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Os desafios de consolidar políticas públicas baseadas em ciência

Em tempos de negacionismo e fake news é ainda mais crucial ampliar o diálogo entre formuladores de políticas públicas e a ciência básica

 

“A história da vida na Terra tem sido uma história de interação entre os seres vivos e seu ambiente. Apenas no período representado pelo século presente uma das espécies – o ser humano – adquiriu poder significativo para alterar a natureza de seu mundo”, escreveu a bióloga Rachel Carson em “Primavera Silenciosa”. Publicado em 1962, o livro foi a semente de um processo de conscientização do quanto a natureza é vulnerável à ação humana, um processo que acabou colocando o meio ambiente na agenda de políticas públicas em todo o mundo. Mais recentemente, a pandemia de covid-19 trouxe à tona o quanto medidas sanitárias baseadas em dados científicos salvam vidas. “A ciência, por meio da investigação sistemática, fornece valor, segurança e confiabilidade às escolhas e ao processo de tomada de decisão, formulação e implementação de política pública. Além disso, uma política pública baseada em evidência tende a ser mais efetiva e eficiente, reduzindo tempo e energia com medidas que pouco alteram o problema social em si. Claro que, a ciência não sendo neutra, a definição do problema, os métodos e os dados denotam escolhas e visão de mundo. A diferença é que essas escolhas estão explícitas e alicerçadas em racionalidades objetivas”, afirma Milena Pavan Serafim, professora da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em tempos de negacionismo e fake news, o desafio de ampliar o diálogo entre formuladores de políticas públicas e a ciência básica ainda é significativo, a despeito de inúmeros exemplos da relevância dessa interação.

No caso brasileiro, um exemplo em que a ciência foi preterida aconteceu na tramitação de três grandes alterações na regulamentação ambiental no Congresso Nacional entre 2005 e 2015, o código florestal, a lei de acesso a recursos genéticos e a regulamentação de pesticidas. Ao analisar esse processo, Flávia Donadelli, professora de políticas e administração pública na Victoria University of Wellington, na Nova Zelândia, conclui que houve baixa incorporação de evidências científicas pelos parlamentares. O motivo, segundo ela, está relacionado ao equilíbrio de poder do Congresso, com predominância da coalizão ruralista. “No Brasil, tais instituições são caracterizadas como gerando uma necessidade média de consenso entre os atores e como pouco inclusivas ou abertas a opiniões divergentes. As decisões são relativamente centralizadas, ou seja, o Congresso é capaz de tomar decisões que contradizem evidências científicas sem grande ônus político e institucional”, pontuou a pesquisadora. Para Donadelli, as barreiras que dificultam a interação entre a ciência e políticas públicas vão além da oferta de evidências. “No caso brasileiro, havia oferta de evidências científicas, mas não houve incorporação”, concluiu Donadelli. (Figura 1)


Figura 1. Um exemplo em que a ciência foi preterida aconteceu no Brasil na tramitação de três grandes alterações na regulamentação ambiental no Congresso Nacional entre 2005 e 2015: o código florestal, a lei de acesso a recursos genéticos e a regulamentação de pesticidas.
(Imagem: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)

 

Em outro exemplo, também no âmbito federal, Natalia Koga, diretora-adjunta de Estudos e Políticas do Estado das Instituições e da Democracia do Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea), detectou que a produção científica tem uma influência baixa sobre as decisões dos servidores envolvidos em políticas públicas. “Sobre esses achados, é importante considerar dois aspectos inicialmente. O primeiro é que estamos falando da influência direta da ciência na decisão dos servidores públicos, isto é, não significa que indiretamente (por exemplo, pelos conhecimentos acumulados ao longo da trajetória educacional dos servidores ou por outras fontes como recomendações de organismos internacionais que talvez sintetizem ou considerem conhecimentos científicos) ela não possa influenciar. E o segundo é que esse fenômeno do baixo uso direto da produção científica não é exclusividade no Brasil. Vemos isso em outros países que fizeram pesquisas similares como Austrália e República Checa”, esclarece.

