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75 anos da SBPC em Curitiba: ciência, memórias e afeto

Pesquisadores da UFPR falam de suas experiências no maior evento científico da América Latina e contam como as diferentes áreas da ciência entendem a memória

 

Eunice Maria Fernandes Personini tinha 19 anos quando viajou pela primeira vez. O ano era 1974. O destino, Recife, Pernambuco. O motivo: participar da 26ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Mal sabia ela que seria o começo de uma longa carreira como secretária em diferentes setores da instituição. Em 2023, aos 68 anos, a paulistana completa quase meio século de casa. Conheceu o Brasil assim, indo aos eventos da SBPC. Alcançaria a marca das 49 reuniões consecutivas, não fosse o impedimento da leucemia no ano passado. Tratamento finalizado, Eunice está ansiosa para botar o pé na estrada e voltar ao frio da terra das Araucárias. E a razão a gente já sabe. A 75ª Reunião da SBPC vai ser bem aqui, na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Considerada o maior evento de ciência da América Latina, a SBPC é realizada a cada ano em uma universidade brasileira diferente e é aberta a todos. A tradicional reunião anual une cientistas das mais diversas áreas para mostrar seus trabalhos e debater assuntos importantes tanto científica quanto politicamente. Essa é uma das características da SBPC que a diferem de outros congressos de ciência.

“Desde a minha época de estudante, havia a SBPC. No momento em que as sociedades científicas estavam em baixa, ela era a grande figura, a grande voz que unia os intelectuais brasileiros, independente de posições político-ideológicas”, lembra Maria Tarcisa Silva Bega, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia  da UFPR e participante do evento em algumas edições.

Com 74 edições realizadas, o evento fez parte da vida de centenas de milhares de pessoas. Como Eunice e Maria Tarcisa, cada participante guarda memórias. Alguns lembram mais de uma conferência, outros de um jantar depois do evento, existe até quem se recorde com carinho de uma conversa no corredor entre atrações. Todos têm alguma lembrança.

E para relacionar recordações como estas e seus afetos com o que a ciência diz sobre memória, a Agência Escola UFPR preparou uma reportagem especial. Para isso, a nossa equipe conversou com participantes de edições anteriores do evento e com pesquisadores de diferentes áreas que estudam temas relacionados ao assunto.

 

Memória, ciência e democracia

O tema do 75o encontro da SBPC, “Ciência e democracia para um Brasil justo e desenvolvido”, vem em um momento de reafirmação da democracia no Brasil, após eventos anti-democráticos e frequentes ameaças de golpe. Na memória de Maria Tarcisa, as universidades e a SBPC sempre foram espaços de resistência aos momentos em que a democracia esteve em risco e mesmo durante seu fim: “Cresci intelectualmente vendo a SBPC nesse papel. Eu diria que SBPC e democracia são quase sinônimos. As pautas da SBPC e a construção de consenso entre os intelectuais é muito difícil. Mas a defesa da democracia, da liberdade de cátedra e da autonomia da ciência, da não subordinação da ciência a interesses privados ou pontuais de governos é o que a SBPC representa.”

E a memória é, por si só, um importante instrumento para impedir retrocessos, sejam eles políticos ou científicos. “Quem não conhece sua história está condenado a repeti-la”, diz o famoso ditado popular. A professora do Departamento de História, Karina Belotti, explica que a memória traz diversidade à democracia, evitando que atos antidemocráticos como a invasão do Capitólio nos Estados Unidos e os atos de 8 de janeiro no Brasil de 2023, consigam silenciar vozes dissonantes do pensamento do grupo.

“O fundamentalismo trabalha com um pensamento único. Quando só existe um jeito certo de pensar, todos os outros jeitos de pensar, de viver e de se lembrar da história não servem. Então a forma como a história pode contribuir é mostrando a variedade de experiências históricas, sujeitos históricos e também as desigualdades de poder, socioeconômicas, que também interferem nas formas de lembrar e esquecer de cada sociedade”, diz Karina.

