando crises hídricas que terminam por aumentar o valor dos alimentos: “Nós temos um setor muito pequeno da elite do agro lucrando nesse modelo enquanto a totalidade da população brasileira está perdendo”. (Figura 1)
Figura 1. Pesquisas na área da agricultura, voltadas à maior produtividade nas lavouras, é uma das frentes do combate à fome da CT&I
(Imagem: Embrapa. Reprodução)
A pesquisadora da Embrapa Cerrados, Suênia Cibeli Ramos de Almeida, elenca algumas das iniciativas em CT&I que podem beneficiar o pequeno produtor: “pesquisas relacionadas à seleção e melhoramento participativo das sementes crioulas; produção de insumos na própria propriedade (bioinsumos); mecanismos de captação de água de chuva; máquinas e implementos adaptados aos diferentes cenários naturais e ao perfil desses atores sociais; aproveitamento da diversidade de recursos alimentares e forrageiros presentes nos diferentes biomas brasileiros que possibilitem valorizar a oferta dos produtos locais e, finalmente, mapear, sistematizar, criar e recriar formas alternativas de comercialização que envolvam os agricultores familiares, indígenas, de comunidades tradicionais e consumidores”.
Eventos extremos pedem medidas urgentes
A pauta ambiental, ignorada pelo último governo, também precisa ser uma preocupação central no processo de reconstrução do país. Luciana Gatti lembra que a agricultura de exportação também contribui com a desregulação do clima: “Esse tipo de agricultura onde nós temos áreas imensas com uma monocultura mecanizada e calcada no uso intenso de fertilizantes e agrotóxicos é uma razão de desequilíbrio do clima. Esse modelo traz prejuízo para todos, com o aumento dos eventos extremos causando prejuízos e mortes”. Para a pesquisadora, o enfoque tanto para mitigar a fome como para combater o colapso climático precisa ser na agrofloresta, em produções em equilíbrio com a natureza. (Figura 2)
Figura 2. Pauta ambiental é crucial para o desenvolvimento nacional
(Imagem: Arquivo/ Agência Brasil. Reprodução)
Almeida alerta que, devido à desregulação do clima, os conflitos pelo acesso e uso da água já são uma realidade, e não é possível pensar em soluções para esses problemas fora da ciência: “Os mecanismos criados para apoiar os agricultores, como o Plano de Segurança da Água, programa desenhado pela Agência Nacional de Água (ANA), é um bom exemplo de como a ciência e as experiências dos agricultores têm potencial para diminuir os impactos do colapso climático (diminuição das chuvas e consequente desabastecimento de água) na área da agricultura e da conservação do recurso solo-água. A inovação na área de uso e reuso da água nos estados do Nordeste perpassa desde a captação e/ou armazenamento quanto o tratamento, o monitoramento e a gestão. Todas essas ações impactam positivamente a vida das pessoas e a crise econômica vivenciada pelo aumento nos custos dos alimentos e dificuldade de acesso a recursos hídricos. Isso é resultado tanto da ação da ciência como do apoio de políticas públicas.”