Como a ampliação do conhecimento pode auxiliar no manejo prudente dos recursos naturais
2023 foi definido pela Unesco e pelas Nações Unidas (ONU) como o ano internacional da ciência básica para o desenvolvimento sustentável, visando avançar e alertar sobre a Agenda 2030: um plano de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas adotado em 2015 pela Assembleia Geral da ONU. Dentre os objetivos estipulados para os países-membros, diversos estão explicitamente ligados a avanços científicos. Entre eles estão a erradicação da pobreza e da fome, a saúde e o bem-estar, a educação de qualidade, a energia limpa e acessível, a ação contra a mudança global do clima, a paz, a justiça e a igualdade de gêneros.
“O futuro da humanidade e a ciência são indissociáveis. Sem o investimento no conhecimento dos mais variados processos, como dos ecossistemas, por exemplo, não temos como avançar na mitigação dos efeitos provocados pelo homem para atender às suas próprias necessidades”, declara Luciana Gomes Barbosa, professora do Departamento de Fitotecnia e Ciências Ambientais (DFCA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenadora do GT Meio Ambiente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Desde 2014, mais de 30 países aumentaram seus investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) de forma a alinhar seus compromissos com os ODS’s, segundo o Relatório de Ciências da Unesco publicado em 2021. Houve inclusive, um aumento de 20% nos investimentos globais em ciência e tecnologia entre os anos de 2013 e 2018, sendo a China e os Estados Unidos, juntos, os responsáveis por 63% desse aumento. Apesar do avanço, oito em cada dez países ainda aplicam menos de 1% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em P&D. No Brasil, cerca de 1,15% do PIB é destinado ao setor. Entre o período de 2014 e 2018, o total aplicado em ciências diminuiu quase 16%, com queda de 50% no orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI). (Figura 1)
Figura 1. Investimento em pesquisa e desenvolvimento como proporção do PIB, por região e países selecionados, no período de 2014 a 2018 (%)
(Fonte: Relatório de Ciências da Unesco)
Desenvolvimento sustentável
O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu em 1983 na ONU com o visando atender às necessidades do presente sem comprometer o futuro. Baseado em três princípios básicos interligados – ambiental, econômico e social – o desenvolvimento sustentável destaca o meio ambiente e alerta para a finitude dos recursos naturais. O princípio ambiental diz respeito à preservação e conservação dos ecossistemas, à utilização racional dos recursos naturais e à redução do impacto ambiental das atividades humanas. Já o princípio econômico se refere à geração de riqueza, emprego e renda, à distribuição equitativa dos benefícios e à promoção da inovação e da competitividade. E o princípio social se relaciona à garantia dos direitos humanos, à promoção da igualdade e da diversidade, à melhoria da qualidade de vida e à participação democrática da população.
“A exploração de recursos naturais, o desrespeito aos direitos humanos e as consequências sociais e econômicas são alguns dos fatores que fazem os países entrarem literalmente em uma corrida contra o tempo para repensar seus modelos de desenvolvimento até 2030.”
Para que haja um desenvolvimento sustentável é preciso que governos, sociedade civil e empresas caminhem juntas. “Não pode haver desenvolvimento sem planejamento. Por isso, o papel das ciências, principalmente as básicas, é fundamental no manejo preventivo e precaucional, incluindo uma importância ímpar da ciência em trazer informação ancorada visando mitigar os problemas provocados pela má gestão da natureza e dos bens comuns”, declara José Rubens, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Adoção dos ODS’s
Apesar de empresas e governos se dizerem comprometidos com a temática, na prática, ainda é possível observar que a adoção e implementação dos ODS’s caminham a passos lentos, onde a falta de dados dificulta um monitoramento mais preciso por parte dos órgãos internacionais. Além disso, a exploração de recursos naturais, o desrespeito aos direitos humanos e as consequências sociais e econômicas são alguns dos fatores que fazem os países entrarem literalmente em uma corrida contra o tempo para repensar seus modelos de desenvolvimento até 2030. (Figura 2)
Figura 2. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU
(Fonte: ONU)
“Muitas empresas de combustíveis fósseis, por exemplo, que se comprometem a reduzir as emissões de gases nocivos e a fazer a transição para energias renováveis, avançam em uma velocidade excessivamente lenta, sendo mais um discurso para a venda de uma ideia do que as ações em si”, declara o professor e climatologista Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) para Mudanças Climáticas e m dos autores do Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 2007.
