Welcome à era da incerteza

Uma reflexão antropolítica sobre um futuro global

Resumo

“Welcome à era da incerteza” é uma reflexão sobre a complexidade da política global, que se tornou o traço essencial da maioria das abordagens antropopolíticas. No entanto, ainda não foi objeto de uma abordagem filosófica que a inscreva num discurso de fundamentação ou de fixação epistemológica. Centramos a nossa atenção na consciência ecológica e, como mostramos neste texto, a consciência ecológica encontra simultaneamente, de uma forma global e central, o problema da natureza como natureza, o da sociedade como sociedade e o da humanidade como humanidade. Desta forma, podemos complexificar uma política planetária através de uma pluralidade de desafios.

Introdução

Com incêndios incontroláveis, ondas de calor sem precedentes e inundações gigantescas a varrer o globo, será que ainda é possível ficar de braços cruzados sem questionar fundamentalmente a nossa visão do mundo e o nosso modo de vida?

 

O nosso mundo está atravessando um período muito turbulento e estão reunidos todos os ingredientes para um certo número de desafios futuros. Numa altura em que os efeitos do aquecimento global continuam a dar sinais de descontrole – fenômenos excepcionais, subida das temperaturas, inundações, secas, incêndios, etc. – somos confrontados com um novo desafio. Muito recentemente, a ciência ensinou-nos que o sistema de correntes oceânicas que regula o clima de uma parte do planeta poderá entrar em colapso mais cedo do que o previsto.[1] Esse é mais um aviso sério sobre o estado do nosso planeta: diminuição dos recursos de água potável, aumento das “zonas mortas” nos oceanos, perda catastrófica de biodiversidade, desflorestação a um ritmo vertiginoso. Há muito que os cientistas nos avisam que será demasiado tarde para mudar de rumo, chamando a nossa atenção para as políticas de redução das emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e para as medidas de saúde pública.[2] Entretanto, os nossos decisores políticos continuam sonâmbulos face a uma tragédia anunciada.

A crescente influência dos seres humanos no ambiente natural ao longo dos séculos conduziu a desafios globais significativos na encruzilhada da saúde, dos quais a covid-19 não é, infelizmente, uma das manifestações mais recentes.[3] Como Settele argumenta, as alterações climáticas e o aumento de pandemias zoonóticas como a covid-19 são o resultado da interferência humana nos ambientes naturais.[4] Todos nos lembramos do grande confinamento.[5] Assim, mais de três anos após o início da pandemia e a morte de milhões de pessoas, a questão sobre o coronavírus continua a ser controversa e delicada, com os fatos a tremeluzirem no meio de um emaranhado de análises e hipóteses, como enfeites de Natal numa árvore escura e espinhosa.[1]

Neste mundo em convulsão, até os defensores do business-as-usual se comoveram com o estado do nosso planeta. No Fórum Econômico Mundial (Davos), a retórica foi grandiloquente: “a Terra está aquecendo, o gelo está derretendo, os oceanos estão subindo e se enchendo de plástico. Estamos perdendo espécies, acumulando gases de efeito estufa e ficando sem tempo. Perante estes fatos, é tentador ser derrotista. No entanto, há muitas razões para nos regozijarmos. Uma palavra de ordem: ‘sustentável’. Um imperativo que se aplica a todos os domínios da atividade humana – energia, alimentação, vestuário, viagens, cidades, etc.”.[6] Quando este mesmo Fórum Econômico Mundial se reuniu pela primeira vez em 1974, o relatório do Clube de Roma, The Limits to Growth”, já tinha sido publicado em 1972. Segundo este relatório, a análise das causas e das consequências a longo prazo de um crescimento econômico mundial ilimitado conduziria a um futuro “insustentável”. Dennis Meadows e os seus coautores explicaram que os limites ecológicos do planeta (em termos de utilização de recursos e de emissões de gases com efeito de estufa) teriam consequências consideráveis para o desenvolvimento global durante o século XX…[7] Infelizmente, o capitalismo de sempre do Fórum Econômico Mundial nunca quis ter em conta as consequências dramáticas do crescimento exponencial num mundo finito, escritas em preto e branco no relatório de Meadows. (Figura 1)


Figura 1. Fórum Econômico Mundial (Davos) de 2023, com presença de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil
(Foto: Fórum Económico Mundial. Reprodução)

 

No entanto, 50 anos depois, o reducionismo econômico que o próprio homem ocidental engendrou, em particular o neoliberalismo, com o seu dogma do crescimento, da produção industrial em massa de bens materiais e de uma atividade econômica que não respeita o ambiente através da sociedade de consumo, não enfraqueceu. “Quem acredita que o crescimento pode ser infinito num mundo finito é um tolo ou um economista”, escreveu o economista Kenneth Boulding. Como recordou Aurélio Peccei, “o futuro já não é… o que poderia ter sido se os homens tivessem sabido explorar mais eficazmente a sua inteligência e as possibilidades que se lhes abrem. Mas pode ainda tornar-se naquilo que queremos que seja, desde que sejamos razoavelmente realistas” (1983).[8] Esta visão redutora explica-se pelo fato de a nossa relação com a terra, o meio ambiente e a natureza em geral continuar a ser “estritamente econômica, envolvendo apenas privilégios e nenhuma obrigação moral ou cívica, embora toda a evolução nos devesse levar a mudar radicalmente a nossa atitude neste domínio”.[9] Continua a ser uma visão naturalista do mundo.

Encontramo-nos num ponto de virada (turning point) decisivo na forma como entendemos e concebemos o nosso destino comum. As policrises globais estão convergindo, mas a sua simultaneidade não é o resultado de uma infeliz coincidência. São semelhantes a todas as outras que marcaram a história da humanidade. Porém, há uma diferença, na medida em que esta é a primeira policrise verdadeiramente global do nosso século. Trata-se, antes de mais nada, de uma crise de sentido: já não sabemos habitar a Terra [10] e já não sabemos viver com ela e, sobretudo, já não temos imaginação para pensar numa outra Terra. Mesmo que sejamos muito optimistas quanto às capacidades tecnológicas futuras, à capacidade de reciclar ou de economizar as matérias-primas que consumimos, ao controlo da poluição, à “transição” ambiental e ao planejamento, não é surpreendente que a ideia de colapso [11] seja agora tão temida pelas pessoas que teorizam uma “colapsologia”.

A hipótese central deste artigo é que as incertezas que surgiram na sequência da convulsão planetária da pandemia, da escalada da crise climática e do ressurgimento da guerra no coração da Europa são extremamente abrangentes, mas ao mesmo tempo inesperadas e prescientes. Inesperado, porque, por um lado, revela a necessidade de integrar a dúvida e o erro e a multidimensionalidade dos fenômenos no nosso modo de pensar, que deve ser o sine qua non da investigação, do exame e da reflexão. Por outro lado, o inesperado tem um papel a desempenhar no anúncio de catástrofes ecológicas e políticas, que constituem uma oportunidade para novas orientações.[12] Temos de nos confrontar com o problema da evolução do mundo na sua interdependência e globalidade, tentar identificar os limites de um modelo dominante pós-crise e, se possível, evitar reproduzi-los.

