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Histórias da ciência no Brasil: a Rádio Sociedade do RJ

Cientistas criaram, em 1923, a rádio pioneira no Brasil, com finalidades educativas, culturais e científicas.

 

Cem anos atrás, em 20 de abril de 1923, foi criada por um grupo de cientistas e professores a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro (Figura 1). Pioneira em nossas bandas, não foi fundada por iniciativa estatal nem como uma empresa privada, mas como uma entidade civil, uma sociedade, mantida pelo conjunto de sócios e sustentada pelo trabalho de muitos. Foi uma iniciativa inovadora e de grande impacto. No Estatuto da RS estava colocado o seu propósito: “fundada com fins exclusivamente científicos, técnicos, artísticos e de pura educação popular, não se envolverá jamais em nenhum assunto de natureza profissional, industrial, comercial ou político”. Em 1936 foi doada ao “povo brasileiro”, para ser administrada pelo Estado, por meio do governo federal, e se transformou na Rádio MEC com uma história centenária de inúmeras contribuições à cultura e à educação brasileira.


Figura 1. Fon Fon, 26 de maio de 1923
(Reprodução)

 

O grande motor da criação da RS foi Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), médico, antropólogo, educador e propulsor das comunicações no Brasil. Em 1923 ele mobilizou seus colegas da Academia Brasileira de Ciências, criada sete anos antes, e da qual era secretário-geral. Contou, em particular, com o apoio decidido de Henrique Morize, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), e que se tornou também presidente da RS (Figura 2). O apoio financeiro para a aquisição dos primeiros equipamentos veio de empresários como Demócrito Seabra (tesoureiro da RS) e Carlos Guinle. Com a subscrição de um número expressivo de sócios, e o patrocínio de algumas empresas (poucas) foi possível equipar e manter a rádio por 13 anos com sua característica educativa e não comercial.


Figura 2. Diretores e sócios da Rádio Sociedade (Da esquerda para a direita, sentados): Carlos Guinle, enrique Morize e Luiz Betim Paes Leme; (em pé) Dulcídio Pereira, Francisco Lafayette, Roquette-Pinto, Demócrito Seabra, Mario de Souza, Costa Lima e Nestor Serra
(Reprodução)

 

No início, a ABC e a RS fizeram uma luta exitosa e mais geral, junto ao governo federal, para a liberação do uso (emissão e recepção) da “telefonia sem fio – TSF” ou “radiotelefonia”, como era denominada a transmissão radiofônica. Acabaram com a anacrônica “licença” para a instalação de receptores. Tiveram também que enfrentar muitas dificuldades para o uso de uma tecnologia que era a mais avançada da época. A primeira emissora de rádio do mundo surgira três anos antes nos Estados Unidos. Tinham que aprender fazendo, inventando soluções a cada passo para as dificuldades técnicas e para o conteúdo dos programas. Por muitos anos, a RS (a PRA-2) foi a emissora mais potente da América do Sul. Entre 1924 e 1928, a RS e a ABC ocuparam o “Pavilhão Tchecoslovaco”, construído para o Centenário da Independência do Brasil, na Avenida das Nações (Figura 3). Após a derrubada do prédio, a Rádio Sociedade se transferiu para a rua da Carioca e a ABC permaneceu sem sede fixa por muitos anos.


Figura 3. Pavilhão Tchecoslovaco
(Reprodução)

 

Roquette-Pinto era o apresentador do noticiário da RS, que lia e comentava de viva voz, após uma leitura dos jornais do dia, nos quais assinalava a lápis os pontos principais. Aulas e palestras foram transmitidas pela RS sobre temas variados de ciência e cultura, feitas por cientistas e professores de instituições como o Museu Nacional, a Escola Politécnica e o Instituto de Manguinhos. Exemplos: Química (Mário Saraiva e Custódio José da Silva); Física (Francisco Venâncio Filho); História Natural (Mello Leitão); Botânica (Alberto Sampaio); Higiene (Sebastião Barroso); História do Ouro, (João Ribeiro e Ferdinando Laboriau); Como Nascem os Rios (Othon Leonardos); Marés (Mauricio Joppert); além de aulas de Literatura, Inglês, História, etc. Não foram encontrados registros sonoros desses programas, mas é curioso especular como os ouvintes, com receptores galena e muitos problemas de sintonia e de qualidade sonora, conseguiam acompanhar programas radiofônicos de física, química, geologia, etc.

A RS foi também pioneira e grande divulgadora da música clássica para os brasileiros ao fazer, ao longo dos anos, inúmeras transmissões de concertos e óperas, inclusive integrais. Posteriormente a música popular, por insistência dos ouvintes, ingressou com força na programação. Muito(a)s artistas se apresentaram ou surgiram nos microfones da RS, ou depois na Rádio MEC, como Catulo da Paixão Cearense, Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Edino Krieger e inúmeros outros. Era um complexo cultural que mantinha uma biblioteca, sala de leitura, laboratório técnico, auditório, orquestra, estúdio e que produzia revistas. Foram criadas duas revistas de divulgação científica e de radiocultura. Já em 1923 foi publicada a Rádio, revista de divulgação científica geral orientada para os temas ligados ao rádio. Em 1926, surgiu Electron, publicação bimensal de Rádio Cultura da Rádio Sociedade, distribuída aos seus sócios, com tiragem de 3.000 exemplares, e que trazia toda a programação da Rádio (Figura 4).


