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“Não consigo pensar política pública tratando de recursos hídricos sem incluir todo mundo”

Confira entrevista com Suzana Maria Gico Lima Montenegro, professora da Universidade Federal de Pernambuco e membro da Associação Brasileira de Recursos Hídricos

  

Ela sempre quis ser engenheira, e logo que entrou na área se apaixonou pela gestão de recursos hídricos. Graduada em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com mestrado em Engenharia Civil-Hidráulica e Saneamento pela Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP), e doutorado em Civil Engineering pela University of Newcastle Upon Tyne (Inglaterra), Suzana Maria Gico Lima Montenegro se envolveu com o gerenciamento de recursos hídricos desde a graduação – uma área que considera interdisciplinar, transdisciplinar e multidisciplinar. Hoje é professora do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da UFPE, além de membro da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas e da Associação Brasileira de Recursos Hídricos. Para ela, não é possível pensar em política pública para recursos hídricos sem envolver a academia e a sociedade. “A gente fala ‘nossa, o Brasil é um país abençoado, tem tanta água, é a maior reserva de água doce não congelada do mundo’. Mas a gente sabe que não é bem assim, pois essa água não chega do mesmo jeito para todo o mundo”, afirma. Suzana Montenegro também defende que a diversidade é essencial – especialmente para discutir um tema tão urgente e necessário como os recursos hídricos – e que, portanto, é preciso incluir os diversos saberes na discussão. “Essa troca é importante, porque nós temos o conhecimento científico e eles têm o conhecimento da ancestralidade”, aponta. “É um espaço de fato plural. E isso é fascinante”, finaliza.

Confira a entrevista completa!

 

Ciência & Cultura – Pode compartilhar um pouco sobre os principais temas de pesquisa que você aborda em seus trabalhos, especialmente no contexto dos programas de pós-graduação em Engenharia Civil e Engenharia Agrícola e Ambiental?

Suzana Maria Lima Montenegro – Toda a minha vida profissional, desde a graduação, foi muito focada na questão da hidrologia, como ciências básicas, e na engenharia de recursos. Sou especialista em água subterrânea, relacionada aos instrumentos de gestão. Então atuo em várias áreas, com a modelagem matemática, análises geoespacial com geoestatística, etc. Mas o meu foco mais recente tem sido a questão da segurança hídrica, que é uma área muito abrangente. Ela abarca os aspectos de quantidade, qualidade, gerenciamento integrado de águas superficiais subterrâneas. E isso tem um componente de resiliência, que está relacionado aos eventos extremos e às mudanças climáticas. Aí entra a questão da suscetibilidade à desertificação como também de eventos como cheias, além do componente social. O componente humano, aliás, está muito conectado ao desenvolvimento de residências, à urbanização, e aos ecossistemas que compõem a segurança hídrica.

 

“Não adianta a gente pensar em saneamento só como infraestrutura: se não tem o insumo básico, que é a água, então não tem discussão.”

 

C&C – Como membro da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, qual é o papel dessas associações na promoção da pesquisa e no desenvolvimento de políticas relacionadas à água no Brasil?

SMLM – Estou coordenando o Observatório Nacional de Segurança Hídrica e Gestão Adaptativa e sou membro da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, que já tem 46 anos. Ela foi criada essencialmente por acadêmicos como eu, que também tinham uma preocupação em como a academia pode propor insumos para as políticas públicas. Tanto que a Lei 9433 (que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos) nasceu dentro dessa associação. Nessa associação tive diferentes papéis desde a minha formação, quando fui bolsista de iniciação científica e depois aluna e mestrado. Então tive diversos papéis de gestão na associação e o último, nesse último biênio 2022-2023, eu fui vice-presidente da associação. E sempre com esse desejo de que a academia chegue junto da política pública de gestão de recursos hídricos, além de considerar a diversidade do território brasileiro. Para você ter uma ideia, nós temos 15 comissões técnicas (CT) para tratar de diversos temas, desde desastres até estatística, passando por águas urbanas. E colocando a associação a serviço da discussão, da proposição, do aprimoramento dessas políticas públicas com especialistas que possam discutir com a sociedade. A outra associação, a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, também tem papel muito semelhante, além de uma atuação muito marcante na discussão do Marco Legal do Saneamento Básico. Porque não adianta a gente pensar em saneamento só como infraestrutura: se não tem o insumo básico, que é a água, então não tem discussão. Então, eu não consigo ver pensar política pública tratando de recursos hídricos sem envolver academias, sem envolver as pessoas, sem incluir todo mundo. A gente fala “nossa, o Brasil é um país abençoado, tem tanta água, é a maior reserva de água doce não congelada do mundo”. Mas a gente sabe que não é bem assim, pois essa água não chega do mesmo jeito para todo o mundo.