Qual é o denominador comum na grande variedade de respostas ao ritmo da mudança e às ameaças ecológicas, climáticas, sociais e políticas? Será a incerteza, o imprevisível? Ou será simultaneamente a dúvida, o erro e as incertezas no conhecimento, na representação e na modelação de sistemas complexos?

 

“Há três anos, as ‘comunidades’ estão mergulhadas numa grande incerteza: sanitária (pandemias, zoonoses), econômica (crise generalizada), política (estreitamento dos princípios democráticos), psicológica (ansiedade, medo do futuro) e moral (enfraquecimento do sentido do dever, corrupção).”

 

Embora a incerteza faça parte da ciência e da investigação há muito tempo, antes do advento da pandemia assistimos a uma espécie de repressão da incerteza na utilização e no raciocínio de certos fenômenos. Como sabemos, em praticamente todos os domínios, sejam eles “da razão” ou não, parece que, fundada ou ilusória, a certeza prevalece sobre a aporia. O desafio, a partir de agora, será o de enfrentar as incertezas.

 

Realidades complexas do mundo

Se reconhecermos que vivemos num mundo complexo, isso tem implicações importantes na forma como compreendemos esse mundo e como atuamos nele. Os sistemas complexos são constituídos por um grande número de relações não lineares. Para compreender esses sistemas, não podemos ter em conta essas relações, pelo que temos de simplificar. No entanto, esse processo reduz a complexidade do que queremos compreender. Não existe uma forma objetiva de o fazer, porque isso exigiria uma posição a partir da qual pudéssemos aceder a toda a complexidade. Este fato tem duas implicações. Em primeiro lugar, significa que o nosso conhecimento das coisas complexas é sempre limitado e incompleto. Uma vez que a redução não é objetiva, mas baseada na escolha, temos, em segundo lugar, que reconhecer que estão sempre em jogo questões normativas quando lidamos com coisas complexas. Essa normatividade pode ser descrita por aquilo a que poderíamos chamar as “realidades complexas do mundo”.

Nesta seção, desenvolverei a ideia de uma incerteza da complexidade política. Uma vez que o nosso envolvimento com coisas complexas não pode ser reduzido a um simples cálculo, esta ética é fundamentalmente provisória e sublinha a responsabilidade que devemos assumir pelas nossas decisões, mesmo que não possamos prever completamente os seus resultados. Uma vez que as nossas previsões não podem ser extrapolações formais, a vontade contém um elemento de criatividade (por oposição ao cálculo). Temos de imaginar certos aspectos dos resultados possíveis das nossas ações. A imaginação adquire assim uma posição central no nosso envolvimento com o mundo, incluindo quando fazemos ciência. Temos de tentar imaginar futuros melhores para criar as condições em que eles possam ser concretizados.

Estamos perante um dilema: será que estamos conscientes das convulsões do passado, será que a transformação de um modo de vida em que para os países ricos seria inegociável ou, como George H. Bush já declarou na Conferência das Nações Unidas para o Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92) em 1992: “o modo de vida americano não é negociável”? Entretanto, o futuro da humanidade está nos cofres dos bilionários senhores da tecnologia digital, que se esforçam por privatizar o nosso futuro com a alegada missão de trabalhar cientificamente para o bem da humanidade. Quando, na realidade, se trata apenas de expropriar o nosso conhecimento e de o controlar através de toda uma série de megaprojetos tecnológicos… tudo apoiado no sonho de conquistar o futuro, para explorar o futuro longínquo, para sermos os únicos senhores… O que significa privatizar o nosso futuro?

Já não estamos nos debates do início dos anos 2000 entre os pessimistas e os otimistas sobre os benefícios da globalização, mas sim numa discussão que se centra hoje sobre o modelo de civilização que queremos: perseverar num modelo de abundância (hybris) ou bifurcar (realmente no sentido de bifurcação) para um modelo de sobriedade (neutralidade carbônica, consumo sóbrio, etc.). A alternativa que se nos coloca coletivamente é a seguinte: será o abismo ou será a transformação.

As perspectivas e a exigência de transformação entraram no espírito das pessoas através de uma tomada de consciência coletiva das questões ecológicas, ambientais, políticas e sociais em jogo. Isto implica abandonar a lógica do produtivismo e do consumismo e dar-lhes um novo significado. Contribuir para a emergência de um “modelo alternativo” e torná-lo um objetivo útil de uma “teoria social” para compreender os desafios atuais das nossas sociedades. André Gorz (2008) [13] disse um dia que “o capitalismo atingiu um limite, interno e externo, que é incapaz de ultrapassar, e que faz dele um sistema que sobrevive por subterfúgio à crise das suas categorias fundamentais: o trabalho, o valor e o capital”. Para ultrapassar esta situação, Félix Guattari afirmava que “para fazer face aos gigantescos desafios do nosso tempo, para reorientar radicalmente os seus objetivos, é necessário passar de uma ecologia do passado, fixada na defesa do que foi alcançado, para uma ecologia futurista, inteiramente mobilizada para a criação”.[14] Voltaremos mais tarde a essa ideia de ecologia do futuro. Mais recentemente, numa entrevista ao jornal diário Le Monde, os antropólogos Philippe Descola e Batiste Morizot argumentaram que a crise climática está inaugurando uma nova epoca em que os conceitos das Luces têm dificuldade de compreender e que precisamos construir uma sociedade com a Terra. A sua mensagem é: “É tempo de tornar o mundo apto para a vida”.[15]

 

Uma incerteza de princípio

“Vimos que a partir de um certo número de interações e interdependências, ou mesmo de um certo grau de complicação, torna-se impossível calcular e compreender os micro-processos de um fenômeno”.[16] Assim, colocar questões sobre o ritmo acelerado das mudanças na nossa história sem ter em conta as interações e/ou interdependências torna-se uma tarefa impossível para a compreensão dos fenômenos. Não esqueçamos que a incerteza não diz respeito apenas a medições e previsões. Diz respeito aos conceitos capazes de dar conta de fenômenos complexos. Assim, o conceito de complexidade do mundo revela um princípio de incerteza humana, que está ligado não só às interações que constituem a organização do “coletivo” humano e não humano, mas também aos conceitos fundamentais necessários para conceber plenamente a vida…

 

“A necessidade de tomada de consciência deve levar-nos a fixar dois objetivos primordiais: por um lado, assegurar a sobrevivência da humanidade e, por outro, fazê-la sair da barbárie em que ainda está mergulhada.”

