C&C 3E23 - reportagem - 50 anos do golpe no Chile - capa site

50 anos do golpe no Chile

Cinquentenário do golpe de 1973 é uma oportunidade para refletir sobre os desafios enfrentados na busca por justiça, igualdade e democracia na América Latina

 

“Enterramos a nossa democracia e enterramos nossa liberdade”. É assim que a escritora chilena Isabel Allende relembra o golpe militar de 11 de setembro de 1973 em entrevista para a Anistia Internacional. O aniversário de 50 anos do golpe reacende o debate sobre uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, que deixou mais de três mil mortos e desaparecidos e 40 mil presos e torturados, além de forçar cerca de 200 mil chilenos ao exílio – incluindo Isabel Allende. E também convida a refletir sobre o impacto que teve sobre toda a América Latina.

Em um áudio revelado este ano pela CNN Chile, o chanceler chileno Orlando Letelier relatou um almoço com o então presidente Salvador Allende no qual discutiram a aposentadoria de generais militares que ameaçavam se insurgir contra o governo e o anúncio de um plebiscito para uma nova Constituição. Os comandantes militares não estavam satisfeitos com o primeiro socialista alçado ao poder pelo voto popular nas Américas e com os rumos do novo governo. Antes que Allende pudesse convocar o plebiscito popular, o Palácio de La Moneda, sede da Presidência do Chile, foi cercado e bombardeado por forças militares. Os militares tomaram o poder, Salvador Allende morreu, e Augusto Pinochet iniciou a ditadura que duraria até 1990.

“A ditadura chilena foi uma das piores da América Latina, pela crueldade, níveis
de violência e também, ou sobretudo, pela aniquilação da soberania do país e pela
imposição de uma política que em seguida seria vendida para o mundo ocidental: o
neoliberalismo”, afirma Vinício Carrilho Martinez, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFScar).

Após o golpe, Pinochet promulgou uma nova Constituição em 1980, que estabeleceu as bases do regime autoritário e limitou a responsabilidade do Estado na promoção de direitos sociais e igualdade. Essa Constituição também criou mecanismos de autodefesa que dificultaram mudanças políticas substanciais. No entanto, em 1988, Pinochet perdeu um plebiscito que decidiria se ele poderia continuar como presidente e em 1990 Patrício Elwin, representando a Concertación, tomou posse como primeiro presidente eleito após a ditadura. “Mas isso não significou a abertura de uma fase de democracia plena”, explica Alberto Aggio, professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Segundo o pesquisador, depois da derrota no plebiscito de 1988 era preciso fazer reformas na Constituição para que os partidos pudessem voltar a existir e disputar as eleições. Nessa rápida transição, Pinochet negociou duramente com a Concertación e impôs, em um novo plebiscito realizado em 1989, o que ficou conhecido como “enclaves autoritários”: um conjunto de normas que manteve o pinochetismo como uma sombra autoritária sobre a democracia recém-conquistada. “Foram necessários vários anos para que se suprimissem esses ‘enclaves autoritários’. Assim, o que se tem depois da retomada da democracia são governos submetidos a uma camisa de força imposta pelo autoritarismo”.

 

“O aniversário de 50 anos do golpe reacende o debate sobre uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, que deixou mais de três mil mortos e desaparecidos e 40 mil presos e torturados.”

 

Desta forma, o novo governo eleito não convocou uma Assembleia Constituinte para invalidar a Carta Magna pinochetista e substituí-la por outra mais adequada à democracia. “A reprodução ‘transformista’ operada pela Concertación consistiu precisamente na exitosa reciclagem durante a redemocratização das instituições socioeconômicas da ditadura, de sua concepção despolitizada da política e de sua cultura individualista, competitiva e aquisitiva”, explica Jales Dantas da Costa, professor no Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB). “A Concertación atuou sem questionar as finalidades impostas pela ditadura. Procederam como se o capitalismo neoliberal e sua democracia semi-representativa fossem os espaços naturais do convívio social”, pontua.

 

Nova constituição, velhos problemas

A redemocratização do país disfarçava uma série de problemas sociais que foram se agravando até “explodirem” em um grande levante popular, conhecido como “estallido social“. O estopim dos eventos foi o aumento da tarifa do sistema de transporte público de Santiago. Isso desencadeou uma série de protestos que se iniciaram em outubro de 2019 e continuaram até março de 2020. Os protestos se espalharam rapidamente por todo o país, com muitos distúrbios violentos. A situação levou o então presidente Sebastián Piñera a decretar estado de emergência e toque de recolher. (Figura 1)

 

O que começou como um protesto contra o aumento das tarifas do transporte público na verdade carregava uma longa lista de insatisfações: alto custo de vida (até 2019, Santiago era a segunda cidade mais cara da América Latina); elevados preços nos transportes, medicamentos e tratamentos de saúde; e uma rejeição generalizada de toda a classe política e do descrédito institucional acumulado nos últimos anos, incluindo a própria Constituição do país. O resultado foi uma série de medidas, denominadas “Nova Agenda Social”, que incluíam providências relacionadas com pensões, saúde, salários e administração pública.