Para Marcos Alberto Torres, professor do Departamento de Geografia da UFPR, os atos de 8 de janeiro, em Brasília, são reflexo da falta de memória de algo que aconteceu muito recentemente, nos anos de 1960 e 1970: a ditadura militar.

“Se a gente não trabalha isso, não mantém essa memória viva. Se a gente não falar sobre essas coisas, não problematizar o que a gente viveu, que marcaram tão profundamente a história do Brasil, vai ter gente nas ruas homenageando torturadores, bustos nos espaços públicos de pessoas que não fizeram uma coisa bacana para o Brasil. E essas marcas também são memórias. Então a gente tem que olhar para isso e pensar em quais são as marcas que a gente quer deixar no espaço e qual é a história que esse espaço pode nos contar”, diz Torres, que acredita que o tema foi uma escolha certa para o momento, pois a memória dos eventos recentes contribui para superá-los e para que haja um fortalecimento da democracia e da ciência.

Francisco Assis Mendonça, professor do Departamento de Geografia e Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação, também traz memórias da SBPC relacionadas à ciência e à democracia. Ele conta que a reunião de 1983 foi realizada no Pará no penúltimo ano da ditadura militar e que, naquele ano, havia uma luta muito aguerrida de toda a comunidade universitária e científica brasileira, não só pela retomada da democracia, mas também para que o princípio da democracia pudesse trazer luz à reconstrução de uma ciência mais aberta. A ditadura militar resultou na expulsão de cientistas e em perdas na construção de conhecimento no país, porque os currículos das universidades foram mudados nesse período. A influência internacional, em particular dos norte-americanos, foi intensa.

“O evento da SBPC de 1983 marcou o período do final da era militar e se configurou em um momento político em que a ciência foi organizada para dar vazão àqueles anseios da ciência, da democracia e da ideia da ciência laica, ciência cidadã, bem como da universidade brasileira como forma e possibilidade de criar uma sociedade brasileira de qualidade”, afirma Francisco.

Ele aponta que, novamente, a ciência brasileira vai ter o momento de reunir-se enquanto instituições, sociedade, estudantes e pesquisadores “para juntos construirmos os desafios de um país que se quer soberano na sua ciência ou se quer forte na sua construção do conhecimento. E é a SBPC que vai oportunizar isso em Curitiba”.

Assim como Francisco, que é um apaixonado pela ciência, Eunice tem o maior evento de divulgação científica latino-americano em suas memórias. Mas antes de trazer em palavras a simbologia que tais recordações têm em suas vidas, que tal um passeio por diferentes campos científicos e suas relações sobre este tema, que é tão curioso e faz parte do cotidiano de todas as pessoas?

 

A ciência do recordar

Francisco participa de reuniões anuais da SBPC desde 1983 e esteve presente na última vez que Curitiba sediou o evento, em 1986. Ele conta que, naquele ano, apresentou a pesquisa do mestrado em Geografia Física que fazia na Universidade de São Paulo (USP). Por aqui, ele se hospedou no centro da cidade e ia até o campus Centro Politécnico para participar do evento: “Eu lembro de um ambiente maravilhoso, de integração entre pessoas, de vontade de apresentar o que se sabe, aprender com o outro e interagir cultural e cientificamente”. Ele ainda conta: “Ora, foi uma semana que marcou muito minha vida, que me inspirou fortemente a seguir o caminho da ciência e da universidade, que naquele momento estavam em muita evidência”.

Assim como as lembranças do último encontro da SBPC em Curitiba foram fundamentais para definir e fixar a identidade profissional de Francisco como cientista,  as memórias são importantes para determinar todo tipo de identidade. Na ciência, cada área de estudo entende isso de uma forma diferente e ao mesmo tempo, complementar.

O professor do Departamento de Psicologia da UFPR, Amer Cavalheiro Hamdan, explica sobre a memória na sua linha de estudo, que entende o conceito pelo ponto de vista biológico: “A memória é fundamental para o processo de aprendizagem, para a sociabilidade, para a identidade. Nós somos as nossas memórias, tudo aquilo que conseguimos reter, guardar e evocar.” Ele explica que isso tudo fica muito claro quando se perde a memória: “Por exemplo, na doença de Alzheimer, quando a pessoa perde a memória, ela não se reconhece e perde parte da personalidade.”

