País avança na inclusão de estudantes no ensino superior, mas políticas públicas precisam de aperfeiçoamentos, especialmente as de permanência
12,6 milhões. Esse é o número de alunos vinculados a cursos nas Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil, de acordo com o Censo da Educação Superior 2021 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). A maioria dos estudantes é branca, do sexo feminino, com idade entre 19 e 24 anos e frequenta cursos noturnos em instituições privadas. Direito, administração, enfermagem e engenharia civil estão entre os cursos mais procurados na rede privada. Já na rede pública aparecem também os cursos de medicina e agronomia.
Segundo a V Pesquisa Nacional do Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) (2021), elaborada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a superioridade do sexo feminino no ensino superior está relacionada ao fato de que elas já são maioria no ensino médio e que estudantes do sexo masculino (egressos ou evadidos) têm, por sua vez, entrada precoce no mercado de trabalho. Na distribuição percentual dos concluintes de graduação por sexo, segundo a área geral dos cursos, as mulheres são maioria em todos os cursos, exceto engenharia, produção e construção, e nos cursos ligados às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC).
Quem é esse aluno
Ainda de acordo com o último levantamento da Andifes, a despeito dos avanços em termos de inclusão de estudantes com menor renda, o universitário brasileiro não faz parte da camada mais pobre da população. Os setores mais pobres e miseráveis nem mesmo chegam a concluir o ensino médio, principal fator de exclusão ao ensino superior.
Conforme aponta o professor emérito do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Dilvo Ristoff, os campi são mais ricos do que a sociedade em geral. No entanto, o país esboça um movimento em direção a um sistema mais excludente. “Em todos os cursos tem caído o número de estudantes ricos, mesmo nos de alta demanda, e embora o número de alunos no ensino superior não seja um reflexo do número de matriculados no ensino médio, esse número tem aumentado”, afirma.
Nas instituições federais, já há algum tempo, quase dois terços da população discente é proveniente de escolas públicas. Em 2014, o percentual de estudantes que havia cursado integralmente, ou na maior parte do tempo, escolas públicas de ensino médio, era de 64%. Em 2018, estudantes que cursaram ensino médio em escolas públicas eram maioria absoluta (64,7%) – praticamente o mesmo percentual encontrado na pesquisa de 2014. Estudaram em escolas particulares 35,3%.
Expansão e democratização
A partir dos anos 1990, há uma forte expansão do ensino superior no Brasil, alimentada pela criação de universidades e dos institutos federais, o que aumentou a oferta de vagas. “Partimos de 2,18 milhões de ingressantes em 2010 para 3,76 milhões em 2020 – um aumento de 72,5% no fluxo de alunos que entraram no sistema em apenas um decênio”, afirma Adriano Senkevics, chefe do Núcleo de Assessoramento aos Estudos Educacionais do Inep.
Além disso, há também um processo de democratização no acesso às universidades, alicerçado em políticas públicas para inclusão de alunos vindos da escola pública, de negros e pardos. Isso modifica o perfil dos estudantes que habitualmente frequentavam o ensino superior no Brasil. Se no início dos anos 1990, oito entre 10 alunos eram brancos, hoje, essa proporção caiu para seis entre 10 estudantes. “As universidades mudaram de cor, ganharam contornos reais, do dia a dia, com alunos chegando de ônibus, ampliando as filas nos pontos, aumentando as demandas nos restaurantes universitários, nos espaços de convivência, nas bibliotecas, nas vagas por residências estudantis e nos editais de bolsas e auxílios”, apontou Marcele Regina Nogueira Pereira, vice-presidente da Andifes. (Figura 1)
Figura 1. A Lei de Cotas aumentou diretamente número de alunos negros nas universidades.
(Foto: Beto Monteiro/Secom UnB. Reprodução)
Segundo o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2022, elaborado pelo Instituto Semesp, como resultado direto da Lei de Cotas, de 2013 para 2020 aumentou o número de alunos negros nas universidades. A rede privada registrou um aumento de 1,4 ponto percentual e na rede pública esse crescimento foi um pouco maior: 2,3 pontos percentuais. (Tabela 1)
Tabela 1. Aumento de alunos negros nas universidades entre 2013 e 2020
(Fonte: Mapa do Ensino Superior no Brasil 2022/Instituto Semesp)
Isso pode ser ilustrado pelo caso da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Na Turma 191, que ingressou em 2018 e se formou em 31 de janeiro deste ano, dos 315 formandos, 75 ingressaram via Sistema de Seleção Unificada (SISU) e 35 pela reserva para pretos, pardos ou indígenas (PPIs). A escola do Largo de São Francisco é um exemplo de que as políticas públicas de inclusão social têm tido efeito positivo na transformação do perfil do aluno do ensino superior no Brasil. “O campus brasileiro torna-se a cada ano menos branco; o percentual de pretos começa a se aproximar mais dos percentuais da sociedade; mais pardos frequentam os cursos universitários; e mais pessoas de baixa renda conseguem chegar à educação superior”, aponta Ristoff.
