Apesar de desvalorizada, extensão pode contribuir para a inovação social
A inserção curricular da extensão – a chamada curricularização da extensão – foi regulamentada em 2018 e estipula que suas atividades devem compor, no mínimo, 10% do total da carga horária dos cursos de graduação, que deverão fazer parte da matriz curricular dos cursos.[i] Essa regulamentação ocorreu mais de 60 anos depois da definição das diretrizes de atividades de ensino[ii] e 50 anos depois da Lei 5.540/68, que trata das atividades de pesquisa[iii] nas universidades. Ainda assim, apesar dos grandes esforços de alguns docentes de universidades públicas e privadas, é notória a diferença de investimento e status das atividades de extensão em relação às de ensino e pesquisa. Enquanto as atividades de ensino contam com verbas derivadas de setores públicos ou privados, e as de pesquisa são provenientes principalmente de órgãos públicos (Finep, Capes, CNPq e outras fundações de apoio à pesquisa) e de algumas parcerias com a iniciativa privada, as atividades de extensão de um modo geral não estão previstas nos orçamentos das instituições (com algumas exceções, como por exemplo, os hospitais universitários).
Apesar de desvalorizada, a extensão universitária é um espaço importante de formação profissional e de produção de conhecimento científico, podendo não apenas contribuir para a inovação social, mas também para a superação das desigualdades na sociedade. Mas não são poucos os obstáculos a superar.
O sistema de ensino superior no Brasil é diversificado e nem todas as instituições são públicas ou mesmo universidades. Observam-se não apenas disparidades regionais, mas também diferenças estruturais: instituições privadas com ou sem finalidade de lucro (comunitárias, confessionais ou filantrópicas), organizadas em universidades, centros universitários, faculdades, ou institutos federais. Nas universidades públicas existem diferenças regionais nos recursos disponibilizados pelo poder público, seja ele federal, estadual ou municipal. Ainda, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, que consta do artigo 207 da Constituição Brasileira de 1988, se revela diluída em pesos distintos, tanto na avaliação de docentes, quanto na avaliação do esforço acadêmico. As raízes são históricas e refletem diferentes concepções de sociedade, cidadania, educação, escola e ensino que revelam ideários conflitantes entre o mundo real, dos educadores, e o mundo oficial, do sistema educativo, como aponta Iria Brzezinski, professora do programa de pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), em seu artigo “Tramitação e desdobramentos da LDB/1996: embates entre projetos antagônicos de sociedade e de educação”.
A extensão universitária e as demandas da sociedade
Mas, afinal de contas, o que é extensão universitária? De um modo bem simplificado, pode-se dizer que a universidade é um importante espaço de produção, acumulação e disseminação de conhecimentos. E a extensão seria uma forma da universidade compartilhar esse conhecimento com o público externo, promovendo o desenvolvimento social. (Figura 1)
Figura 1. A extensão universitária é uma forma de compartilhar o conhecimento produzido nas universidades com a sociedade, promovendo o desenvolvimento social.
(Unicamp. Reprodução)
Apesar da diversidade de ações nas diferentes instituições de ensino superior, a extensão continua sendo o lado mais fraco no tripé ensino-pesquisa-extensão. Naomar de Almeida Filho, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), aponta que a extensão não é priorizada na missão orgânica das instituições e não está prevista nos seus orçamentos, com exceção da prestação de serviços e atividades na área da saúde. Mas a extensão é muitas vezes a única forma de quem está fora da universidade se fazer ouvir. “É raro um programa ou projeto de extensão ser uma ação que pergunta; costuma-se na extensão fornecer de imediato uma solução, em vez de ser algo mais exploratório, dialógico… Em tese, as universidades têm uma missão civilizatória, de modo a não impor a transformação, mas relacionando-se com a sociedade com uma postura mais modesta”, explicou, em entrevista à Revista EntreTeses.
A digital das universidades pode ser encontrada em projetos e/ou ações de extensão que envolvem organizações e movimentos sociais diversos, no processo de construção de variadas inovações sociais que tiveram impactos no enfrentamento de desigualdades sociais ou na geração de respostas criativas para determinados problemas. Carla Almeida, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e coordenadora adjunta da área de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Capes, cita como exemplo a presença de universidades nos programas pilotos dos anos 1980 que, junto à ação do Movimento Sanitarista, levaram, mais a frente, à implementação de mudanças efetivas na formação dos profissionais de saúde no país: “aqueles projetos buscavam introduzir na formação dos profissionais uma perspectiva de saúde mais afinada às necessidades da população e dos serviços públicos, de natureza mais preventiva, comunitária e coletiva, o que foi tão fundamental na construção do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
“A extensão universitária é um espaço importante de formação profissional e de produção de conhecimento científico, podendo não apenas contribuir para a inovação social, mas também para a superação das desigualdades na sociedade.”
Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, as atividades de extensão se dão em diversos níveis: projetos sociais, formação a distância, criação de estratégias de atuação em movimentos populares, atendimento às populações mais carentes nas próprias localidades, ensino a refugiados, atendimento em saúde a grupos sociais vulneráveis, projetos de combate à violência e às drogas, políticas de ações afirmativas, núcleos de estudos africanos e indígenas e cátedras de estudos populares. “E reservamos à cultura um lugar que não é limitado ao entretenimento ou ao lazer”, aponta Soraya Smaili, professora do Departamento de Farmacologia da Unifesp e ex-reitora da universidade, em artigo para a revista EntreTeses.
Papel da extensão universitária na inovação social
A ideia de inovação social é considerada relativamente jovem por alguns pesquisadores. Alcides Monteiro, professor da Universidade de Beira Interior (UBI) e pesquisador no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia de Portugal, aponta em artigo publicado em 2019 que “no Brasil, e olhando para o campo científico, o debate tem sido rico e diversificado em ângulos de abordagem, desde a discussão do conceito e dos referentes teóricos que o suportam até a sua ligação com a inovação tecnológica ou à conexão entre inovação social e desenvolvimento”.
Carla Almeida considera “equivocada a ideia, que muito circula, de que haveria uma dicotomia entre universidades e sociedade, ou, em outras palavras, de que as universidades estariam distantes e desatentas dos reais problemas que afetam a sociedade brasileira”. Com pesquisas sobre instituições participativas; democracia e participação; gênero e política, Almeida pondera que “essa imagem apaga a contribuição que as universidades públicas têm dado, historicamente, para a geração de inovações sociais que passaram a fornecer respostas inéditas a problemas para os quais ainda não havia soluções disponíveis”. (Figura 2)
Figura 2. As universidades têm contribuído historicamente com a sociedade, fornecendo soluções aos problemas que vão se colocando
(Unifesp. Reprodução)
Lacunas e desafios persistem, mas existem ações em curso
Segundo Almeida, embora todo o acúmulo extensionista que possuímos, ainda não temos uma cultura que valorize a divulgação do conhecimento científico, não temos uma política sistemática e eficaz, por parte das instituições de ensino superior, que preveja, fomente e execute estratégias nessa direção. A desconfiança e o ataque ao conhecimento científico marcando presença no debate público e impactando negativamente ações de prevenção na pandemia são exemplos. “Embora possamos encontrar iniciativas bastante importantes e criativas nessa direção em diversas áreas do conhecimento, considero fundamental que as universidades brasileiras se engajem fortemente na construção de estratégias institucionais de divulgação do conhecimento científico. E divulgação científica não se trata, evidentemente, apenas de dar publicidade ao que se produz”, destaca. É preciso não apenas investir em “traduzir” a linguagem cientifica para uma comunicação pública, aberta, ampla, mas também e, sobretudo, é preciso considerar o público, a sociedade, um agente ativo nessa comunicação, e não mero receptor de informação. “Espero muito que possamos avançar nessa direção”, finaliza a pesquisadora.
Ricardo Abramovay, professor da cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública e professor sênior do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM), ambos da USP, pondera que, por mais importante que seja a universidade contribuir no enfrentamento das desigualdades sociais brasileiras, essa ação “tem que começar muito antes, das etapas correspondentes à formação inicial dos estudantes. A população de baixa renda tem uma deficiência em português, matemática e raciocínio básico (desafios do século XX) que as distancia dos desafios do século XXI, quais sejam autonomia, empatia, criatividade, diversidade e capacidade de aprender coisas novas”.
“A digital das universidades pode ser encontrada em projetos e/ou ações de extensão que envolvem organizações e movimentos sociais diversos, no processo de construção de variadas inovações sociais que tiveram impactos no enfrentamento de desigualdades sociais ou na geração de respostas criativas para determinados problemas.”
E acrescenta, “por mais que as melhores universidades do mundo sejam geradoras de inovação, elas podem, ao mesmo tempo, contribuir para bloquear ou ao menos retardar as transformações necessárias ao desenvolvimento sustentável.” Para Abramovay, não há exemplo mais claro deste paradoxo que o citado no último livro de Michael Sandel sobre a tirania do mérito, no qual “ele mostra o papel essencial da riqueza familiar no acesso às melhores universidades norte-americanas. O mérito torna-se a cobertura fantasiosa cujo verdadeiro corpo é a posição social de quem a veste. Impossível pensar em transformação social sem enfrentar este problema. E a fantasia se converte em mistificação quando a posição alcançada é vivida por seus detentores como resultado de seu talento e não do dinheiro que lhes abriu as portas de entrada no caminho das posições dominantes”.
Ou seja, os 10% do total da carga horária curricular estudantil dos cursos de graduação podem ser um bom começo para ajustar as prioridades de ensino e pesquisa nas universidades brasileiras.
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