 

Alguns acreditam que as ameaças estão diminuindo, outros que estão evoluindo a uma velocidade vertiginosa, outros ainda que a evolução acabará por ser positiva, ou apocalíptica, ou mesmo que essas ameaças são das muitas que a humanidade tem de ultrapassar. As ameaças são por vezes entendidas em termos de perdas econômicas, de injustiça ou de riscos existenciais com efeitos irreversíveis. Muito recentemente, por exemplo, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, referiu-se a novas medidas para proteger os norte-americanos “da ameaça existencial das alterações climáticas e do calor extremo”.[17] Podemos assim compreender a importância dada às ameaças em termos de presente e de futuro.[18] Nessa diversidade de pontos de vista, vale a pena destacar o contributo, muitas vezes polêmico, da falácia de que o não acontecimento é uma impossibilidade. Como afirma Dupuy, “um acontecimento que nunca acontece deve ser considerado impossível”.[19] Uma ilustração perfeita disto é o discurso dos pró-nuclearistas franceses, que acreditam que um acidente nuclear na França é impossível! Trata-se de uma espécie de “negação” da importância de um acontecimento.

No entanto, em toda esta diversidade de pensamentos, surge um postulado segundo o qual seria uma convicção moral ligada à própria possibilidade da humanidade perturbar os sistemas naturais de forma consequente. Poderíamos subscrever em parte este postulado, mas penso que, mais do que uma questão de moralidade, é uma questão de ter em conta as nossas incertezas, que são difíceis de aceitar. Por isso, temos de viver e pensar com elas. A primeira incerteza é a incerteza da vida quotidiana: a incerteza do que vai acontecer no futuro. E, apesar das dificuldades da vida, esta não é uma má notícia. Outra incerteza, segundo Ord, “é a incerteza moral: a incerteza sobre a natureza dos nossos compromissos éticos”.[18] No entanto, a necessidade de fazer da policrise uma prioridade global não exige certezas. Certamente, de um ponto de vista moral, haveria uma consciência crescente, ainda que por vezes parcial, dos perigos que ameaçam as nossas “coletividade”, no sentido de Philippe Descola (2022).[20]

Em última análise, este reconhecimento das incertezas é o que caracteriza a atual policrise mundial. A procura de uma saída para as perturbações políticas, climáticas e sanitárias é concomitante em termos de desafios. Além disso, a crise climática, as negociações de ontem em Paris (COP21) e as próximas negociações no Dubai (COP28), juntamente com as múltiplas problemáticas que se entrelaçam numa policrise planetária,[21] realçam a ideia imperativa de uma mudança de “Via” (no sentido moriniano)”, como um processo de transformação em relação ao modelo econômico e político dominante. “O colapso climático começou” (setembro 2023), lamentou o Secretário-Geral da ONU numa declaração em resposta ao anúncio de temperaturas recorde no verão no hemisfério norte.

Há três anos, as “comunidades” estão mergulhadas numa grande incerteza: sanitária (pandemias, zoonoses), econômica (crise generalizada), política (estreitamento dos princípios democráticos), psicológica (ansiedade, medo do futuro) e moral (enfraquecimento do sentido do dever, corrupção). Mais do que uma coincidência, há realidades observáveis que não enganam. Para além das catástrofes sanitárias e econômicas, é o conjunto do modelo civilizacional atual posto em causa por essas catástrofes planetárias. Talvez não seja por acaso que os teóricos do colapso tenham um certo sucesso.

Parafraseando René Passet, “O destino do mundo é o de um confronto teórico – ou ideológico, se preferirem – e o de uma luta pelo poder”.[22] A complexidade do mundo incomoda-nos, porque a compartimentação das ciências conduziu a uma enfermidade do pensamento: embora vivamos numa “sociedade do conhecimento”, sofremos de deficiências cognitivas e/ou continuamos a conceber a nossa visão do mundo em termos de “racionalidade cognitiva instrumental”. Precisamos de um novo impulso para uma política planetária e/ou uma política para a humanidade que salvaguarde o melhor da política de desenvolvimento e o melhor de cada civilização.

Os decisores políticos são como a ciência: compartimentados, dispersos, cada um a cuidar do seu próprio jardim. Por que razão, então, é tão difícil que o objetivo de identificar uma alternativa se concretize na prática? Porque se depara com uma série de interesses econômicos, financeiros e científicos, evidentemente. Mas também, talvez, por uma razão mais sutil e preocupante: a dificuldade de pôr em causa uma visão paradigmática dominante do nosso “coletivo”. As certezas que tendem a prevalecer em todo o lado, impedem um pensamento verdadeiramente radical. Então, como pensamos hoje na ideia de desafios relevantes?

 

“É preciso ‘democratizar a democracia’, o que significa, antes de mais nada, desconstruir o modelo dominante de globalização. Isto pressupõe uma maior integração dos processos de decisão a nível mundial.”

 

Precisamos de começar a moldar um novo imaginário que nos ajude a ler a policrise de uma forma diferente, em outras palavras, a conceber novas questões – ou provas – que sejam diferentes de tudo o que temos teorizado nas últimas décadas. Trata-se de um verdadeiro desafio epistemológico, cujo um dos princípios pode ser retirado da ideia de ruptura epistêmica proposta por Nathan Ballantyne. Segundo o autor, a ruptura epistêmica ocorre quando um cientista ultrapassa claramente o seu campo de estudo e fala sobre um assunto sobre o qual não possui os dados ou o conhecimento necessário para avaliar as provas e/ou os dados.[23] É verdade que as nossas crenças se baseiam apenas parcialmente numa base de provas relevante. É neste sentido que transgredir os limites do conhecimento exigiria, portanto, uma verdadeira invasão epistêmica. Sem querer extrapolar entre, por um lado, uma abundante acumulação de conhecimentos no domínio climático, dando mesmo origem a uma maior sensibilidade ecológica por parte de parte da população e, por outro lado, uma covid-19 em que não dominamos todas as interações científicas, deixando em aberto a sensação de uma ameaça ainda latente e/ou incerta. Como refere David Quammen, a questão das origens da pandemia continua a dividir as pessoas e tem sido frequentemente politizada. Segundo o autor, continuamos a não ter provas suficientes e definitivas, o que faz com que os especialistas sejam por vezes influenciados pelas suas crenças. Isto deve-se, em parte, ao fato das provas que fornecem as respostas terem se perdido ou simplesmente não estarem ainda disponíveis.

