Além de grandes contribuições para a física, Cesar Lattes era um líder científico que colaborou para a criação e o avanço de centros brasileiros fundamentais para a ciência atual
A figura de Cesar Lattes é conhecida por suas pesquisas e prêmios ao longo da carreira, mas pouco se comenta sobre sua contribuição para a origem e avanço de diversos departamentos, institutos e laboratórios de pesquisa da área da Física. Por onde passou, Lattes plantou uma semente para a perpetuação da área. Estava lá na criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), o Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW – Unicamp), além de ter sido professor nos Institutos de Física da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ainda assinou dois protocolos de cooperação científica com a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) – conhecido como Projeto Cesar Lattes.
Os relatos de quem o conheceu pessoalmente e pôde trabalhar com ele destacam sua competência como pesquisador, a paixão pela pesquisa e descobertas científicas e o patriotismo no esforço de alavancar o Brasil como um centro de pesquisas de excelência. Em inúmeros momentos utilizou a fama conquistada pelos resultados de seu trabalho para canalizar recursos, construir relações internacionais e ser um símbolo de que nosso país tinha condições de produzir ciência de extrema qualidade.
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) – Rio de Janeiro
Por ter conhecido diversos centros na Europa e Estados Unidos, Lattes queria trazer esses sistemas ao Brasil. As notícias sobre o assunto espalharam-se pela mídia, o que levou à formação de um ambiente propício à criação, no Rio de Janeiro, de um instituto voltado principalmente para a pesquisa fundamental em Física. Assim, um grupo de empresários, cientistas e interessados nas ciências, políticos influentes, militares, banqueiros e outros mobilizou-se em direção à criação do CBPF, com sua fundação em 1949. (Figura 1)
Figura 1. Cesar Lattes, Leite Lopes, Amós Troper e Alfredo Marques, diretores do CBPF, 1999.
(Fonte: CBPF/ Arquivo. Reprodução)
Lattes foi o primeiro diretor científico da instituição, ficando neste cargo por seis anos, e contribuiu na busca de infraestrutura e bolsas, além de estudantes qualificados. Sua articulação foi fundamental para a criação do CNPq, que surgiu para promover e estimular o desenvolvimento da investigação científica e tecnológica em qualquer domínio do conhecimento, mas com especial interesse no campo da física nuclear. Anna Maria Freire Endler, pesquisadora aposentada do CBPF, estava começando sua carreira no momento de formação do Centro e pôde trabalhar próxima a Lattes. Ela conta que Lattes conseguiu sua bolsa de doutorado na Alemanha, além de trazer ao Brasil grandes nomes da física nuclear mundial. “Quando fui fazer pesquisa na Europa, percebi que estava tão preparada quanto todos os profissionais ali presentes. Lattes mostrou que o Brasil podia participar da pesquisa de ponta feita pelo mundo. Eram tempos de ouro, lembro de ir trabalhar motivada todos os dias. O CBPF fervia de gente importante, reconhecida mundialmente”, relembra.
“Lattes mostrou que o Brasil podia participar da pesquisa de ponta feita pelo mundo.”
Mário Novello, também pesquisador emérito do CBPF, relata que trabalhou bem próximo de Lattes por muitos anos e que, inclusive, escreveu um livro intitulado “Os Cientistas da Minha Formação” (Livraria da Física, 2016), em que comenta detalhes de sua convivência com o cientista. Para ele, Lattes mudou o pensamento mundial de que o Brasil não era entendido como um país onde havia uma ciência fundamental importante. Mário Novello ainda comenta que Lattes foi figura fundamental na idealização e fundação do CBPF e é uma figura marcante por “sempre se aprofundar nos temas e pensar grande, procurando sempre alargar as fronteiras que lhes eram impostas, fossem essas fronteiras de natureza técnica, política ou social”. Segundo o professor, Lattes gostava de quem tinha genuíno interesse pelas leis da natureza, sem as pomposas “frescuras” que eram frequentes no meio científico.
Hoje vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o CBPF é um instituto de excelência com colaborações científicas internacionais, como o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), na Suíça, do Laboratório Fermi (Fermilab), nos Estados Unidos, entre outros. No CBPF, foram concebidos o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), e o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). Odilon A. P. Tavares, pesquisador titular do CBPF, apresenta os detalhes das conquistas do centro em texto escrito para a comemoração dos 60 anos do instituto, em 2009.
