Pesquisas do físico brasileiro contribuíram para formatar a física brasileira na segunda metade do século XX
Quero neste pobre enredo
Reviver, glorificando os homens teus
Levá-los ao panteon dos grandes imortais
Pois merecem muito mais
(Ciência e Arte, canção de Gilberto Gil em homenagem a Cesar Lattes, no disco Quanta, 1997)
Em 1947, as contribuições de Cesar Lattes para a descoberta do méson pi mudavam a história da física de partículas. Porém, na segunda metade do século XX, sua colaboração para a física brasileira vai muito além. Suas descobertas não apenas deram destaque mundial à pesquisa brasileira, mas também suas colaborações internacionais contribuíram para o avanço da ciência no país, inclusive estimulando o surgimento de laboratórios e centros de pesquisa.
O primeiro modelo para descrever como funcionava a força nuclear foi elaborado entre os anos 1933 e 1934 pelo físico japonês Hideki Yukawa. A partir de cálculos teóricos, Yukawa propôs que a interação entre dois nêutrons, ou entre um próton e um nêutron acontecia por meio da troca de partículas. “E a partícula que estava sendo trocada teria uma massa maior do que a massa do elétron e menor do que a massa do próton. Por ter a massa “entre’ as massas do elétron e do próton, a partícula hipotética foi batizada de méson (‘mésos’ em grego significa ‘no meio’ ou ‘entre’)”, explica Carola Chinellato, professora do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), da Unicamp. “A importância da descoberta do méson pi (ou píon, como é chamado atualmente) por Cesar Lattes, em 1947, foi exatamente comprovar experimentalmente a existência da partícula sugerida teoricamente por Yukawa. O méson seria responsável por intermediar as forças nucleares, assim como o fóton seria o intermediador das forças eletromagnéticas”, complementa a pesquisadora da Unicamp.
“O que me chama atenção é a iniciação bastante precoce de Lattes na pesquisa, tendo se formado aos 19 anos”, destaca Nelson Studart, coordenador acadêmico e docente na Escola de Ciência Ilum, ligada ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM). “Lattes teve uma formação básica em apenas três anos com professores do nível de Gleb Wataghin na área teórica e de Giuseppe Occhialini na parte experimental. Este foi o responsável direto pela sua ida a Bristol para se engajar no grupo de Cecil Powell que havia desenvolvido a técnica das emulsões nucleares para observação de partículas elementares. Deve-se ressaltar o talento científico de Lattes, reconhecido no início de carreira em física teórica e que logo abandonou para trabalhar com detecção de partículas elementares. Esse talento nato o levou às suas maiores contribuições para a Física que são indubitavelmente a descoberta do méson pi (ou píon), em 1947 em Bristol (Inglaterra) que valeu o Prêmio Nobel ao líder do grupo Cecil Powell e a produção artificial dessa partícula, no ano seguinte, em Berkeley (Estados Unidos), com o uso do sincrocíclotron, então mais potente acelerador de partículas do mundo”, pontua Nelson Studart, que prepara um livro sobre Cesar Lattes.
Colaborações internacionais
O conhecimento sobre as partículas elementares teve uma grande evolução com a descoberta do píon. Desde 1947, muitos mésons foram descobertos. “Na realidade, hoje conhecemos mais de uma centena de mésons. Uma série de outras partículas também foram descobertas. Sabe-se hoje que nem o próton nem o nêutron são partículas elementares, mas são constituídos por quarks”, conta Carola Chinellato.
“O conhecimento sobre as partículas elementares teve uma grande evolução com a descoberta do píon.”
Porém, tudo começou quando Lattes teve a ideia de adicionar boro à gelatina das placas fotográficas, o que permitiu utilizá-las para estudar os raios cósmicos. Em 1946, enquanto passava férias nos Pirineus franceses, Occhialini levou dois conjuntos de placas, uma com adição de boro por Lattes e outra sem, a um observatório de 2877 metros de altura acima do nível do mar, na montanha Pic du Midi. As placas comprovaram a existência do méson pi, mas não continham informações suficientes para que determinassem todas as suas propriedades. Assim, Lattes decidiu levar as placas para o monte Chacaltaya, na Bolívia, que tinha 5421 metros de altitude. Um mês depois, ele retornou ao Brasil e analisou uma placa revelada com dois completos duplos mésons, um méson leve e um méson pesado, o méson pi. Através de um microscópio do Departamento de Física do Rio de Janeiro, os pesquisadores conseguiram localizar um terceiro duplo méson. Retornando a Bristol com a chapa, foram encontrados mais 30 duplos mésons. Essas descobertas foram relatadas em “Processes involving charged mesons”, por Muirhead, Occhialini e Powell. No mesmo ano, ele foi responsável pelo cálculo da massa da nova partícula, em um meticuloso trabalho.