Para Larissa Bombardi, professora da Faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo (USP): “é preciso desmistificar a maneira como a sociedade e o capitalismo se reproduzem sem limites, já que não é possível em um planeta finito haver uma reprodução infinita. Incluindo expressões que escondem atrás de si contradições dos próprios termos para tentar dar uma ‘casca verde’ a algo que não vai ser verde nunca”, alerta. “Como uma sociedade com recursos finitos lidará com essa finitude e com a justiça social ao mesmo tempo? É este desafio e esta amplitude que precisamos discutir”.
Autora do Atlas “Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia” publicado em 2019 e com atualização prevista para este ano, Bombardi cita um exemplo observado em suas pesquisas: “empresas da União Europeia exportam cotidianamente para o Brasil os agrotóxicos proibidos em seu próprio território. E quando indagados sobre este ‘duplo padrão europeu’, os representantes argumentam que não há nada de errado, já que os países que importam é que são livres para decidir o que querem ou não importar. Ou seja, é uma forma de atribuir os males às próprias vítimas”.
Guerra na Ucrânia e o retrocesso no desenvolvimento sustentável
Não bastando o lento crescimento aplicado por parte dos países ao desenvolvimento sustentável, a Guerra na Ucrânia é outro fator que influencia diretamente no aumento da emissão de gases nocivos, no impacto de políticas de desenvolvimento sustentável e na cooperação climática. A instabilidade política derivada da guerra fez com que os países buscassem fornecimento de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás natural, gerando assim uma diminuição nos esforços para a redução das emissões, aplicados por eles em suas matrizes energéticas. “Antes da guerra na Ucrânia nós já vínhamos observando o aumento das emissões de gases nocivos, com exceção do período da pandemia onde houve uma redução de 5% a 7%, devido aos lockdowns em 2020”, explica Nobre. “Mas, depois do fim da pandemia, infelizmente, as emissões voltaram a aumentar e se tornaram as mais altas em 2022, já que o início da guerra na Ucrânia desempenhou um papel direto no que vínhamos tentando reduzir até então”.
“O Brasil, apesar de ter assumido o compromisso com a Agenda 2030, não avançou satisfatoriamente em nenhuma dos ODS’s.”
Segundo o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicado neste ano, a temperatura média mundial já subiu 1,1 grau Celsius, aumentando assim a frequência e a intensidade das ocorrências dos eventos climáticos extremos. As emissões precisam cair imediatamente e serem cortadas quase pela metade para se chegar até 1,5 grau Celsius considerado acima dos níveis pré-industriais (meta estipulada no Acordo de Paris) até 2030. “É muito difícil imaginar que conseguiremos não aumentar ou estabilizar todas as emissões até este prazo, já que, tais medidas e políticas de redução já deveriam ter sido tomadas há pelo menos 10 anos”, declara Nobre. (Figura 3)
Figura 3. A temperatura média mundial já subiu 1,1 grau Celsius, aumentando assim a frequência e a intensidade das ocorrências dos eventos climáticos extremos
(Foto: Gil Leonardi/ Imprensa MG. Reprodução)
Cenário brasileiro para o alcance dos ODS’s
O Brasil, apesar de ter assumido o compromisso com a Agenda 2030, não avançou satisfatoriamente em nenhuma dos ODS’s, segundo apontamento realizado pelo Relatório Luz produzido em 2021 pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil formado por 106 especialistas de organizações não-governamentais, movimentos sociais, fóruns e universidades. Das 169 metas previstas nos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável a serem atingidos até 2030, 54,4% estão em retrocesso, 16% estão estagnadas, 12,4% ameaçadas por cortes de verbas e descontinuidade de políticas públicas e 7,7% tiveram progresso insuficiente. Ainda, quinze metas não puderam ser avaliadas por falta de informações disponíveis. Fatores como pandemia, desmatamento, poluição e o enfraquecimento de investimentos em áreas sociais e pesquisas científicas influenciam diretamente neste cenário. “O Brasil precisa incentivar muita educação ambiental e consciência ecológica. A ciência básica precisa se preparar, saindo de uma visão linear dos problemas ambientais, para uma visão sistêmica e integrativa das questões ambientais”, menciona Rubens.