Estamos num nevoeiro. Será que o conhecimento destes fatos pode nos levar a pensar de forma diferente nas nossas convicções sobre o nosso futuro? O aparecimento do coronavírus contribuiu, sem dúvida, para uma releitura da nossa visão existencial. Ainda não sabemos como começou a pandemia. As nossas certezas sobre a verdade científica foram destruídas e a ciência continua a não ter certezas sobre a sua origem. Esta é uma questão importante. As prioridades de investigação, a preparação global para a pandemia, as políticas de saúde e a opinião pública em relação à própria ciência serão permanentemente afetadas pela resposta à questão da origem – se alguma vez obtivermos uma resposta definitiva.[1] (Figura 2)


Figura 2. O aparecimento do coronavírus contribuiu para uma releitura da nossa visão existencial.
(Foto: © ACNUR/Allana Ferreira)

 

No momento em que os cientistas lutam para impor os seus conhecimentos, os princípios que proponho esboçam o que seria uma verdadeira narrativa para prever o imprevisível. Como sabemos, os acontecimentos são muitas vezes imprevisíveis, e há muitos exemplos históricos disso: a derrota do exército nazista em 1944, a tragédia humana e ecológica de Chernobyl em 1986, a tripla catástrofe de Fukushima em 2011 e a catástrofe sanitária da pandemia em 2020 foram acontecimentos imprevistos. Ninguém previu a derrota dos nazistas pelo exército soviético, nem as duas catástrofes nucleares: com as autoridades japonesas de segurança nuclear a considerarem que um acidente deste tipo era tecnologicamente impensável. Quem poderia imaginar uma crise sanitária mundial? Por fim, se olharmos para a história das grandes catástrofes, verificamos que elas foram concebidas para mascarar a ideia de que tudo o que é importante é imprevisível. Esses são alguns dos acontecimentos invisíveis na altura, e temos de lidar com o imprevisível. Não sabemos o que é invisível hoje. Pode não haver nada invisível, mas não é certo. Há sempre uma zona obscura, algumas causas ocultas… no coração desta zona obscura, e parafraseando Werner Heisenberg, há um princípio de incerteza. No coração do paradigma da incerteza está o problema da insuficiência da lógica e a necessidade de uma lógica que incorpore o confronto dialético da contradição. A incerteza está, portanto, no próprio coração da lógica. “Há um princípio de incerteza e, como acabamos de discutir, há um princípio de incerteza no coração da lógica”.[24]

 

Uma pluralidade de desafios

Eis-nos, mais uma vez, confrontados com o grande paradoxo: se a globalização – a interdependência de todos os fenômenos planetários – era uma realidade, uma oportunidade e até um risco, estes fenômenos estão conduzindo a uma globalização das ameaças: desequilíbrios da biosfera (ecológicos, climáticos), (bio)tecnológicos (IA, guerra nuclear), sanitários (pandemias), políticos (as democracias estão regredindo em toda a parte), bem como fatores de exclusão e de marginalização (econômicos, sociais, científicos, culturais), etc… Este é um sinal não só de que a consciência está atrasada em relação aos fatos, mas também de que os fatos estão atrasados em relação à consciência. A necessidade de tomada de consciência deve levar-nos, a nós “humanos” (como dizem os Inuit), a fixar dois objetivos primordiais: por um lado, assegurar a sobrevivência da humanidade e, por outro, fazê-la sair da barbárie em que continua mergulhada. Como atingir esses objetivos?

Lançar as bases de uma reforma e de um alargamento do pensamento (filosófico, político, ecológico), reunindo o que está disperso e recuperando a complexidade dos problemas humanos não humanos, é essencial para a fundação deste novo conceito de “Terra”, em que a utopia parece mais realista do que o pragmatismo de gestores tranquilizadores, mas cegos.

Se a policrise é certamente a possibilidade de morte, é também a possibilidade de mudança. A transformação (metamorfose, mutação) que devemos empreender só será possível se aceitarmos que as crises atuais não podem ser resolvidas separadamente. Só podemos responder a uma crise de civilização com uma política de civilização. Não se trata apenas de um chavão ou de uma frase feita para abrilhantar um discurso, mas de uma abordagem global que conduza a um programa concreto e abrangente para enfrentar os desafios do nosso tempo.

Gostaria de retomar aqui uma ideia antiga, mas ainda atual, de Günther Anders (2008),[25] segundo a qual as nossas reflexões acadêmicas sobre aquilo que Toby Ord chama “riscos existenciais e o futuro da humanidade” (2020),[18] devem passar para a necessidade de compreender a situação de urgência vital a que a humanidade se encontra exposta. Precisamos de uma filosofia política que esteja à altura dos desafios do nosso destino comum e que rompa com uma filosofia discursiva abstrata que ignora a realidade das catástrofes. Gostaria de colocar a seguinte questão: qual é a natureza complexa do futuro e como essa natureza modifica a estratégia? Reorientar a nossa trajetória significa, em primeiro lugar, admitir e perceber que a superação do “impasse planetário” [14] em que nos encontramos exige a compreensão de que a humanidade e a biosfera são inseparáveis, e que o futuro de ambas depende igualmente da nossa “comunidade de destinos terrestres”.[26]

 

O desafio do pensamento

Esta policrise amplificou-se e aprofundou-se numa crise do pensamento. Vivemos cada vez mais na dependência de um pensamento disjuntivo e unilateral, incapaz de ligar os conhecimentos para compreender as realidades do mundo onde os assuntos e as atividades interagem.[21] Para ultrapassar essa tendência para disciplinas fechadas, incapazes de conceber a multidimensionalidade e as contradições inerentes a um único acontecimento, é necessária uma verdadeira revolução paradigmática, que rompa completamente com a visão do mundo do passado. Não, não se trata de uma simples mudança, de uma simples permutação, como a permutação entre a Terra e o Sol, para alterar efetivamente toda a nossa visão do mundo. Podemos dizer que, nas teorias científicas, há saltos ontológicos de um universo para outro, eles não se acumulam uns sobre os outros. Ao adotar um modelo crítico não reducionista, Morin convida-nos a afastarmo-nos de um realismo científico reducionista, propondo outra visão do mundo, com interconexões entre laços que se autorreproduzem e auto-organizam, e um método de pensamento baseado num duplo princípio de disjunção e redução, a que chama princípio de simplificação.

A partir do final dos anos 70, a obra de Edgar Morin foi extraordinária, quase heroica (parafraseando Jean Marie Domenach): poética, mitologia, filosofia, biologia, física, pensamento sistêmico, complexo, etc., juntaram-se para constituir a aventura científica do pensamento, e ele esteve em todas as encruzilhadas de uma verdadeira ruptura paradigmática.