Um ano depois, Lattes levou o seu conhecimento de placas fotográficas para o Laboratório de Radiação na Universidade da Califórnia em Berkeley, conhecido hoje como Lawrence Berkeley National Laboratory, que abrigava o maior acelerador de partículas do mundo. Em duas semanas trabalhando no novo laboratório, ele conseguiu detectar os mésons pi usando o eletroímã do acelerador, junto com o físico norte-americano Eugene Gardner. A experiência contribuiu para impulsionar a construção de um acelerador ainda mais potente chamado Bévatron. Enquanto a descoberta do méson pi entrava para a história da física de partículas, a detecção artificial dos mésons criava a era dos aceleradores de partículas. (Figura 1)
Figura 1. Cesar Lattes e Eugene Gardner com o sincrocíclotron na Universidade de Berkeley.
(Fonte: CBPF/ Arquivo. Reprodução)
Nos anos seguintes, e principalmente a partir da década de 1960, Lattes se envolveu em um experimento em colaboração com físicos japoneses a fim de estudar interações de partículas na atmosfera utilizando os raios cósmicos. A Colaboração Brasil-Japão (CBJ) começou a ser planejada ainda em 1959, como mostra carta de Yukawa para Lattes. Nessa época, no Japão, o grupo de pesquisa em raios cósmicos liderado por Yoichi Fujimoto e Jun Nishimura desenvolveram uma nova forma de usar emulsões nucleares para detectar raios cósmicos. Essas câmaras tinham a vantagem de não só reduzir o tamanho das emulsões nucleares, mas também de aumentar a precisão na determinação da natureza dos traços criados por raios cósmicos nessas chapas. Lattes se interessou pela ideia de usar as câmaras de emulsão nuclear no observatório de Chacaltaya. O lado do Japão ficou responsável em fornecer as emulsões nucleares e o material da câmara. A parte do Brasil, por arrecadar recursos para a viagem e montagem das câmaras naquela montanha. Os primeiros grandes resultados da parceria com o Japão aconteceram quando Lattes estava na Unicamp, cujo Instituto de Física ele ajudou a organizar. “Foram identificados os estados discretos da matéria que Lattes batizou como Mirim, Açu e, um pouco depois, o estado Guaçu, alusão aos diferentes conteúdos energéticos desses estados em homenagem ao idioma dos habitantes primevos do Brasil”, afirmou Alfredo Marques. (Figura 2)
Figura 2. Cesar Lattes e Yochi Fujimoto.
(Fonte: CBPF/ Arquivo. Reprodução)
Chacaltaya, aliás, pode ser considerado um dos grandes legados de Lattes. O Observatório Astrofísico Chacaltaya (Observatório de Física Cósmica) pertence à Universidade Mayor de San Andrés (UMSA) e trabalha em colaboração com universidades de todo o mundo, mantendo laços históricos especiais com laboratórios de física brasileiros e japoneses. É um local importante para pesquisas de raios gama e também é usado para pesquisas médicas em grandes altitudes. Em 2008, passou a colaborar com o novo projeto do Observatório Gigante da América Latina (LAGO). Desde 2009, o laboratório também inclui uma estação de medição de gases. Em 2016, foi anunciada a construção de um novo observatório de raios cósmicos (projeto ALPACA). (Figura 3)
Figura 3. Laboratório de Chacaltaya, na Bolívia
(Fonte: Unicamp/ Arquivo. Reprodução)
“Durante muitas décadas, esse laboratório foi um lugar singular na história da física mundial. Chacaltaya tem uma projeção mundial e teve um impacto enorme para a história da física no continente. Tem que pensar que, pela primeira vez nos anos 1950, um laboratório na América do sul estava desenvolvendo e estava envolvido em pesquisas e descobertas fundamentais que estavam na fronteira da física mundial”, destaca Ulisses Barres de Almeida, pesquisador associado do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e vice-diretor do Centro Latino-Americano de Física (CLAF). “Isso quer dizer que, pela primeira vez, abre-se a oportunidade para haver uma integração da comunidade latino-americana de física. Tanto isso é verdade que levou a colaborações internacionais muito duradouras, como, por exemplo, a colaboração Brasil e Japão”, finaliza.
As colaborações internacionais desempenharam um papel crucial nas pesquisas de Cesar Lattes, proporcionando acesso a recursos, conhecimentos e técnicas avançadas que impulsionaram significativamente seus estudos sobre raios cósmicos e partículas elementares. Essas colaborações não só ampliaram o alcance de suas investigações, mas também evidenciaram a importância da cooperação global na expansão do conhecimento científico.