Existem diferentes memórias para diferentes atividades, como explica o professor. “A memória  mais famosa é a episódica, recorda de acontecimentos ao longo do tempo. Eu lembrar a minha infância ou o que eu comi ontem é memória episódica.” Amer apontou também outros tipos, que, por exemplo, garantem habilidades como escrever e dirigir um carro, ou a memória semântica: “É a informação, o conhecimento. Por exemplo, o que é psicologia.”

No cérebro humano existem cerca de 100 bilhões de neurônios que se comunicam através de fendas, as chamadas sinapses. A cada novo aprendizado, essas sinapses são fortalecidas, o que aumenta a chance de conexão entre dois neurônios. Neste momento a formação acontece. Esta explicação vem do professor do Departamento de Farmacologia da UFPR, Cláudio da Cunha.

Já na Matemática, a memória funciona como um “combustível”, conta a professora do Setor de Exatas do campus de Palotina, Danilene Gullich Donin Berticelliespecialista em Cálculo Mental. “Se tivermos memórias de fatos básicos, de dobros, da rede do 10, temos condições de analisar uma operação e decidir qual caminho tomaremos para resolver.”

Ela explica: “O Cálculo Mental é ancorado em conhecimentos essenciais e estratégias. Para formular uma estratégia é necessário que o sujeito tenha memórias dos conhecimentos essenciais, como os fatos básicos, operações que não “viram” a dezena. Por exemplo: 1+4, 17+2, 21+3.”

Com as lembranças destes conhecimentos considerados essenciais para o cálculo mental, a pessoa tem condições de elaborar diversas estratégias para resolver uma operação mentalmente. Danilene alerta, no entanto, que memória não é “decoreba” e sim uma compreensão na qual a pessoa trabalhe com os números de forma a valorizar a criatividade, o senso numérico e a flexibilidade.

E essas não são as únicas formas de memória existentes. A professora do Departamento de História da UFPR, Karina Belotti, explica sobre outro tipo, que é formado pelos elementos que um povo decide lembrar ou esquecer. Dessa forma, a memória diz muito sobre um povo e a identidade dele a partir do que se orgulham e o que consideram esquecíveis. Mas existe um porém quanto à construção dessa identidade: quem decide o que é lembrado são as pessoas que têm poder.

memória de um povo muda de acordo com o surgimento de novas gerações e grupos de poder que discordam das anteriores, como afirma Karina. Ela complementa explicando que este processo vem acontecendo de maneira diferente a partir dos anos 70, com o desenvolvimento de novas formas de comunicação e mais recentemente com a Internet. Novas vozes passaram a ser ouvidas e ganhar espaço, logo novas histórias passaram a ganhar destaque. “Vários grupos, essas minorias sociais começam a redescobrir sua própria história e querer escrever uma história maior”, declara a professora. “Você vê essa geração nova tomando os meios de comunicação para dar lugar a outras vozes que não tinham espaço nos meios de comunicação massificada.”

Na Geografia, ela surge como um elemento essencial para a construção do espaço. De acordo Marcos, nas abordagens da cultura, a memória é fundamental para se pensar as construções espaciais dentro de diferentes contextos. A disciplina estuda como cada indivíduo sente e percebe o espaço e como isso marca suas recordações.

Para além das recordações individuais, um grupo também constrói uma memória coletiva sobre o espaço e, consequentemente, representações do espaço a partir dessas experiências do coletivo. Na dissertação de mestrado sobre o Fandango na Ilha dos Valadares, Marcos estudou justamente isso. “Os fandangueiros da Ilha dos Valadares tinham essa lembrança de infância do que era o fandango, dos mutirões que eles faziam nas suas idas às plantações de arroz. Eles vinham com muitas histórias de como era nas diferentes ilhas do litoral.”

Ao saírem de suas ilhas em busca de trabalho no Porto de Paranaguá, os fandangueiros escolheram viver na ilha vizinha ao porto, em vez de na cidade. Não tiveram dúvidas, relata Marcos: “Eles diziam ‘eu sou ilhéu, quero continuar vivendo na ilha’.  As memórias deles, o modo de vida anterior foram essenciais para que escolhessem a ilha como local de moradia.”