Como foi muitas vezes descrito, “a aventura científica é uma aventura complexa em que a incessância empírica da observação, da interrogação e da experimentação trouxe finalmente para o primeiro plano o que tinha sido banido por princípio: a complexidade” [Morin, 1979]. Como diz a ata da universidade de verão, o objetivo é “formular princípios de inteligibilidade complexa” (arquivo, 2010),[27] ou seja, o princípio da universalidade (“não há ciência senão no geral”) deve ser combinado com um princípio de inteligibilidade baseado no local e no singular. O princípio do reconhecimento da irreversibilidade do tempo físico (segundo princípio da termodinâmica) e do tempo biológico (ontogênese, filogenia, evolução) deve ser reproblematizado numa perspectiva de organização antropo-social. Morin propõe a intervenção da história em todas as descrições e explicações. Além disso, insiste em três pontos que, a meu ver, não podem ser ignorados paradigmaticamente: a ideia de que o conhecimento das partes conduz ao conhecimento do todo, que por sua vez conduz ao conhecimento das partes; estamos aqui numa posição muito afastada da lógica holística e/ou do reducionismo (a convicção da multidimensionalidade dos fenômenos); a incontornabilidade da problemática da organização, de que alguns dos princípios acabamos de passar em revista (inter-retroação, auto-eco-organização, etc.); e a incontornabilidade de uma dialógica ordem/ desordem/ interação/ organização em toda a procura de inteligibilidade dos fenômenos) e a inescapabilidade de uma dialógica ordem/ desordem/ interação/ organização na busca da inteligibilidade dos fenômenos.

 

O desafio da democracia

Mais do que uma democracia na defensiva, vivemos uma regressão do nosso sistema democrático. “O paradoxo central do nosso tempo é, sem dúvida, o seguinte. A nossa época pode ser vista simultaneamente como uma época em que o princípio democrático começa a triunfar plenamente e como uma época da sua possível autodestruição”.[28, 29]

A Freedom House, uma organização norte-americana que desde a Segunda Guerra Mundial alerta contra a autocracia e os atentados aos princípios da democracia em todo o mundo, publicou em 2021 um relatório especial sobre um país que geralmente não tem merecido tanta atenção: os Estados Unidos. O relatório sublinha o fato dos Estados Unidos estarem vivendo “uma crise aguda da democracia”. No mesmo ano, o Instituto Internacional para a Democracia – um influente grupo de reflexão com sede em Estocolmo – seguiu o exemplo, acrescentando que, pela primeira vez, os Estados Unidos estavam na lista das “democracias em regressão”. Além disso, e isto é válido para toda a Europa e mesmo para além dela: estamos num período de regressão e de inadequação democrática.

Embora a Europa, no seu conjunto, partilhe um desejo de democracia, isso não significa que esse desejo de democracia esteja sendo plenamente exercido, ou mesmo que a Europa, no seu conjunto, apresente hoje o rosto de uma democracia rica. Existe a sensação de que, neste momento de crise aguda, para ser breve, os cidadãos, e não apenas os cidadãos europeus, são pouco democratas ativos, se não mesmo indiferentes, às aspirações e às conquistas históricas da democracia? Haverá um ponto de virada, uma espécie de indiferença, uma passividade democrática?

Quais são as razões das aspirações a tendências nacionalistas ou mesmo neofascistas desfavoráveis às raízes democráticas? Quais são as principais causas desta negligência, se não mesmo erosão, da democracia?

É preciso “democratizar a democracia”, o que significa, antes de mais, desconstruir o modelo dominante de globalização. Isto pressupõe uma maior integração dos processos de decisão mundialmente. Em termos concretos, isto significa reformular o papel das Nações Unidas nas relações internacionais e democratizar o funcionamento do seu Conselho de Segurança e a sua relação com a Assembleia Geral e o Conselho Econômico e Social. Significa também dar vida, do nível local ao global, a uma “democracia cognitiva” viva, que aproveite a experiência dos cidadãos e redescubra a ambição democrática original: o direito de cada um se ocupar dos assuntos comuns. Em todos os continentes, este regresso dos cidadãos ao centro da deliberação política e da tomada de decisões está dando origem a práticas inovadoras que apontam o caminho para uma necessária “democratização da democracia”, condição prévia para que os cidadãos voltem a tomar os seus destinos nas suas próprias mãos. Chegou o momento de transformar esta comunidade involuntária de riscos numa comunidade voluntária de destinos. Por outras palavras, chegou o momento de construir a interdependência como um projeto, comprometendo-nos – como indivíduos, como membros de comunidades e nações distintas e como cidadãos do mundo – a reconhecer a nossa responsabilidade e a agir, diretamente e através de Estados e Comunidades (infra e supranacionais), para identificar, defender e promover os valores e interesses comuns da humanidade.

 

O desafio de uma eco-nomia diferente

Com a economia a subjugar a condição humana e as finanças a subjugar a economia, as nossas vidas passaram a ter não um valor, mas preços. Uma civilização plenamente humana só pode ser fundada numa ecologia integral, ou seja, na consideração constante do que é infinito nos outros seres humanos e não humanos. Trata-se de criar no nosso tempo, nos nossos vastos territórios e no seio das nossas comunidades, as condições para a renovação da amizade grega, esse sentimento cívico, político e ético, que mantinha a cidade unida. A philia moderna é a fraternidade. Em termos práticos, isso significa ultrapassar o anonimato nas nossas sociedades que, demasiadas vezes, nos isenta do respeito básico que devemos aos outros. As cidades, as zonas suburbanas e as zonas rurais não devem continuar a ser lugares de isolamento e de segregação, mas sim lugares de cultura, de intercâmbio, de partilha, de igual dignidade e de igual criatividade. Esse objetivo, e os valores que lhe estão subjacentes, devem permear todas as políticas erradamente consideradas setoriais, da habitação à saúde, dos transportes à educação, do trabalho à paisagem e à arquitetura.

Os problemas atuais estão enraizados na consciência humana e é preciso enraizar a política que os resolverá. Em termos práticos, isto significa manter e tornar coerente o nosso pensamento sobre a democracia, o ambiente, as relações sociais e uma eco-nomia, não moralizando o capitalismo, mas teorizando outra alternativa ao capitalismo (eco=oikos, que significa casa ou lar; logos, que significa conhecimento; e nomia ou nomos, que significa gestão). Assim, a ecologia integral é o conhecimento da casa ou do lar e a economia é a gestão do lar.

Os modelos microeconômicos que estão na origem da crise financeira e econômica baseiam-se no pressuposto irrealista de que a irracionalidade é totalmente individualizada, isolada, desencarnada e instrumental. Temos de reexaminar a própria forma como usamos a razão, para a tornar capaz de apreender a multidimensionalidade das realidades e reconhecer a interação de interações e feedbacks. O problema reside na transmissão de conhecimentos, em que o ensino está completamente desfasado da realidade da nossa Terra. Os programas e currículos de economia têm muito pouco a ver com o estudo da gestão dos lares da Terra. Uma grande parte do ensino é dedicada à gestão do dinheiro. A economia foi reduzida a uma simples questão de dinheiro.

Passamos da gestão da casa terrestre para a gestão do dinheiro e das finanças no interesse de um determinado grupo de pessoas e não no interesse de todos os membros de um lar terrestre. Sem ecologia, não há economia. No entanto, sobretudo no ensino das grandes instituições e, em geral, nas universidades do mundo, a economia é ensinada como se não houvesse qualquer ligação entre economia e ecologia.