O homem certo, na hora certa
Nos anos seguintes, Lattes continuou a impulsionar a expansão do programa brasileiro de física experimental. Por sua atuação institucional, ele ajudou a abrir novos horizontes para a Física como um todo e para a ciência no Brasil e na América Latina. E esta ação era motivada pela crença de que seria possível ter uma nação desenvolvida e independente por meio da prática científica. Em 1949, foi criado no Rio de Janeiro o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), coordenado por Cesar Lattes e o físico José Leite Lopes. O CBPF foi importante pela criação de novos laboratórios, pela modernização dos currículos e para a formação de novos pesquisadores e professores. Além disso, possibilitou o surgimento de novas instituições, como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, da Escola Latino-Americana de Física e o Centro Latino-Americano de Física. Outra importante instituição, criada apenas dois anos depois, foi o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujo objetivo era contribuir para o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico do país. É o que os pesquisadores Heráclio Duarte Tavares, da USP, e Antonio Augusto Passos Videira, da UERJ, chamam de nacionalismo científico. “O nacionalismo de Lattes emerge de um contexto específico e de condições históricas que possibilitaram capitalizar simbolicamente o nacionalismo daquela época e ressignificá-lo de acordo com suas vocações”, escreveram os pesquisadores em artigo de 2020, publicado na Revista de História da USP.
“As colaborações internacionais desempenharam um papel crucial nas pesquisas de Cesar Lattes, proporcionando acesso a recursos, conhecimentos e técnicas avançadas.”
Em 1952, o CBPF assinou um acordo com a Universidade de San Andrés, na Bolívia, para construir no pico do Monte Chacaltaya um laboratório onde os cientistas pudessem estudar os raios cósmicos. O laboratório deu origem a novos grupos de pesquisa na Bolívia e em toda a América do Sul. Entre tantas reverberações que aconteceram a partir das pesquisas de Lattes, certamente uma das mais duradouras é a consolidação da área de estudos sobre raios cósmicos. “O Brasil é um dos expoentes nesta área até os dias de hoje, com dezenas de cientistas envolvidos no estudo não apenas dos raios cósmicos de altíssimas energias, mas também nas interações entre as partículas elementares”, afirmou Carola Chinellato. O trabalho e a reputação de Lattes abriram o caminho para o desenvolvimento da física experimental no Brasil e na América Latina. Hoje o Brasil tem tradição no estudo de raios cósmicos e em outras áreas da física com importantes núcleos de pesquisa nas universidades e centros, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron de Campinas, o único com esse tipo de equipamento no hemisfério sul, utilizado para analisar os átomos e as moléculas.
A opção de Lattes de permanecer no Brasil após a grande repercussão da descoberta do píon e os projetos nos quais se envolveu, incluindo a organização do Instituto de Física na recém-criada Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), denotam sua esperança no futuro do país e confiança nos brasileiros como capazes de superar as grandes lacunas da época na formação científica e tecnológica. Ele nutria uma firme crença no papel pedagógico da ciência para a formação das novas gerações, defendendo e impulsionando, desde os primeiros anos, a inserção sistêmica da pesquisa científica no ensino superior e a flexibilização das posturas burocráticas destinadas a sustentar essas práticas.
“Por sua atuação institucional, ele ajudou a abrir novos horizontes para a Física como um todo e para a ciência no Brasil e na América Latina.”
Amigo pessoal de Lattes, Alfredo Marques o descrevia como um ser humano complexo que precisou conciliar sua natureza simples, despojada, linear, com o peso da enorme fama que o seguia. São várias as histórias de Lattes percorrendo os corredores do Instituto de Física da Unicamp de chinelos e acompanhado do seu cachorro, o perdigueiro “Gaúcho”. Conforme conta Marques, certa vez, discutiu com a funcionária da biblioteca do CBPF para inscrever seu cachorro o perdigueiro Gaúcho como leitor da biblioteca. Foi a forma que escolheu para protestar contra a opinião de um professor que sugeriu bloquear o acesso dos estudantes aos livros para evitar danos e roubos. “Nem sempre a convivência com ele foi pacífica, dependendo do interlocutor, e fez-se acompanhar algumas vezes de explosões e rompimentos com pessoas ou com as instituições que representavam. Quem conviveu com ele provou de seu bom humor e de amizade calorosa e irrestrita; quem trabalhou com ele sentiu seu grande apreço pela liberdade de pensamento e ação em ciência, garantindo condições de trabalho mesmo quando divergia das ideias de seus associados. Jamais trabalhou para a edificação de pedestais que aumentassem sua visibilidade e propiciassem sua adoração”, detalha o ex-diretor do CBPF.