Diversidade e inclusão
A expansão da educação superior no Brasil tem dois momentos, cujas características distintas influenciam no perfil dos estudantes. “Há uma diferença significativa entre a expansão observada até os anos 1990 e a observada a partir de 2003, nos governos Lula e Dilma”, explica Ristoff. Enquanto a expansão dos anos 1990 buscou dar uma resposta às demandas por educação superior das classes média e alta, a partir de 2003, o objetivo foi trazer para a educação superior os grupos historicamente excluídos: pobres, pretos, pardos, indígenas, filhos de pais sem escolaridade e estudantes das escolas públicas. Segundo o pesquisador, por terem objetivos distintos, esses dois momentos da expansão fizeram uso de estratégias e políticas específicas. “O primeiro, nos anos 1990, buscou expandir o setor privado, para atender especialmente aqueles filhos das classes média e alta que não conseguiam ingressar nas boas universidades públicas do país e que queriam continuar estudando. A ideia era criar condições para que o setor privado pudesse atender a essa demanda, sem a necessidade de onerar o setor público. Em parte, a estratégia deu certo, mas sem provocar mudanças profundas no perfil dos estudantes universitários. Já a expansão dos anos Lula e Dilma foi voltada à inclusão dos excluídos”, explica.
Para tanto, foram empregadas duas estratégias básicas: uso diferenciado da expansão no setor privado, buscando criar políticas inclusivas e ampliação da oferta de vagas no setor público. Para tornar o setor privado mais inclusivo, foram criados programas como o Portal Único de Acesso ao Ensino Superior (PROUNI), o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (PROIES) e o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), este com juros altamente subsidiados. No setor público, foram desenvolvidas iniciativas como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), um programa de recuperação e interiorização das universidades federais existentes que resultou em 270 novos campi em cidades do interior. E também o SISU, que criou rotas de acesso para estudantes pobres, pretos, pardos e indígenas, oriundos das escolas públicas, como os que entraram em 2018 na Faculdade de Direito da USP. “A Universidade recebeu mais pessoas de diferentes origens sociais, tornou-se mais plural, diversa e inclusiva. Foi um movimento que ajudou a expandir horizontes de milhares de jovens que puderam se reconhecer também como parte dela, contribuindo com suas preocupações e pautas na construção do conhecimento científico”, destaca Pereira.
“A partir dos anos 1990 há uma forte expansão do ensino superior no Brasil alimentada pela criação de universidades e dos institutos federais, o que aumentou a oferta de vagas.”
Também foram criados os Institutos Federais, com cerca de 660 campi espalhados pelo interior do país e ainda vários programas de bolsas, como o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) e o Programa Nacional de Assistência Estudantil para as Instituições de Educação Superior Públicas Estaduais (PNAEST). “Tudo isso fez com que o perfil do campus brasileiro, público e privado, começasse a sofrer profunda mudança, gradualmente abandonando o elitismo que lhe era característico”, afirma Ristoff, que teve passagens pelo Inep, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pela Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC).
Segundo o pesquisador, o número de estudantes na educação superior oriundos da escola pública cresce anualmente. “Na quase totalidade dos cursos, aumenta a presença de estudantes filhos de famílias de mais baixa renda, diminuindo a distância entre os percentuais do campus e da sociedade como um todo. Mesmo assim, quando comparamos o campus universitário com a sociedade, percebemos que ele continua sendo bem mais branco, mais rico e onde os pardos, na maioria dos cursos, permanecem com percentuais muito distantes de sua representação na população”, aponta.
Lei de Cotas
Entre as políticas de inclusão no ensino superior, a Lei de Cotas certamente foi a que teve um dos maiores impactos na mudança do perfil do estudante já em seu primeiro ano de implantação, em 2013. “Sem dúvida, essa lei abriu caminho para uma representação paritária de estudantes de diferentes cores e origem familiar, social e escolar”, aponta Ristoff. Várias universidades, como a Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de Brasília (UnB), já vinham adotando políticas de cotas diferenciadas antes de 2013. Porém, a lei não só definiu com mais clareza a política nacional de inclusão, como passou a exigir a sua implementação em todas as universidades e institutos federais.
Rapidamente essas instituições se adaptaram às novas demandas, sendo necessário consolidar o que foi criado, aproveitando a oportunidade para pequenos ajustes, especialmente nas medidas para permanência. “São muitos os alunos que já tiveram que trancar suas matrículas pela necessidade de trabalhar. Muitas mães precisam deixar os estudos, muitos jovens não conseguem recursos para se alimentar e para comprar seus livros e materiais. O reforço em estratégias que permitam diminuir as dificuldades sociais impostas diariamente a cada vez mais brasileiras e brasileiros é fundamental. Este cenário é real, e lidamos com ele diariamente”, conta Pereira. Para ela, duas medidas podem contribuir de modo mais imediato para a permanência de alunos nas universidades federais: transformar o PNAES em lei (hoje as ações ligadas a essa política são baseadas em um decreto) e a recomposição orçamentária para essas políticas.