A natureza, que é outro nome para a ecologia, é vista como um mero recurso para a economia, o que, de fato, significa um recurso para maximizar o lucro através de uma produção e de um consumo cada vez maiores. Desta forma, a natureza foi reduzida a um mero recurso. Do mesmo modo, o homem foi reduzido a um recurso para a economia. Chamamos-lhe “recursos humanos”.

A produção, o consumo e a procura incessante de lucro, em nome do crescimento econômico, do progresso e do desenvolvimento, tornaram-se os objetivos mais prezados da economia moderna. A natureza, bem como os seres humanos e não humanos, tornaram-se meios para atingir um fim: são meros instrumentos para aumentar a rentabilidade das empresas e das sociedades. (Figura 3)


Figura 3. A natureza, bem como os seres humanos e não humanos, tornaram-se meios para atingir um fim: são meros instrumentos para aumentar a rentabilidade das empresas e das sociedades.
(Foto: Daniel Beltra/Greenpeace. Reprodução)

 

Temos de ultrapassar os maniqueísmos dogmáticos e as mutilações tecnocráticas que apenas reconhecem realidades arbitrariamente compartimentadas, cegas para o que não pode ser quantificado e que ignoram as complexidades humanas e não humanas. Temos de abandonar a falsa racionalidade. As necessidades humanas nunca são apenas econômicas e técnicas: são sempre emocionais, simbólicas e éticas.

 

O desafio ecológico

A crise ecológica planetária, reconhecida cientificamente desde o início dos anos 1970, ameaça não só a nossa biosfera, mas também os seres humanos e não humanos e as nossas civilizações. O desafio consiste em criar uma nova consciência ecológica global, centrada numa visão anti-antropocêntrica. Um pensamento ecológico que tenha em conta a complexidade dos fenômenos multidimensionais. Esta última justifica-se não só pelas crises ecológicas que vivemos, mas também pelas múltiplas interações complexas que ocorrem na biosfera. A humanidade elevou-se ao cume da natureza – era essa a grande narrativa da “salvação” pelo “progresso” [30]– mas permanece no seio da natureza, segundo os “pós-modernos ecológicos”. Nessa corrida infernal de devastação ecológica, “os seres humanos tornaram-se a escravatura global da biosfera, mas, ao mesmo tempo, escravizaram-se a ela. Tornou-se o hiperparasita do mundo vivo, mas porque é um parasita, ameaça a sua sobrevivência ao ameaçar desintegrar [o Oikos] do qual vive.”[31] A consciência ecológica global está conduzindo a uma consciência antropolítica e levanta a questão da situação da esfera política na biosfera, ou seja, dos seres humanos na natureza. Pode e deve o homem ocupar um lugar diferente na natureza?

O desafio ecológico deve ser acompanhado de uma visão de emancipação e de projetos sociais e políticos, em que possamos emancipar-nos da subjugação da dominação econômica, que impôs a sua forma de ver/controlar o mundo, com indicadores e instituições que favoreceram a acumulação desigual de riqueza por alguns, a fragilidade social de muitos e a depredação e devastação ecológica. Essa consciência ecológica planetária é inseparável de uma nova visão de justiça climática e/ou ambiental e mesmo social. A dívida ecológica que os países do Norte têm para com os países do Sul Global é muito maior do que a dívida externa que os países do Sul têm para com os países do Norte. Para resolver o problema da dívida do Sul Global, é imperativo aboli-la pura e simplesmente e substituí-la por investimentos ecológicos por parte dos países do Sul Global. A ecologia política não pode ser isolada. Pode e deve enraizar-se nos princípios das políticas emancipatórias que animaram a nossa história social e republicana, e que irrigaram a consciência cívica dos povos de esquerda em França e noutros países. Desta forma, a ecologia política poderia apressar o advento de uma grande política da humanidade e do bem comum.

No entanto, nos últimos anos, a consciência ecológica global tem defendido a qualidade da vida humana e não humana. Passar do quantitativo ao qualitativo é uma forma de defender a natureza e o ambiente e, ao mesmo tempo, uma defesa de tudo o que pode ser feito politicamente para evitar a destruição dos nossos recursos naturais no sentido mais amplo do termo. Precisamos de uma política de alcance totalmente planetário, que englobe as inter-retroações entre a biosfera e a esfera antropolítica; a da “consciência ecológica em toda a sua amplitude antropo-eco-planetária”.[32] A visão de uma consciência planetária consiste em perceber todos os fenômenos na sua dimensionalidade e na sua relação com o meio ambiente.

Finalmente, gostaria de terminar essa apresentação com dois pontos adicionais, o primeiro dos quais é ontológico, relativo ao debate ainda em aberto sobre a nossa relação com a natureza, um ponto de vista que partilho com Serge Audier. A ideia de que o debate “permanece em aberto, para nós e para os outros, sobre se devemos renunciar pura e simplesmente ao conceito de natureza […], é evidente que estamos, de qualquer modo, condenados a conceber a ‘natureza’ e a agir com ela de novas maneiras”.[30] A segunda é epistemológica, com a sua ênfase no anthropos como força de transformação do planeta, dando origem à noção de Antropoceno,[33] uma nova era geológica marcada pela marca decisiva e irreversível da humanidade. No entanto, as verdadeiras causas desta hipotética “nova era geológica” permanecem um mistério. A crise ecológica seria, portanto, uma oportunidade/ desafio para abrir caminho a outros imaginários.[34]

 

O desafio social

Esquecemo-nos de que uma sociedade é muito mais do que a soma dos indivíduos que a compõem. “A sustentabilidade social do nosso modelo de desenvolvimento não está mais assegurada do que a sua sustentabilidade ecológica […] Não preciso de vos lembrar a longa lista de problemas cujo agravamento já provocou um recuo geral não só nas práticas mas também nos ideais democráticos à escala mundial”.[28] É nesse contexto que a ideologia capitalista generalizou a mercantilização e o dogma do crescimento, erradicando a dádiva e a contra-dádiva, a solidariedade, o serviço gratuito e os bens comuns não monetários, destruindo assim muitos dos tecidos sociais da nossa comunidade. O desenvolvimento industrial impôs a lógica da máquina, a ditadura da produtividade a todo o custo, do cronômetro e do curto prazo, a precariedade e o sofrimento no trabalho, em cada vez mais sectores da nossa vida. A compartimentação do trabalho, das administrações e, em última análise, das nossas vidas, conduziu a uma burocratização generalizada, ao impedimento da iniciativa e da responsabilidade e, em última análise, à diminuição da nossa qualidade e do nosso poder de vida, como o demonstra o consumo desenfreado de drogas, ansiolíticos, antidepressivos e soporíferos. O desenvolvimento urbano trouxe novas liberdades e atividades de lazer, mas também acelerou a fragmentação das sociedades, que o enorme crescimento das redes de Internet não é suficiente para compensar. Ligadas como nunca, as nossas sociedades são também sociedades da solidão. A evolução da família, para citar apenas um exemplo, trouxe novas liberdades, mas também novas formas de subjugação e de fragilidade. O desafio civilizacional consiste em repensar, no nosso tempo, a relação entre as liberdades individuais e a segurança coletiva. No decurso de uma longa luta iniciada no século XIX, os partidos e sindicatos operários souberam tecer redes de solidariedade eficazes e conquistar uma proteção legítima. A ação histórica do socialismo e dos partidos de esquerda em França e na Europa tinha conseguido criar um Estado-Providência, ao qual a Libertação deu um grande impulso em França.