C&C – O Brasil enfrenta desafios significativos no gerenciamento de recursos hídricos. Como sua pesquisa e envolvimento em associações contribuem para abordar esses desafios e promover a sustentabilidade no uso da água?

SMLM – O desafio está justamente nesse conceito de segurança hídrica, que é ter água em quantidade e com qualidade adequada. Nem sempre que você tem a água próxima do ponto de consumo, ou então a água não tem uma qualidade no padrão adequado. Acontece também de às vezes você ter a água em quantidade e com qualidade, mas não ter a infraestrutura. Então é tudo isso: é infraestrutura, é garantia de qualidade, é gestão da demanda. Não dá para dizer que há um desafio único ou uma solução única, principalmente para um país como o nosso, com a diversidade de biomas, de concentração de renda, de concentração populacional, de carência de infraestrutura.

 

“A gente fala ‘nossa, o Brasil é um país abençoado, tem tanta água, é a maior reserva de água doce não congelada do mundo’. Mas a gente sabe que não é bem assim, pois essa água não chega do mesmo jeito para todo o mundo.”

 

C&C – Na sua trajetória acadêmica, como mulher, quais desafios você enfrentou e como vê a importância de incentivar mais mulheres a seguirem carreiras nas áreas de engenharia e ciências exatas?

SMLM – Apesar de todo o avanço que tivemos, ainda existem muitos desafios. Quando escolhi engenharia, eu escutava falar muito nisso de quer era “coisa de menino”. E eu não tinha nenhuma engenheira mulher na minha família, ou mesmo alguma referência que eu de fato admirasse para ter como espelho. Era uma coisa minha. Eu gostava da área de engenharia, nem sabia exatamente qual área de engenharia. O meu primeiro estágio foi numa obra e eu detestei. Porque tem áreas mais duras, como a construção civil. Não que mulher não possa ocupar esses espaços, mas eles são mais duros. Acho que a mulher ocupa o lugar que ela quer ocupar. Então mudei de área e decidi ir para essa gestão de água. E acredito que a água tem um apelo mais diferente. Brinco que água é um substantivo feminino, é um elemento que une. Mas o fato é que é uma área com forte interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade. Acredito que essa presença das mulheres vem crescendo. E me orgulho quando vejo mulheres ocupando esses espaços e abrindo portas para outras mulheres. Mas a mulher é muito desafiada, dentro e fora da academia. Sou mãe, eu tive dois filhos, e foi um desafio conciliar. Era um teste, uma prova a cada momento: se você consegue ser mãe, dona de casa, engenheira, profissional e acadêmica. Então temos muitas questões para lidar ainda.

C&C – A diversidade é crucial para o avanço da ciência. Como a inclusão de diferentes perspectivas, incluindo a presença de mulheres, afeta a qualidade e amplitude das pesquisas?

SMLM – Tenho muitas oportunidades de participação em comitês de bacias hidrográficas. Um em particular tem me ensinado muito, que é uma bacia muito emblemática: a bacia do São Francisco. O rio São Francisco é um rio de integração nacional e a bacia abrange diversos estados e diversos biomas. E também diversas comunidades, como ribeirinhos e quilombolas. Então isso tudo junto e misturado traz uma química muito legal. O comitê tem também suas câmaras técnicas e uma delas é a Câmara Técnica das Comunidades Tradicionais. Nos últimos dois anos eles têm organizado eventos e promovido reuniões que realmente trazem contribuições muito ricas de conhecimento. E essa troca é importante, porque temos o conhecimento científico e eles têm o conhecimento da ancestralidade. O comitê é um organismo que agrega esses diferentes saberes. Então acho que é um espaço de fato plural. E isso é fascinante.

 

“Eu me orgulho quando vejo mulheres ocupando esses espaços e abrindo portas para outras mulheres.”

 

Blog Ciencia e Cultura

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