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Plataforma Lattes: pioneirismo que se funde com a história da ciência nacional

Com primórdios na década de 1980, sistema é referência internacional de documentação científica

 

Prestes a completar 25 anos de história, a Plataforma Lattes é um dos principais bancos de informações sobre quem fez e faz ciência no Brasil. Com cerca de oito milhões de currículos  registrados, entre estudantes, técnicos e pesquisadores, centenas de dados sobre pesquisas, grupos de estudos e instituições de Ciência e Tecnologia (C&T), essa espécie de vitrine acadêmica não apenas organiza e disponibiliza dados, mas também preserva, de forma sistematizada, mais de duas décadas de progresso científico nacional, com ramificações internacionais ao redor de todo globo. Com tamanha relevância no cenário de C&T, discutir o passado da plataforma, assim como as perspectivas futuras, é essencial para permitir que ela continue crescendo junto com a ciência – e atendendo às demandas de uma sociedade cada vez mais dependente desses pilares.

Entender as origens da Plataforma Lattes é viajar para o passado e aterrissar na década de 1980, quando os registros sobre a carreira de pesquisadores e estudantes eram guardados em arquivos físicos em meio a diversos outros documentos. Esse modo de organização, anterior à popularização dos arquivos digitais, foi capaz de alimentar o fazer científico por vários anos, mas se tornou um problema na medida em que as pilhas de papel cresciam junto com o número de informações. Mergulhados em meio a centenas de folhas e pastas, os dados necessários para dar andamento a processos burocráticos eram difíceis de encontrar e tornavam práticas cotidianas, como a concessão de bolsas, extremamente demoradas. Foi nesse cenário que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) notou a necessidade de remodelar o sistema e criar novas estratégias mais eficientes para o armazenamento de informações. Esse foi o pontapé inicial para a criação da Plataforma Lattes.

Os primeiros passos da plataforma foram bem distantes do banco de registros on-line e tecnológico a que temos acesso hoje. O bisavô desse sistema foi um Banco de Currículos nos anos 1980 que contava com formulários de captação em papel e etapas posteriores de digitação, misturando o físico e o digital. Já no final da década de 1980, o CNPq passou a utilizar a rede BITNET, precursora da Internet no Brasil, para disponibilizar a base de currículos – composta, na época, por cerca de 30 mil deles – para as instituições de pesquisa. A criação de um formulário eletrônico, no entanto, só se deu nos anos 1990 e consistia no envio de disquetes, pelos próprios pesquisadores, contendo as informações que seriam carregadas na base de dados pela equipe do CNPq. Pouco depois, o Conselho decidiu, com uma colaboração entre o Governo, Universidades e empresas, utilizar os conhecimentos mais avançados em informática do final do milênio para desenvolver um novo currículo totalmente on-line e capaz de integrar todas as versões já existentes. Assim, em agosto de 1999, o CNPq lançou o Currículo Lattes como único modelo a ser utilizado no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia e do CNPq.

 

“Essa espécie de vitrine acadêmica não apenas organiza e disponibiliza dados, mas também preserva, de forma sistematizada, mais de duas décadas de progresso científico nacional, com ramificações internacionais ao redor de todo globo.”

 

O novo formato permitiu organizar a produção científica nacional de forma inédita, evitando documentos duplicados, perdidos ou rasurados, por exemplo. Com o sistema Lattes, os pesquisadores passaram a acompanhar a própria trajetória com mais autonomia, as agências passaram a receber informações padronizadas com mais qualidade e as consultas para processos burocráticos tiveram seus prazos reduzidos. Virgínia Bentes Pinto, professora do Departamento de Ciências da Informação da Universidade Federal do Ceará (UFC), relembra que a ideia da plataforma era promissora desde o princípio. “Logo que tomei conhecimento, me cadastrei, pois vi que era um sistema que evidenciava nossas pesquisas e outras ações na Universidade”, explica a pesquisadora, que também destaca que a unificação ajudou a agilizar a rotina da academia: “não havia mais a necessidade de fazer um currículo novo a cada atuação que precisávamos participar, como as conferências”, completa.

 

Cesar Lattes: o físico que dá nome à plataforma

Nas entrelinhas da construção da Plataforma Lattes, uma meta em especial pareceu se destacar: ajudar a construir a ciência no Brasil. Não por acaso o sistema foi, então, nomeado como uma homenagem a um cientista brasileiro que colaborou para o desenvolvimento da Física no país e para a disseminação da ciência latino-americana, Cesar Lattes. (Figura 1)


Figura 1. Cesar Lattes toma posse como presidente do Conselho Diretor do Conselho Nacional de Pesquisas (atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq), em 1951.
(Fonte: Arquivo Nacional/ Fundo Agência Nacional. Reprodução)

 

“Cesar Lattes foi o cientista brasileiro que recebeu mais indicações para o Prêmio Nobel. Foram sete no período de 1949 a 1954, todas elas feitas por cientistas de outros países que tiveram contato com Lattes nos anos anteriores”, explica José Eymard Homem Pittella, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor do artigo O banco de dados do Prêmio Nobel como indicador da internacionalização da ciência brasileira entre 1901 e 1966, publicado em 2018 na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos.