Mas, sob os golpes ideológicos e as práticas dogmáticas do capitalismo, e também como resultado de profundas mudanças sociais e culturais, a sua eficácia e legitimidade foram enfraquecidas, com a frieza administrativa e uma abordagem contabilística estreita a prevalecerem demasiadas vezes sobre a atenção às necessidades individuais. Por todo o país, há homens e mulheres de boa vontade dispostos a dar o seu tempo, força e calor à criação de novas formas de solidariedade. Cada um de nós é simultaneamente tentado a retirar-se e pronto a ajudar os outros. Os nossos poderes públicos, o Estado, as regiões e os municípios, devem criar as condições para reunir e sintetizar as energias da solidariedade e da fraternidade. A fraternidade tornou-se o elo que faltava no lema da nossa República. Precisamos de criar espaços de encontro que rompam o anonimato moderno, Casas de Fraternidade que reúnam instituições, associações e grupos de todo o tipo que partilhem um objetivo comum de serviço ao próximo e de solidariedade entre cidadãos. Podemos criar um serviço cívico de fraternidade.

Podemos re-humanizar as nossas grandes máquinas tecno-burocráticas e responder à mercantilização de tudo e de todos com uma rebelião ética, uma insurreição da vontade e um renascimento cívico. Podemos optar por cuidar uns dos outros e recorrer às reservas de generosidade que existem em cada um de nós e que estão apenas à espera de serem ativadas por políticas públicas inspiradas em valores partilhados muito para além das fronteiras partidárias, como testemunham tantas iniciativas dos nossos concidadãos no terreno. Desse modo, podemos renovar os laços quebrados pela luta de todos contra todos e tornar possível a aspiração universal de se inventar e de assumir o controlo da sua própria vida.

 

O desafio educativo

A educação é a base da “cidadania global”. São as nossas crianças que forjarão a civilização global deste século cidadão. É a elas que devemos dar os conhecimentos, as competências, o saber-fazer e as chaves para compreender a complexidade do mundo. A nossa missão coletiva foi definida por Jean-Jacques Rousseau no “Émile”: “Quero ensinar-lhe a viver”. Devemos dar aos nossos filhos os meios para enfrentar os problemas fundamentais e globais com que se confrontam cada indivíduo, cada sociedade e toda a humanidade. Estes problemas estão atualmente desintegrados em e por disciplinas demasiado compartimentadas. É necessário reformar o ensino universitário para o tornar transdisciplinar. Mas, no primeiro extremo da cadeia educativa, é igualmente necessária uma reforma da educação e dos cuidados na primeira infância. Os brilhantes resultados obtidos, por exemplo, num país como a Finlândia, mostram-nos a estreita relação entre o bem-estar na escola e o desempenho escolar. Uma vez que a desconfiança que rege as nossas sociedades está enraizada na consciência dos seres humanos desde a mais tenra idade, é na consciência dos seres humanos que a educação para a autoconfiança e para a confiança nos outros deve enraizar-se desde a mais tenra idade.

 

O desafio da política planetária

A Europa, a África, a América Latina, a China, a Índia, etc. não vivem no vazio nem num mundo estático. Pode influenciar o curso do mundo, tal como só pode estar sujeita a ele. Mas a relação problemática que se estabeleceu entre o local e o global, com a impressão desencorajadora de que já não temos qualquer poder para lutar contra a desordem das coisas, é acompanhada por uma dúvida compreensível sobre a capacidade da união Europeia (UE) para encorajar a emergência de uma nova política da humanidade. A necessária mudança do atual modelo dominante de desenvolvimento em relação ao paradigma que o sustenta e a continuação da transformação das estruturas da sociedade atual exigem uma estratégia social e política que nos permita avançar na direção certa e que ultrapasse as visões anacrônicas que nos trouxeram a esse estado de “risco existencial”. Comecemos, portanto, ao nosso próprio nível, por escolher uma política de humanidade exemplar que tenha um impacto global. Comecemos por aplicar nas nossas próprias latitudes o que recomendamos para o mundo e que muitos outros partilham. Em suma, façamos corresponder as nossas palavras aos nossos atos para construir outra forma de viver em conjunto que reconcilie o que durante demasiado tempo foi contrariado por uma cultura colonial ultrapassada, responsável pelas nossas barbáries modernas.

Numa altura em que a era planetária atravessa uma grande crise (ou melhor, uma série de crises concomitantes: ecológica, sanitária, climática, social, econômica, energética, alimentar, ética, etc.), o futuro nunca pareceu tão incerto. As incertezas aumentaram em todo o lado, em tudo. Entramos na “era da incerteza”. A maioria dos governos vê-se confrontada com problemas de tal complexidade que a sua capacidade de os compreender, controlar e, a fortiori, “resolver”, fica seriamente comprometida. Para os decisores políticos, esta complexidade torna cada vez mais difícil conceber soluções simples que sejam aceitáveis para todos. Por quê? Porque perdemos a evolução linear, o futuro programado e as perguntas favoráveis. E cita, como “caso típico de governação complexa”, a preocupante tempestade viral global que levou muita gente a afirmar que estamos todos no mesmo barco.[35]

A urgência das situações atuais não deve fazer-nos esquecer que as soluções não existem enquanto tais. Nem deve fazer-nos esquecer que a capacidade das sociedades humanas para darem conta das questões globais dependerá de uma capacidade geral de partilhar diagnósticos, certamente, de debater propostas, certamente, mas, mais ainda, de assumir uma série de desafios que implicam uma série de reformas. Esta perspectiva deve ter como objetivo definir condições de convivência com o ambiente, a ética, a política, etc. Qualquer abordagem que seja mais fundamental do que investir em possíveis reformas de estruturas, sistemas ou circuitos específicos, ou instituições que só podem ser consequências do primeiro ato acima previsto (desafios). Reforma, outra palavra cujo significado não escapou à lamentável simplificação política. Onde havia complexidade, havia simplicidade. Lamentar este fato é uma coisa, mas criar as condições para uma revisão profunda desta terminologia exige também um trabalho aprofundado Pena-Vega (2009).[36]