“Os níveis de dessocialização, desconstrução do humano – o que também se
denomina de estranhamento e de brutalização –, foram tão acentuados que a
sociedade chilena está repartida em duas”, explica Vinício Martinez. “É como se uma parte ainda lutasse por justiça, reparação e penalização dos carrascos – apesar de já terem avançado – e a outra metade (digamos assim) ainda se mantivesse crente nos resultados trazidos por Pinochet”, diz. Para o professor, um exemplo da magnitude da fissura social está na recusa do projeto normativo da Constituinte chilena.

“Acredito que o estallido social acirrou a polaridade”, explica Jales Costa. “De um lado, o ímpeto popular de trabalhadores, desempregados, marginalizados, empobrecidos, indignados, estudantes, professores, indígenas, representantes dos mais diversos movimentos sociais, etc., que imprimiram um rotundo ‘não’ a figura e ao legado de Pinochet – como prova o rechaço da Constituição vigente e o plebiscito para elaboração de uma nova Constituição. Por outro lado, fortaleceu o apoio a sua imagem e seu legado não apenas por parte de conservadores, reacionários e contrarrevolucionários, como também parte de moderados apavorados com a explosão social”, pontua.

 

“O golpe liderado pelo general Augusto Pinochet em setembro de 1973 no Chile não foi um incidente isolado na América do Sul.”

 

Um acordo transversal entre o Governo e o Congresso acordou a convocação de um plebiscito nacional para definir a elaboração de uma nova Constituição. O plebiscito, realizado em 2020, apontou que 78% da população chilena aprovava a criação de uma nova Carta Magna. No entanto, em outro plebiscito, realizado em 2022, 61,8% da população rejeitou a primeira proposta dessa Constituição. Um ano após a derrota da nova constituinte e 50 anos após o golpe militar de Pinochet, uma nova proposta da Carta Magna está sendo elaborada por um órgão eleito em maio e dominado por uma direita ultraconservadora. A Nova Constituição deve ficar pronta em dezembro deste ano, quando será submetida novamente a voto popular.

 

Direitos humanos: violação e reparação

“A ditadura chilena legou para a sociedade uma série de violações de direitos humanos e uma cultura de impunidade”, afirma Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Segundo a pesquisadora, a ditadura pinochetista foi caracterizada pela violência aos direitos humanos e por repressões sem precedentes. Protestos populares foram combatidos com prisões, exonerações, tortura, execuções, desaparições, exílios e censura. A violência sexual era uma parte horrível dessa repressão, com a maioria das mulheres sofrendo abusos, incluindo estupro, durante a prisão. Muitas delas deram à luz crianças concebidas em meio a essas atrocidades. A Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura registrou que 94% das pessoas detidas sofreram torturas diversas, incluindo choques elétricos, simulação de fuzilamento e asfixia.

Mas as violações não pararam por aí. Outras ações, mais sutis, também tiveram um terrível impacto negativo na população chilena. Os direitos trabalhistas e sociais conquistados durante o governo de Allende foram desmanteladas sob o regime de Pinochet, com milhares de pessoas sendo demitidas de seus trabalhos ou expulsas de suas terras. “Os relatórios das Comissões da Verdade (1991, 2001, 2004, 2011) escancaram, além das mortes (3.216 pessoas) e as torturas (38.254), os exílios (cerca de 200 mil pessoas), as demissões em massa (cerca de 230 mil pessoas), o roubo de terras indígenas e camponesas (mais de 7 milhões de hectares), etc.”, aponta Jales Costa. (Figura 2)


Figura 2. A ditadura chilena deixou mais de três mil mortos e desaparecidos, 40 mil presos e torturados e cerca de 200 mil exilados.
(Foto: Arquivo/Memorial dos Direitos Humanos. Reprodução)

 

Embora medidas reparadoras tenham sido tomadas para condenar repressores e reconhecer as vítimas, a ascensão da extrema-direita no cenário político chileno tem levado à relativização desses abusos, com tentativas de favorecer torturadores por meio de uma legislação controversa. O governo acaba de lançar o Plano Nacional de Busca de vítimas de desaparecimento forçado sob o regime Pinochet – uma demanda histórica. Para Caroline Bauer, é preciso empregar esforços para a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, para a elucidação de seus assassinatos (principalmente com a disponibilização dos arquivos da repressão) e para a responsabilização dos implicados. Esses trabalhos devem construir e difundir valores que tornem a violação de direitos humanos e sua apologia incompatíveis com a ordem democrática. “A luta de indivíduos e organizações de direitos humanos foi fundamental para a denúncia do que acontecia no Chile, e para que fossem tomadas providências no pós-ditadura para a investigação do que fora a ditadura pinochetista. Nesse sentido, também podemos falar que essas pessoas e esses grupos foram fundamentais para a consolidação da democracia, já que esse sistema é fragilizado quando os direitos não são garantidos a todos, e o passado é tratado com impunidade”, enfatiza a pesquisadora.