As nomeações para Lattes foram feitas como reconhecimento a um dos marcos mais importantes da carreira do físico, a descoberta do méson pi, ou píon, uma partícula subatômica que atua como uma “cola” dentro dos átomos, mantendo coeso o núcleo atômico. Com o grupo de pesquisas inglês do qual participava, Lattes foi um dos principais responsáveis pelos primeiros registros dos píons. Embora suas contribuições tenham sido essenciais para esse feito e o número de indicações impressione, Lattes nunca foi agraciado com o prêmio Nobel. “Dos três principais pesquisadores da descoberta e do aperfeiçoamento do novo método fotográfico para o estudo e a descoberta dos mésons, Lattes foi o menos reconhecido pela comunidade científica internacional, inclusive pelo próprio chefe do laboratório onde trabalhou”, comenta José Pitella, professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que completa dizendo que isso pode ter acontecido como consequência da pouca idade de Lattes na época dos estudos e da proveniência sul-americana do físico, marcada por um país com pouca tradição científica na área de física na época das indicações.

 

“O sistema foi nomeado como uma homenagem ao cientista brasileiro que colaborou para o desenvolvimento da Física no país e para a disseminação da ciência latino-americana.”

 

Na década de 1990, quando a Plataforma Lattes foi lançada, as contribuições de Cesar Lattes já marcavam a história do país como um exemplo de destaque internacional para a ciência feita por brasileiros – uma característica que, posteriormente, também seria usada para descrever a atuação desse sistema digital recém-lançado de informações sobre C&T.

 

Plataforma Lattes e a ciência em 2024

Um salto de duas décadas e meia no tempo traz a Plataforma Lattes ao modelo que conhecemos hoje. O currículo Lattes, implementado em 1999, se tornou um padrão em todo o país por descrever, em um único documento, projetos de pesquisa, atividades de extensão, publicações, colaborações e quaisquer outras ações realizadas durante a carreira de pessoas envolvidas no meio científico e tecnológico desde a Iniciação Científica até a pós-graduação e a atuação profissional.

Além do sistema de currículos, dados de 2019 mostram registros completos e sistematizados de mais de 41 mil grupos de pesquisa, 24 mil instituições e um amplo repositório sobre projetos financiados pelo CNPq. As informações abrigadas no portal auxiliam ações de planejamento, gestão e operacionalização do fomento a nível federal e estadual, e têm papel decisivo para a formulação das políticas de órgãos como o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCTI) e para a análise de mérito e competência de C&T em uma esfera nacional. “A Plataforma Lattes é considerada um patrimônio nacional de informação científica e acadêmica devido à sua ampla adoção e utilização no Brasil”, destaca Jesús Pascual Mena-Chalco, doutor em Ciência da Computação e pesquisador da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Nos projetos em que estou envolvido, ela representa uma das bases mais significativas que utilizamos como insumo para o estudo da ciência, uma fonte primária para a extração de dados e subsequente análise”, completa. (Figura 2)


Figura 2. A plataforma Lattes em números
(Fonte: CNPq. Reprodução)

 

Para José Pittella, o sistema criado pelo CNPq vem se mostrando cada vez mais uma iniciativa de êxito para a organização das informações sobre C&T no Brasil. “A Plataforma Lattes está cumprindo sua missão de registrar e disponibilizar on-line, de forma abrangente, objetiva e detalhada, a produção científica brasileira”, diz. De fato, esse sucesso pode ser mensurado de diferentes maneiras. Segundo as pesquisas de José Pitella, os dados contidos no site foram visualizados mais de 216 milhões de vezes em 2022 e cerca de 24 mil currículos foram atualizados por dia ao longo do mesmo ano, ilustrando a grande aderência da comunidade científica às ferramentas disponibilizadas pela plataforma.

O sucesso do sistema Lattes transcendeu fronteiras e, em março de 2010, foi citado pela revista científica Nature como “um exemplo poderoso de boas práticas” e “um dos bancos de dados de pesquisadores mais limpos que existem”. Ao analisar as métricas cedidas pela própria plataforma, a admiração internacional também se traduz em números: em 2024, cerca de 7% dos currículos cadastrados são de pesquisadores espalhados ao redor do globo em países como Portugal, Estados Unidos, Espanha, França, Paraguai e Inglaterra. “Ela está auxiliando na consolidação e disseminação da ciência produzida no Brasil”, declara José Pitella. Jesús Pascual Mena-Chalco reforça a importância da disseminação internacional desse serviço. “A plataforma serve como um exemplar e um paradigma sobre como as informações científicas podem ser centralizadas de maneira completa, o que não apenas facilita o acesso, mas também contribui para a visibilidade acadêmica nacional”, declara.