Para Koga, é necessário explorar formas indiretas de influência da ciência e quem seriam potenciais intermediadores desses conhecimentos. “Os servidores e formuladores de política não costumam procurar artigos científicos ou relatórios de pesquisa quando vão tomar decisões, mas o que eles procuram? Por quê? Será que esses outros recursos têm respaldo científico? Nossos resultados mostraram que eles e elas, em geral, buscam diretamente recursos como normas, estatísticas oficiais, notas técnicas, recomendações dos entes do controle como Tribunal de Contas, entre outros recursos produzidos pela própria Administração Pública. Isto pode indicar uma forma de atuar do nosso Estado que se vale mais de um lastro normativo do que científico para justificar suas ações”, detalha.

 

Diversas formas de interação

Sem descartar a importância da ciência como fonte informacional e de conhecimento para a produção das políticas públicas, Koga lembra que, no dia-a-dia das políticas e dos tomadores de decisão, ela não é a única fonte e não é utilizada apenas de uma mesma forma. “O conhecimento científico certamente contribui para ampliar o entendimento sobre os problemas públicos e pode ajudar a identificar rumos e fundamentar decisões. Contudo, temos que reconhecer que a ciência pode ser utilizada para justificar a posteriori decisões já tomadas, ou seja, não com a finalidade de aprimorar definições e decisões, mas apenas para dar o lastro científico a algo já decidido”, diz. Outros tipos de conhecimento e outros fatores, para além da ciência, interagem quando as políticas são formuladas. “A construção da legitimidade é tão relevante quanto a garantia da racionalidade no processo de formulação de uma política pública. Isto é, não basta uma política pública ser produzida calcada em comprovações científicas, ela precisa ser entendida como legítima por aqueles e aquelas que serão por ela atingidos”, pondera a pesquisadora.

 

“Outros tipos de conhecimento e outros fatores, para além da ciência, interagem quando as políticas são formuladas.”

 

Para o biólogo Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), foi o que aconteceu no processo de concessão de áreas de preservação do Estado de São Paulo, casos da Serra do Mar e a Cantareira, política pública elaborada com base em dados produzidos pelo Biota-FAPESP. “O processo foi feito através de planos muito bem-feitos e discutidos com cientistas e com a comunidade em geral através de conversas com lideranças e audiências públicas. Só depois é que cada concessão foi colocada em licitação”, afirmou. “A ciência é uma importante fonte de informação que deve ser usada em parceria com outras fontes de informação e técnicas, processos participativos, por exemplo, para auxiliar no processo decisório relativo a políticas públicas. É importante ressaltar que a ciência é uma fonte apenas e não deve ser tratada como única ferramenta decisória”, afirma Donadelli. (Figura 2)


Figura 2. O projeto BIOTA visa conhecer, mapear e analisar a biodiversidade do Estado de São Paulo e já contribuiu para a tomada de decisões em políticas públicas.
(Imagem: Iva Castro/Pixabay. Reprodução)

 

“O que vi acontecer na Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente e do Estado de São Paulo (SIMA) mostra que é possível desenhar e implantar políticas públicas embasadas em conhecimento”, contou Buckeridge, que acompanhou os processos de concessão como membro do Conselho do Sistema de Informação de Gestão de Áreas Protegidas e de Interesse Ambiental do Estado de São Paulo (SIGAP). O projeto BIOTA foi lançado em março de 1999 com objetivo de conhecer, mapear e analisar a biodiversidade do Estado de São Paulo, incluindo a fauna, a flora e os microrganismos. Próximo de completar 25 anos, o escopo do Programa também inclui avaliar as possibilidades de exploração sustentável de plantas ou de animais com potencial econômico e subsidiar a formulação de políticas de conservação dos remanescentes florestais.

No caso das concessões de áreas de preservação do Estado de São Paulo, os investimentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – e também do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) principalmente no Programa BIOTA, propiciaram a formação de um banco de conhecimentos inédito na área de biodiversidade. Além disto, a SIMA manteve uma equipe com especialistas capazes de trocar informações de alto nível com a comunidade de pesquisadores relacionada ao tema da conservação. Para Serafim, a profissionalização da gestão pública, com formação e capacitação contínua de seus servidores é justamente um dos desafios para consolidar políticas públicas baseadas em ciência. “Não basta termos os dados, é importante que os servidores públicos saibam fazer boas perguntas e saibam interpretar esses dados”, disse a pesquisadora.