 

Cenário latino-americano, ontem e hoje

O golpe liderado pelo general Augusto Pinochet em setembro de 1973 no Chile não foi um incidente isolado na América do Sul. Naquele período, a região testemunhou uma série de golpes militares com características comuns, como o contrarrevolucionarismo declarado, a intensa repressão ilegal que resultou em milhares de vítimas, a coordenação entre os regimes militares por meio da chamada “Operação Condor” e a influência direta dos Estados Unidos na promoção e configuração desses governos militares. O Brasil vivia há nove anos sob um regime militar que duraria 20 anos. A Bolívia era governada pelo general Hugo Banzer. No Uruguai, governava Juan María Bordaberry, que mais tarde seria preso por crimes contra a humanidade. Na Argentina, as Forças Armadas tomariam o poder em 1976.

 

“O cinquentenário do golpe de 1973 no Chile é uma oportunidade de compreender a história compartilhada da região e refletir sobre os desafios enfrentados na busca por justiça, igualdade e democracia.”

 

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a nova junta militar do Chile. Documentos revelados posteriormente evidenciam a cooperação brasileira nos “interrogatórios” realizados no Estádio Nacional de Santiago, que havia sido convertido em centro de prisioneiros. Isso teve implicações geopolíticas e de exílio para o país. “O que ocorreu no Chile, da vitória de Allende até o golpe de Estado de 1973, impactou toda a esquerda ocidental pelo caminho que o presidente eleito assumiu: construir o socialismo pela democracia”, explica Alberto Aggio. “Pode-se ver o Chile de Allende, historicamente, como um ponto de inflexão na cultura política da revolução que marcou o século XX latino-americano e mundial”, diz.

A queda e morte de Salvador Allende no Chile representaram uma virada na história da esquerda internacional, marcando a transição entre duas eras. No contexto atual, sua morte ainda ressoa como um lembrete da importância de lutar por convicções e princípios, independentemente das adversidades e desafios enfrentados ao longo do caminho. Jales Costa pontua que, para os latino-americanos, se trata também de compreender o quão longe pôde chegar à experiência ao socialismo chileno e os porquês de sua derrota, e não apenas compreender os tristes anos sombrios. “É certo que durante o primeiro ano da revolucción chilena, a utopia socialista identificada com ‘os de baixo’ se fez mais viva que nunca, precisamente porque sonhos se fizeram reais. É também certo que a ditadura de Pinochet transformou sonhos em pesadelos e enterrou o quanto pode a utopia socialista, que de fato se esboroou. E que o Chile Actual encontra dificuldades para mantê-la acesa e irradiá-la”.

Para Vinício Martinez, a ditadura chilena não só impactou a América Latina como ainda reflete em nossos dias. “A ditadura chilena foi um nefasto experimento sociometabólico do capital, com requintes de crueldade, vilipêndio humano, de acordo com os piores valores econômicos e sob a égide dos piores níveis de psicopatia imagináveis. Por isso e por tudo que tratamos aqui hoje, é um alerta máximo de que a luta política no combate ao Fascismo renitente (e procriado) deve ser constante, atuando-se nos lares, nos bares, no trabalho, nas ruas, nos grupos sociais, nas escolas”, alerta.

O cinquentenário do golpe de 1973 no Chile é um momento de reflexão não apenas para os chilenos, mas também para toda a América Latina. É uma oportunidade de compreender a história compartilhada da região e refletir sobre os desafios enfrentados na busca por justiça, igualdade e democracia. A construção de uma nova Constituição chilena e os debates em torno dela são passos cruciais nesse caminho contínuo. “Porque estamos diretamente relacionados com as políticas desenvolvidas na região nos anos 1960 em diante. Esse passado não se encontra dissociado do presente. As ditaduras podem ter acabado; muitas de suas consequências, ideologias e práticas, não”, conclui Caroline Bauer.

 

Capa. Palácio La Moneda, sede da Presidência do Chile, é atacado por soldados em 11 de setembro de 1973
(Foto: AFP/ Reprodução)

BUENO, Chris. 50 anos do golpe no Chile: cinquentenário do golpe de 1973 é uma oportunidade para refletir sobre os desafios enfrentados na busca por justiça, igualdade e democracia na América Latina. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.3 [citado  2024-02-15], pp.1-5. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252023000300011&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230043.
Chris Bueno

Chris Bueno

Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
Chris Bueno é jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência).
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