 

Futuro de mãos dadas com a C&T

Embora a Plataforma Lattes represente uma iniciativa de sucesso que transformou o registro do passado e do presente da ciência brasileira, o projeto conta com limitações e desafios que devem ser superados a fim de acompanhar os moldes científicos e tecnológicos atuais. Segundo Jesús Mena-Chalco, um deles diz respeito ao modo como as informações são incorporadas no banco de dados on-line, que depende de atualizações constantes por parte dos pesquisadores e institutos. “Acredito que há uma urgência em estreitar a colaboração entre a equipe de desenvolvimento do CNPq e a academia para simplificar e aprimorar a coleta de dados de forma mais eficaz”. O pesquisador destaca que  algumas das questões relevantes que devem ser debatidas incluem como lidar com inconsistências ou lacunas nos registros, como rastrear a trajetória profissional dos alunos após a conclusão acadêmica e identificar membros de instituições e líderes de pesquisa em regiões específicas. Virgínia Bentes Pinto também cita alguns pontos que poderiam ser otimizados. “Penso que tem coisas que precisam melhorar. Por exemplo, você apresenta uma comunicação em um evento científico e coloca no Lattes. Depois, quando saem os anais, você precisa repetir muita coisa que não precisaria, era só puxar do que já foi informado”, declara a professora.

 

“As informações abrigadas no portal auxiliam ações de planejamento, gestão e operacionalização do fomento a nível federal e estadual.”

 

Ainda segundo o docente da UFABC, o aprimoramento da plataforma pode incluir uma facilitação nos processos de análise que utilizam os dados arquivados no sistema. “Atualmente, o acesso total aos dados de todos os pesquisadores não é completamente liberado. A Plataforma Lattes pode ser aprimorada para oferecer soluções que atendam às demandas contemporâneas, como a identificação de especialistas, estudos demográficos na área científica e mobilidade acadêmica, entre outras”, explica o docente.

Atualmente, Jesús Mena-Chalco participa de iniciativas realizadas em parceria com o CNPq para criar soluções que complementem as funcionalidades do sistema e respondam perguntas que a plataforma ainda não é capaz de responder: o Ecossistema de Informação da Pesquisa Científica Brasileira (BrCris) e o Projeto Laguna. Segundo o site do projeto, o BrCris, é “uma plataforma agregadora que permite recuperar, certificar e visualizar dados e informações relativas aos diversos atores que atuam na pesquisa científica do contexto brasileiro”. No portal do projeto, é possível navegar entre milhares de publicações, pessoas, revistas, gráficos, patentes e outros componentes da C&T nacional de forma simplificada, utilizando informações contidas na Plataforma Lattes e em outros bancos de informações. Já o projeto Laguna visa a estruturação de um repositório amplo e centralizado para aumentar a visibilidade e o uso dos resultados de pesquisa dos bancos de dados. “Os projetos BrCris e Laguna do CNPq permitirão, entre outras coisas, ter um panorama melhor da ciência brasileira, considerando como insumo os dados da Plataforma Lattes e fontes de dados secundárias”, conclui.

 

Capa. O currículo Lattes, implementado em 1999, se tornou um padrão em todo o país por reunir projetos de pesquisa, atividades de extensão, publicações, colaborações e outras ações realizadas durante a carreira de pessoas envolvidas no meio científico e tecnológico.
(Fonte: Unicamp/ Arquivo. Reprodução)

http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20240010
Bianca Bosso

Bianca Bosso

Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
Bianca Bosso é especialista em Jornalismo Científico e Bacharela em Ciências Biológicas (Unicamp). Iniciou sua trajetória na Divulgação Científica no ano de 2018. Já desenvolveu pautas para revistas como Ciência & Cultura, ComCiência e Ciência Hoje, além de sites como Agência Bori, Jornal da Unicamp, Portal Campinas Inovadora e blog Ciência na Rua.
3 comments
  1. O britânico Cecil Frank Powell, chefe do laboratório onde Lattes trabalhou, foi o único agraciado com o Prêmio Nobel de Física em 1950, o que é considerado uma grande injustiça com o pesquisador brasileiro, tendo em vista a sua contribuição fundamental para a descoberta do méson pi e o fato de que a premiação do Nobel pode ser concedida a até três cientistas para cada categoria, anualmente. Admite-se que o Comitê Nobel costuma premiar somente o líder do grupo de pesquisa, no caso, Cecil Powell.

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