O país tem qualidade científica comprovada para produzir conhecimento rumo ao avanço de políticas públicas e sustentáveis, contudo, é indiscutível a necessidade de investimento nas áreas sociais e ambientais para avançar nos ODS’s. “Em escala internacional, o Brasil sempre foi liderança e referência em estudos associados à sustentabilidade e inovação, não apenas tecnológica, mas também social”, comenta Barbosa. “Um exemplo é o potencial que esses objetivos propostos pela ONU tem para o setor de inovação. Estamos diante de uma crise climática que nos afeta como sociedade e a sustentabilidade não está na agenda prioritária de vários governos e empresas. Se priorizarmos algumas dessas metas, como água potável e saneamento, contribuiríamos para a melhoria da saúde populacional e da desigualdade também associada a vulnerabilidade e isolamento que a poluição hídrica provoca. Ou seja, isso poderia ser viabilizado através da junção de setores e investimentos em ciência básica.”
Desafios
Não é de hoje que cientistas de diferentes áreas, principalmente os relacionados às disciplinas básicas, concentram esforços para que seus trabalhos possam desempenhar um papel mais significativo na corrida por um futuro mais sustentável. Contudo, os desafios são muitos, impactando na perda de profissionais qualificados nas áreas científicas. Como o caso do fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”, que consiste na saída de profissionais qualificados de países menos desenvolvidos em busca de melhores condições de emprego e renda. Condições insatisfatórias e escassez de novas oportunidades no mercado de trabalho, cenário político-econômico, qualidade de vida e baixo estímulo para setor de P&D são alguns dos motivos. “As ciências humanas carecem obviamente de recursos. O que temos conquistado tem muito mais a ver com comprometimento do corpo científico do que a disponibilidade de recursos que sabemos que não temos no país. Não dá para fazer pesquisa com a precariedade que ainda existe nos setores da ciência”, afirma Bombardi. Para Rubens, não há dúvida que os desafios são muitos face ao que lidamos com problemas altamente complexos e interconectados e que afetam o equilíbrio ecológico do planeta. “O importante é que a ciência continue a buscar um conhecimento plural, interdisciplinar, reflexivo e sistêmico, tendo como alvo uma justiça para um futuro melhor”, declara.
“O desenvolvimento sustentável só será atingido com ações integradas, destacando as preocupações ambientais, dando voz e vez às minorias e lutando contra as desigualdades para ampliação de um conhecimento realista do uso dos processos e recursos naturais.”
O desenvolvimento sustentável só será atingido com ações integradas, destacando as preocupações ambientais, dando voz e vez às minorias e lutando contra as desigualdades para ampliação de um conhecimento realista do uso dos processos e recursos naturais, permitindo assim, uma gestão mais eficiente e sobretudo responsável.
Para Bombardi “é necessário dar um basta no tipo de consumo sem fim que essa sociedade tem, onde novas invenções são feitas em um mecanismo que nos faz crer que tudo isso é necessário, quando na verdade não é. Necessário é a gente viver em uma sociedade que seja justa e igualitária, do ponto de vista social e também ambiental”.