Instituto de Física – UFRJ
Na mesma época da criação do CBPF, foi sugerida a criação de uma cátedra para na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Erasmo Ferreira, professor emérito do IF-UFRJ e um dos pioneiros da física de partículas no país, conta sobre os anos que Lattes lecionou na UFRJ e sua colaboração para o primeiro laboratório de programa de pesquisa do Instituto de Física. “A passagem de Lattes pela UFRJ foi uma época de colaboração para formação de pessoas. Ele soube usar da fama adquirida para ser uma referência e uma inspiração para os futuros físicos. Eu lembro que fiquei empolgado com a super descoberta dele e fui fazer física na universidade influenciado por isso”, conta.
Erasmo Ferreira relembra como Lattes era um mito para os jovens estudantes. Segundo ele, isso se dá por uma combinação de vários fatores: uma descoberta importantíssima para a área, alinhada com um momento histórico pós-guerra em que havia interesse mundial no estudo a Física Nuclear e uma alta valorização da ciência que respingou no Brasil com uma vontade grande do governo brasileiro de investir em novos centros e institutos.
“Ele soube usar da fama adquirida para ser uma referência e uma inspiração para os futuros físicos.”
Após essa breve passagem, Cesar Lattes foi convidado por Mário Schenberg para um posto provisório no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Posteriormente, montou um grupo de pesquisa sobre raios cósmicos na universidade. Em 1962 iniciou-se a Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos, que perdurou por anos.
Instituto de Física Gleb Wataghin – Unicamp
Cesar Lattes mudou-se para Campinas após aceitar o convite da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e transferiu para a cidade não só todo o seu grupo de pesquisa, como também a colaboração entre Brasil e Japão.
O professor aposentado do IFGW da Unicamp, Edison Shibuya, foi colega e amigo do cientista por quase 30 anos. Ele conta que a presença de Lattes no IFGW trouxe visibilidade para o Instituto, além de contribuir para construções de infraestrutura para pesquisas. “Lattes poderia fazer a carreira científica no exterior, em qualquer país, mas preferiu voltar para o Brasil. Ele queria ajudar a desenvolver o país, pois uma de suas maiores características era o patriotismo. Era um amor inimaginável”, relembra. Segundo Edison Shibuya, Lattes voltou ao Brasil com credibilidade para contribuir no desenvolvimento da Física no país.
“Lattes poderia fazer a carreira científica no exterior, em qualquer país, mas preferiu voltar para o Brasil.”
Sobre suas outras atividades no IFGW, o professor comenta que “ele ensinava de uma forma muito diferente da tradicional. Apresentava uma questão e perguntava a opinião dos alunos sobre, depois conduzia aquela opinião a virar uma verdade científica ou mostrar-se incorreta. Ele fazia os alunos chegarem às suas próprias conclusões em sala de aula”. (Figura 2)
Figura 2. O reitor da Unicamp, Brito Cruz, entrega a Cesar Lattes os títulos de Professor Emérito e de Doutor Honoris Causa que lhe foram conferidos pela Unicamp em 1986.
(Fonte: Unicamp/ Arquivo. Reprodução)
O Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) iniciou suas atividades em 1967. O Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia é o mais antigo do Instituto e foi fundado por Lattes quando suas atividades se centravam no seu grupo de pesquisa. Anderson Fauth, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, teve seu mestrado orientado em boa parte por Lattes e comenta como ele era um homem com total devoção à pesquisa, sem pretensões políticas a cargos administrativos das universidades. “Era um cientista referência com destaque na mídia. Acredito que o apelo popular que ele trouxe contribuiu para trazer recursos e construir tantas instituições de pesquisa na área”.
Carola Dobrigkeit Chinellato, também professora do Instituto de Física da Unicamp – e que está completando 50 anos na instituição – foi orientada por Lattes no doutorado e conta como ele era uma das pessoas de mais prestígio no recém-criado departamento de Raios Cósmicos do IFGW. “Ele deixou muitos frutos para o Brasil, o seu grupo de estudos mantém-se até hoje na Unicamp, com cada vez mais colaborações internacionais. Ele soube aproveitar sua fama de uma forma muito positiva, canalizando recursos, visibilidade e relações com outros países para colocar o Brasil no radar do mundo em pesquisas físicas”, afirma.
2 comments
Texto muito claro e bem escrito. Parabéns Karina!