Encontramo-nos agora numa encruzilhada. Há dois caminhos que se abrem para nós, mas não são igualmente belos. Aquele que continua a trajetória que já seguimos há demasiado tempo é enganadoramente perigoso. É o caminho onde tudo se desmorona no início deste século,[37] no momento em que nos prometem todas as velocidades, o imediato, mas também a falta de uma compreensão profunda da história e da coletividade humana e não humana, que conduz diretamente ao desastre. O segundo caminho não é de modo algum uma vitória garantida, mas oferece-nos – quem sabe – a nossa última e única hipótese de chegar a um destino que garanta a preservação da nossa “civilização”. Essa reflexão apenas dá uma ideia da imensidão deste trabalho, das lutas, das tomadas de posse e, além disso, oculta o fato que existe realmente uma escolha: não o happy end de uma solução discursiva, mas um happy beginning através da ação, através de uma possível transformação social radical…[38]

 

Capa. Período turbulento traz questionamentos sobre o futuro da América Latina.
(Foto: Alexander Schimmeck/ Unsplash.com)

PENA-VEGA, Alfredo. Welcome à era da incertezauma reflexão antropolítica sobre um futuro global. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.3, pp.1-15. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230034.
[1] QUAMMEN, Davin (2023). The Ongoing Mystery of Covid’s Origin. The New York Times.
[2] KLENERT, D.; FUNKE, F.; MATTAUCH, L.; O’CALLAGHAN, B. Five Lessons from COVID-19 for Advancing Climate Change Mitigation. Environmental and Resource Economics, n. 76, p. 751-778, 2020.
[3] GOUDIE, S. A. Humain Impact on the Natural Environment. Pass, Present and Future. Oxford: Wiley Blackwell, 2019. 457 p.
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[5] LATOUR, Bruno (2021). Où Suis-je ? Leçons du confinement à l’usage terrestre. Les Empêcheurs de Penser en Rond.
[6] DAVOS. World Economic Forum. Davos, 2021. Disponível em: https://www.weforum.org. Acesso em: 13 maio 2021.
[7] Meadows, Randers, 2004 – MEADOWS, Denis, MEADOWS, D. ; RANDERS, J. Les limites à la croissance. The 30- Year Update. Paris : Edition Rue de l’Échiquier, 2004. 394 p.
[8] PECCEI, A. Agenda for the End of the century. In: CONFERENCE BOGOTA. Development in a World of Peace. Bogota : Club of Rome, 1983.
[9] AUDIER, Serge (2020). La cité écologique. Pour une éco-républicanisme. Paris, La Découverte.
[10] MORIZOT, Batiste (2020). Manières d’être vivant. Actes Sud.
[11]TAINTER, J. The Collaphe of Complex Societies. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. 250 p.
[12] CYRULNIK, Boris (2021). Des âmes et des saisons. Odile Jacob
[13] GORZ, André (2008). Ecologica. Paris, Galilée.
[14] GUATTARI, Felix (2013). Qu’est-ce que l’Ecosophie? Paris, Editions Lignes
[15] TRUONG, Nicolas.« L’Inexploré », une invitation à redécouvrir ce qui nous relie à nos milieux de vie. Le Monde. paris. 9 de junho de 2023. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2023/06/09/l-inexplore-une-invitation-a-redecouvrir-ce-qui-nous-relie-a-nos-milieux-de-vie_6176848_3232.html
[16] MORIN, Edgar (1980). La Méthode II. La vie de la vie. Editions du Seuil.
[17] NOOR, Dharma. Biden announces new measures to protect Americans from extreme heat. The Guardian. 27 de julho de 2023. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2023/jul/27/biden-extreme-heat-worker-protection
[18] ORD, T. The Precipice. Existential Riskan the Future of Humanity. Londres: Bloomsbury Publishing, 2020. 468 p.
[19] DUPUY, Jean Pierre (2021). La catastrophe ou la vie. Pensées par temps de pandémie. Paris, Éditions du Seuil.
[20] DESCOLA, Philippe, PIGNOCCHI, Alessandro (2022). Ethnographies des mondes à avenir. Editions du Seuil.
[21] MORIN, Edgar. Edgar Morin: ‘France’s crisis must be situated in the complexity of multiple global crises and in the context of the decline of democracies’. Le Monde. Paris. 8 de agosto de 2023. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/opinion/article/2023/08/08/edgar-morin-france-s-crisis-must-be-situated-in-the-complexity-of-multiple-global-crises-and-in-the-context-of-the-decline-of-democracies_6085549_23.html
[22] PASSET, R. Eloge du mondialisme par un “anti” présumé. Paris, Fayard, 2001. 167 p
[23] BALLANTYNE, Nathan. The significance of unpossessed evidence. The Philosophical Quarterly, Oxford, v. 65, n. 260, p. 315-335, 2015.
[24] PENA-VEGA, Alfredo (2017). “Dialoguer avec l’incertitude. Quand le doute est une chose sûre et les connaissances incertaines.” Gazeta de antropología 33.
[25] ANDERS, Günther (2008). Hiroshima est partout. Paris, Editions du Seuil.
[26] MORIN, Edgar (1993). Terre-Patrie (avec Anne-Brigitte Kern), Editions du Seuil.
[27] MORIN, Edgar. Le paradigme perdu : la nature humaine. Paris : Éditions du Seuil, 1973. (Coll. Points Essais, n. 109). 240 p.
[28] SECOND MANIFESTE CONVIVIALISTE (2020). Pour un Monde Post- Néolibéral. Actes Sud.
[29] CAILLE, Alain/Les convivialistes (2016). Eléments d’une politique convivialiste. Le Bord de l’eau.
[30] AUDIER, S.La cité écologique. Pour une éco-république. Paris: La Découverte, 2020. 747 p.
[31] MORIN, E. O paradigma perdido: a natureza humana. 4.
ed. Portugal: Publicações Europa-América, 1988. 222 p.
[32] MORIN, E. Terra-Pátria / Edgar Morin e Anne-Brigitte Kern / traduzido do francês por Paulo Azevedo Neves da Silva. — Porto Alegre: Sulina, 1980.
[33] CRUTZEN, Paul (2002). Geology of Mankind, Nature (6867)
[34] ZALASIEWICZ, Jan (2019). Atlas de Anthropocene (sous la direction de Fraçois Gemenne, Aleksandar Rankovic). SciencesPo Les Presse.
[35] ZIZEK, Slavoj (2020). Dans la tempête virale. Actes Sud
[36] PENA-VEGA, Alfredo (2009). Pour une politique de l’humanité (sous la direction d’Edgar Morin). Editions Atlantique.
[37] VIRILIO, P. The Art of the Motor. U of Minnesota Press, 1995 – 168 p.
[38] PENA-VEGA, Alfredo (2023). Terre-Patrie (sous la direction, Martin Hebert, Francine Saillant, Sarah Bourdages
Alfredo Pena-Vega é professor/pesquisador em socioecologia no Instituto de Antropologia Política, antigo IIAC-Centro Edgar Morin, École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS-CNRS), Paris, diretor cientifico do programa internacional, Global Youth Climate Pact.

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