Na Sociologia, como na História, na Geografia e em outras áreas, a memória está presente o tempo todo. Ela é o solo sobre o qual a sociologia se constrói. “Estamos sempre trabalhando com isso. Trabalhei e trabalho com movimentos populares. Existe uma documentação que a imprensa faz, por exemplo, na área de ocupação urbana, registrando, num primeiro momento, o enfrentamento entre o movimento [social] e o Estado. O movimento tem outra leitura, os partidos políticos, ainda outra. Tudo isso a gente pode colocar num grande campo de memórias. Sobre o movimento vai prevalecer um tipo de história que na verdade não é real, porque ela não existe. É sempre uma história percebida de um ponto de vista. Então vai depender muito da posição política, da conjuntura política, da condição social, da agenda pública. A cada momento temos uma memória sendo ressignificada”, conclui Maria Tarcisa.

 

Ciência com afeto

A SBPC formou um mar de lembranças para qualquer participante, mas é natural que algumas se tornem as favoritas. Para Eunice, a reunião de 1977 foi a mais marcante. Por medo de retaliação dos militares, nenhuma universidade queria abrigar a reunião anual. Quem aceitou, em cima da hora, foi Dom Paulo Evaristo Arns. Então o evento, que seria em Fortaleza, foi realizado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e sem recursos governamentais.

“Foi um momento lindo, porque a população se mobilizou para conseguir recursos. Artistas, escritores e jornalistas fizeram uma campanha enorme, venderam obras de arte. A população mesmo abrigou os participantes, já que não havia alojamento. Foi um momento de solidariedade, de união em torno da causa da ciência e a favor da democracia”, conta a secretária.

Ela também lembra com carinho da reunião de 1975, quando entendeu o papel e a força da SBPC na sociedade: “Foi em Belo Horizonte. A gente recebeu tantas moções, que o presidente da SBPC da época teve que transferir a assembleia geral para um estádio de futebol.” As moções são críticas, especialmente políticas, que grupos de sócios encaminham à SBPC para que ela tome providências e envie essas questões para os órgãos federais e estaduais. A reunião acabou às 03h da manhã e todos os funcionários e participantes tiveram que voltar a pé. “Foi aí que comecei a ver a importância que tinha a SBPC para o desenvolvimento. Para mim foi um crescente, tenho bastante orgulho de trabalhar na SBPC”, afirma Eunice.

Do evento de 1986, que foi realizado na UFPR, a secretária se recorda bem do frio, da boa organização e da enorme participação. Foram quase 7 mil inscritos e mais de 10 mil participantes. O tema do 38o encontro, “Ciência e Tecnologia – Uma Necessidade Nacional”, foi escolhido, pois a diretoria queria mostrar que o desenvolvimento social e econômico de  que o Brasil precisava – e precisa ainda – passa necessariamente pelas descobertas científicas em todas as áreas do conhecimento.

Já Francisco guarda com carinho os momentos “extra-oficiais”. Jantar em restaurantes novos, assistir um debate ou um concerto musical e até mesmo desbravar novos bares fazem parte da programação que não está no papel e que acontece espontaneamente quando alguém convida.

O cientista também destaca o clima de otimismo e alegria em um evento que celebra o fazer científico: “São todas atividades paralelas que as pessoas participam sem nenhuma obrigação. Vão, porque querem dividir o conhecimento, aprender.” Francisco ainda afirma que “fazer ciência não é essa dor que muitas vezes falam. Existe um prazer maravilhoso em descobrir e produzir conhecimento”.

A SBPC é isso, um momento de aprender e compartilhar ciência. Nas reuniões anuais, o cientista encontra a oportunidade de mostrar à sociedade seu trabalho, assim como de trocar conhecimentos. “É a prova cabal de que a ciência é algo social, coletivo e uma produção que, claro, se faz muito no individual, mas só faz sentido se for socialmente conhecida e reconhecida”, conclui Francisco.

Agência Escola UFPR

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