Figura 4. Revista Electron, 1924.
(Reprodução)

 

Em 1925, Einstein visitou a RS, após fazer uma comunicação na ABC sobre os quanta de luz (Figura 5). Ele fez uma fala transmitida ao vivo, em alemão (e logo traduzida para o português): “Após minha visita a esta Rádio Sociedade, não posso deixar de mais uma vez admirar os esplêndidos resultados a que a ciência chegou, aliada à técnica, permitindo aos que vivem isolados os melhores frutos da civilização. É verdade que o livro também poderia fazer e o tem feito; mas não com a simplicidade e segurança de uma exposição cuidada e ouvida de viva voz. O livro tem que ser escolhido pelo leitor, o que por vezes traz dificuldades. Na cultura levada pela radiotelefonia, desde que sejam pessoas qualificadas as que se encarreguem das divulgações, quem ouve recebe, além de uma escolha judiciosa, opiniões pessoais e comentários que aplainam os caminhos e facilitam a compreensão: esta é a grande obra da Rádio Sociedade.” Como relatou um jornal da época, a orquestra da RS executou para Einstein as músicas “Visões” de Francisco Braga, “Batuque” de Alberto Nepomuceno, “Magnífico” de Ernesto Nazareth, e “Mulatinho” (de Belmácio Godinho), “choro carioca que mais vivamente impressionou ao grande sábio, provocando-lhe palmas e exclamações de aplausos.” Em 1926, foi a vez de Marie Curie, cujas aulas sobre radioatividade na Escola Politécnica foram transmitidas (em francês) pela RS.


Figura 5. Einstein na ABC e Rádio Sociedade. 8 de maio de 1925
(Reprodução)

 

Já em 1924, o educador João Köpke propôs a Roquette-Pinto um programa dedicado às crianças: “Quarto de Hora Infantil”. Inicialmente com o próprio Köpke, como o “Vovô”, o programa teve um sucesso formidável. Prosseguiu, após a morte de Köpke, com a “Tia Joanna” (Heloisa Alberto Torres) e outras locutoras. Em 1930, entra em cena a “Tia Beatriz”, Beatriz Roquette-Pinto, então com 19 anos, filha do criador da RS, e que o ajudou na rádio desde criança, que passou a fazer o programa, com enorme repercussão junto à criançada da época (Figuras 6 e 7). No programa se respondia também a questões variadas, muitas delas científicas, colocadas pelas crianças.


Figura 6. Beatriz Roquette-Pinto no Estúdio da Rádio Sociedade, em 1931
(Reprodução)

Figura 7. Tia Beatriz. Revista Carioca, n. 25, 11 de abril de 1936
(Reprodução)

 

O surgimento com força das rádios comerciais e as exigências técnicas da nova legislação, estabelecidas pelo governo federal no início dos anos 1930, colocaram em xeque a possibilidade de se manter a Rádio Sociedade com sua filosofia educativa e sua estrutura não comercial. Em 1936, houve uma articulação cuidadosa de Roquette-Pinto com o governo (Figura 8), intermediada pelo Ministro Gustavo Capanema e por Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete, para que a RS fosse incorporada pelo governo federal. Getúlio Vargas deu garantias de que os objetivos originais da emissora seriam mantidos. Corria-se o risco de, nas mãos do Estado, a rádio ser transformada em máquina de propaganda governamental, com o que Roquette-Pinto e seus colegas não concordavam. A RS foi, então, doada ao governo, ficando vinculada ao Ministério de Educação e Saúde, e passou a ser a Rádio Ministério de Educação. Hoje, é a Rádio MEC, que passou por momentos difíceis nos últimos anos, mas que deve e precisa sobreviver.


Figura 8. Carta do Ministro Gustavo Capanema a Roquette-Pinto. 28 de agosto de 1936.
(Reprodução)

 

Finalizemos esta estória, que faz parte importante de nossa História, com palavras de Roquette-Pinto (Figura 9) que traduzem sua visão sonhadora sobre o potencial educativo do rádio:

 

“A radiotelefonia será a maior escola do porvir”. 

“Rádio é o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à escola; (…) o guia dos sãos, desde que realizado com espírito altruísta e elevado.”

“A radiodifusão permitiria educar, instruir e deleitar os indivíduos – mesmo aqueles que não soubessem ler – e, por isso, defendia que o próprio governo deveria incentivá-la.”

“Nós, que assistimos à aurora da radiotelefonia, temos a impressão que deveriam sentir alguns dos que conseguiram possuir e ler os primeiros livros. Que abalo no mundo moral! Que meio para transformar um homem em poucos minutos, se o empregarem com boa vontade, com alma e coração!”

 


Figura 9. Edgard Roquette-Pinto. Década de 1950.
(Reprodução)

 

A Rádio Sociedade foi o produto real de um sonho altruísta de cientistas para a educação, a cultura e a ciência brasileira. Para seu principal mentor, Roquette-Pinto, o importante é sonhar. E também agir, para que o sonho se torne realidade. A Rádio Sociedade/Rádio MEC nasceu assim.

Ildeu de Castro Moreira

Ildeu de Castro Moreira

Ildeu de Castro Moreira é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Recebeu o Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica do CNPq em 2013. É presidente de honra da SBPC, membro do Conselho Editorial de Ciência & Cultura.
Ildeu de Castro Moreira é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Recebeu o Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica do CNPq em 2013. É presidente de honra da SBPC, membro do Conselho Editorial de Ciência & Cultura.
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