 

Medir, monitorar, melhorar

“É claro que, uma vez em ação, poderão ocorrer mudanças no plano, mas o embasamento científico, na minha opinião, tem maior probabilidade de diminuir erros. Provavelmente também diminui os custos das operações posteriores. Temos que continuar observando e avaliar a eficiência dessa forma inovadora de operar”, explica Buckeridge. Ele destaca ainda a importância de fazer investimentos em pesquisa básica: “Quando tentamos usar somente a pesquisa orientada por problemas, podemos acabar encontrando falta de conhecimento básico que impede o avanço da pesquisa aplicada. Nesses casos, será necessário realizar primeiro as pesquisas básicas, para entender os sistemas e somente depois iniciar a integração dos conhecimentos em um módulo de pesquisa orientada por problemas para subsidiar as políticas públicas. Em outras palavras, se tivermos grande quantidade e variedade de resultados de pesquisa básica, fica muito mais fácil eleger problemas centrais e compilar conhecimentos que levam à ciência orientada por problemas. Só assim se chega nas políticas públicas embasadas”, enfatiza o biólogo.

 

“O conhecimento científico pode contribuir também para produzir diagnósticos, monitorar e corrigir a implementação, e, por vezes, para analisar a efetividade das políticas.”

 

O conhecimento científico pode contribuir também para produzir diagnósticos, monitorar e corrigir a implementação, e, por vezes, para analisar a efetividade das políticas. “Especialmente aquelas pesquisas baseadas em instrumentos informacionais de políticas públicas, como registros administrativos e estatísticas oficiais, colaboram para gerar mapeamentos e diagnósticos sobre a capacidade de atendimento dos serviços públicos e para acompanhar e avaliar as políticas adotadas pelo poder público na resolução de problemas como a pobreza, trabalho infantil, desmatamento e baixa qualidade educacional”, aponta Koga. Para a pesquisadora, um exemplo de como a ciência apoia a produção de políticas é o caso da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (Conitec), que recomenda os medicamentos e tratamentos a serem utilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A escolha dessas tecnologias em saúde passa por uma análise complexa que segue padrões internacionais de avaliação de evidências que garantam a eficácia e a segurança das tecnologias disponíveis e, ainda, considera a relação de custo para o SUS. “O processo de análise envolve consulta a especialistas externos, representantes dos pacientes, da indústria farmacêutica e da sociedade em geral. Podemos dizer que as centenas de recomendações geradas pela Conitec na última década têm possibilitado escolhas mais racionais e legítimas na prestação dos serviços de saúde à população brasileira”, pontua Koga. (Figura 3)

 

Encurtando distâncias

Seja na fase de elaboração, em diagnósticos ou no monitoramento, políticas públicas baseadas em ciência têm mais chance de ser bem-sucedidas com a participação de vários atores. Nesse sentido, é correto dizer que sua implementação inclui uma boa comunicação. No caso das concessões feitas pela SIMA, em São Paulo, o processo envolveu um planejamento estratégico discutido interna e externamente. “Os planejadores se expuseram a vários conselhos e depois fizeram as audiências públicas. O processo como um todo possui uma série de fases que eu chamo de ‘diplomáticas’, em que o plano é explicado, discutido a ajustado através de diálogos com vários atores. É preciso ter equipes muito bem montadas na gestão de governo, capazes de explicar os planos para políticas públicas para vários atores. Os próprios cientistas, como eu, são atores que farão críticas quando o plano de política pública for apresentado”, descreve Buckeridge. “A sociedade deve ser consultada no âmbito das pessoas que serão afetadas direta e indiretamente. Não adianta só ter a ciência se não houver compreensão e aceitação – mesmo que parcial – pelos atores na sociedade. Sem nenhuma dúvida, o elemento transversal mais importante no processo é a comunicação”, complementa o pesquisador.