“A partir de 2003 o objetivo foi trazer para a educação superior os grupos historicamente excluídos: pobres, pretos, pardos, indígenas, filhos de pais sem escolaridade e estudantes das escolas públicas.”
Ao analisar os impactos da pandemia no acesso de jovens à graduação, Senkevics mostrou que, a partir de 2015 – ou seja, antes da pandemia – uma crise econômica e política, com estagnação financeira e forte queda no PIB, provocou a redução dos principais programas federais de bolsas e financiamento estudantil. A pandemia agravou ainda mais uma situação de deterioração da economia, com forte impacto na população de origem social menos privilegiada. Além disso, um dos principais mecanismos de acesso ao ensino superior no Brasil, o Enem, se tornou menos popular. Isso porque, conforme explica o pesquisador, as escolas públicas dispuseram menos alternativas para viabilizar estratégias de ensino-aprendizagem durante o período de suspensão das atividades presenciais. Somado a isso, esses alunos dispunham de menos acesso a celulares, internet e computadores em casa – recursos que se mostraram fundamentais no desempenho da prova. “Esse período singular vivenciado no Brasil e no mundo pode ter aprofundado desigualdades preexistentes e intensificado as dificuldades dos mais pobres prosseguirem com sucesso no ingresso à educação superior”, destaca Senkevics. (Figura 2)
Figura 2. O Enem, um dos principais mecanismos de acesso ao ensino superior no Brasil, se tornou menos popular
(Foto: Gabriel Jabur/ Agência Brasília. Reprodução)
Com relação aos alunos já vinculados, segundo a pesquisa do Instituto Semesp, houve um salto no número de trancamentos de 2019 para 2020, principalmente na rede pública e em cursos presenciais.
O que eles estudam e onde
A rede privada de ensino superior no Brasil conta com mais de 6,9 milhões de alunos, garantindo uma participação de quase 77% do total. Isso se deve porque o processo de expansão da educação superior no país que se iniciou no final dos anos 1990 encontrou na rede privada o seu principal motor. Enquanto no ensino público a política de cotas é responsável por aumentar a diversidade dos estudantes, na rede privada, programas de financiamento como o Fies são responsáveis por ampliar o acesso de alunos mais vulneráveis no ensino superior privado. Cortes recentes no orçamento para esse tipo de financiamento representam uma ameaça à continuidade desse processo de inclusão.
“Uma crise econômica e política, com estagnação financeira e forte queda no PIB, provocou a redução dos principais programas federais de bolsas e financiamento estudantil.”
A pandemia acelerou uma tendência que já vinha sendo observada na educação brasileira, a da ampliação das modalidades remotas de ensino. “Depois de forte período de expansão no número de vagas, há uma estagnação do segmento público e o deslocamento, no interior do segmento privado, da oferta de cursos presenciais para cursos a distância”, afirma Senkevics, que também é professor-colaborador da UnB. “Os estudantes dos cursos na modalidade EAD tendem a ser mais velhos do que os do ensino presencial e, consequentemente, o perfil etário dos ingressantes da educação superior vem transformando-se. Resta saber se o futuro indicará um rejuvenescimento do público da EAD, de modo a consolidá-la também entre os jovens”, questiona em artigo publicado em 2022 nos Cadernos de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais.
De fato, a pandemia reforçou uma tendência de queda no número de matrículas presenciais que, em 2020, foi de 9,4%. Conforme aponta o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2022, a modalidade EAD já vinha registrando uma tendência de crescimento nos últimos anos. (Tabela 2)
Tabela 2. Número de Matrículas no Ensino Superior em 2020 por Região
(Fonte: Instituto Semesp/Base Inep)
No primeiro ano da pandemia houve um pequeno decréscimo no número de instituições de ensino superior, de 5,8%, e que foi um pouco maior na rede privada (de 6,6%). Mesmo assim, 87,6% das IES brasileiras são privadas, concentrando 77,5% das matrículas de graduação. A maioria dos estudantes universitários brasileiros está na Região Sudeste, mas o maior percentual de estudantes que frequentam o ensino presencial está no Nordeste.
O Censo do Inep também detectou um dado preocupante: a queda no número de jovens ingressando no ensino superior, isto é, em geral, os estudantes ingressam mais tarde no ensino superior. Em 2020, 17,8% dos alunos tinham entre 18 e 24 anos. Em 2020, a taxa de escolarização líquida (que mede a proporção de pessoas de 18 a 24 anos que frequentam o ensino superior em relação à população dessa faixa etária) registrou uma queda de 0,3 pontos percentuais e chegou aos 17,8%. “Com o EAD ainda atraindo um público mais velho, entre 29 e 44 anos, que já está inserido no mercado de trabalho, os mais jovens seguem excluídos da educação superior. Sem atrairmos os jovens para o ensino superior, estamos não apenas nos afastando da meta do Plano Nacional de Educação, que estabelece uma taxa de escolarização líquida para o ensino superior de 33% em 2024, mas também comprometendo o próprio desenvolvimento do país a médio e longo prazo”, aponta o estudo do Semesp.
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