Outra forma de aproximação entre a produção científica e os formuladores de políticas públicas é a valorização e o incentivo dos programas de extensão universitária. “A extensão é um caminho profícuo para aproximar as universidades dos problemas e questões práticas vivenciados pelos governos e sociedade. E isso passa inevitavelmente pela discussão sobre os sistemas de avaliações e de destinação de recursos dos programas acadêmicos”, destaca Koga. Ainda de acordo com ela, uma segunda frente de ação estaria na reflexão e exploração das ações de comunicação e popularização da ciência. “A pandemia da covid-19 trouxe muitos desafios, mas também novidades nessa área, especialmente com o surgimento de mais atores, ferramentas e dinâmicas de intermediação do conhecimento (knowledge brokerage), como a expansão do jornalismo científico, podcasts especializados, observatórios, etc. Mobilizar e avaliar os resultados dessas iniciativas trarão subsídios para gerar boas ações com essa finalidade”.

 

“Não adianta só ter a ciência se não houver compreensão e aceitação – mesmo que parcial – pelos atores na sociedade.”

 

Já para Donadelli, a presença de cientistas no governo, de forma institucionalizada, aumentaria o equilíbrio de poder e também teria uma função simbólica importante em indicar prioridades governamentais. “Na Nova Zelândia existe a figura do ‘Prime Minister’s Chief Science Advisor‘, uma pessoa encarregada de aconselhar o primeiro-ministro em questões relacionadas ao uso e incorporação da ciência na formulação de políticas. União Europeia e Estados Unidos também mantém consultores de ciência no governo”, explica.

Foi buscando ampliar o impacto da pesquisa na sociedade e encurtar a distância entre a produção acadêmica e a geração de políticas públicas que a Fapesp criou o Núcleo de Pesquisas Orientadas por Problemas (NPOP). Segundo Wagner Caradori do Amaral, assessor da Diretoria Científica da Fapesp, “não se trata somente de usar resultados de pesquisa estocados anteriormente para aplicá-los a problemas emergentes. Trata-se, também, de orientar certa fração da pesquisa para ser concebida, projetada e realizada tendo em mente, desde o início, problemas específicos enfrentados pela sociedade”.

Essa consideração fundamenta a abordagem de Centros de Ciência para o Desenvolvimento (CCD) da Fapesp que visa estimular e facilitar a interação e a colaboração entre pesquisadores e lideranças de setores como Institutos de Pesquisa com missão dirigida, Universidades ou Instituições de Ensino Superior, empresas e/ou organizações não governamentais, e órgãos governamentais. Os CCDs têm a missão de abordar grandes desafios públicos enfrentados pelo governo e, a partir deles, concatenar diversos atores para avançar nas possibilidades de solução correspondentes. Em 2022, foram aprovados 15 CCDs, com investimentos que ultrapassam os R$ 400 milhões. A expectativa é que haja transferência dos resultados para as secretarias do Estado de São Paulo e também para o setor privado.

Um deles é o Centro de Estudos sobre Urbanização para o Conhecimento e a Inovação (CEUCI) cuja missão contribuir para a implantação de áreas urbanas do conhecimento e inovação, em particular aquelas situadas em zonas de franjas ou de expansão urbana, tendo como diretrizes os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Para Serafim, que também é diretora de parcerias do CEUCI, trata-se de uma iniciativa com bom potencial de ampliar a formulação de políticas públicas baseadas em ciência na medida em que esse reconhece a ciência como alicerce fundamental para enfrentarmos os problemas sociais, incentivando maior engajamento por parte da comunidade científica em relação aos problemas locais e regionais. “Além isso, enquanto na Academia temos uma tendência de fragmentar o conhecimento em disciplinas, o formato do CCD propicia a interdisciplinaridade e o aprendizado mútuo, algo muito positivo quando sabemos que a realidade não é fragmentada”, finaliza.

 

Capa. Ciência pode contribuir também para diagnosticar, monitorar, analisar a efetividade e corrigir a implementação de políticas públicas.
(Imagem: Freepik.com/ Reprodução)

MARIUZZO, Patricia. Os desafios de consolidar políticas públicas baseadas em ciência: em tempos de negacionismo e fake news, é ainda mais crucial ampliar o diálogo entre formuladores de políticas públicas e a ciência básica. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.2 [citado  2023-10-16], pp.01-06. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252023000200011&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230027.

 

Patricia Mariuzzo

Patricia Mariuzzo

Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
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