Lorelai Kury capa

“A ciência é sempre uma ação coletiva”

Confira entrevista com a historiadora Lorelai Kury, pesquisadora e professora da Fiocruz

 

“Não enxergamos a saúde apenas como assistência, mas também como forma de conhecimento do mundo, do ser humano e do corpo pelos homens e pelas sociedades”. É assim que Lorelai Kury, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), explica sua atuação em uma das maiores fundações de ciências e tecnologia em saúde da América Latina. A pesquisadora tem dedicado sua carreira à investigação da história da saúde no Brasil, explorando suas nuances, desafios e conquistas ao longo dos séculos, e aponta que é importante conhecer o passado para compreender toda a complexidade dos problemas do presente. “Os desafios atuais não se iniciaram na véspera: são processos longínquos que levaram a esse mundo em que estamos vivendo”. Também afirma que a diversidade da ciência é importante para multiplicar os olhares sobre problemas que são múltiplos – e que isso ajuda a aproximar a população do fazer científico. “Quando a população entende de que forma as teorias e práticas científicas se efetivam, ela entende seu próprio papel nessa cadeia de produção de conhecimento”.

Confira a entrevista completa!

 

Ciência & Cultura – A história das ciências muitas vezes destaca a interseção entre ciência, sociedade e cultura. Como você vê essa interconexão influenciando o desenvolvimento da ciência ao longo do tempo?

Lorelai Kury – Acredito que a partir do século XIX a ciência virou um elemento essencial nas sociedades ocidentais. Nossa vida é regida pelo aparato científico e tecnológico, ele faz parte da nossa cultura, é indissociável das nossas sociedades. Nas disciplinas que meus colegas e eu ministramos na Casa de Oswaldo Cruz (COC), nós seguimos dois enfoques: um enfoque mais cronológico, tentando ver de que forma a ciência e o aparato tecnológico se desenvolveram ao longo do tempo, mas principalmente um enfoque epistemológico, tentando compreender o que os autores indicam como sendo os fundamentos da ciência contemporânea e de que maneira a ciência e esse aparato tecnológico se diferenciam em sua forma de agir sobre a sociedade. Vemos a área da saúde na Fiocruz sob várias perspectivas. Não enxergamos a saúde apenas como assistência, mas também como forma de conhecimento do mundo, do ser humano e do corpo pelos homens e pelas sociedades. Então abordamos a saúde como um todo, compreendendo como as sociedades se relacionam com as maneiras de curar, com as concepções de mundo, com as concepções de ser humano. Isso é uma maneira também de entendermos o negacionismo e as necessidades atuais das sociedades em relação à saúde pública e aos cuidados com a vida e com o corpo, porque buscamos compreender como homem se relaciona com a natureza e como historicamente os seres humanos foram se identificando como algo distinto da natureza. Então abordamos esses temas reconhecendo o passado, mas com perguntas relativas ao presente, para conseguirmos compreender nossa inserção nesse mundo atual tão complexo.

 

“Estudar a história da formação do Estado brasileiro é também estudar a formação da saúde pública.”

 

 

C&C – A Fundação Oswaldo Cruz desempenha um papel vital na pesquisa e na saúde pública. Como seus estudos históricos contribuem para a missão mais ampla da Fiocruz?

LK – Em primeiro lugar, a abordagem histórica é uma das abordagens fundamentais para formação de qualquer identidade, seja individual, seja coletiva. Então o historiador tem a missão de fazer com que as pessoas reflitam sobre si mesmos no mundo com essa dimensão tanto sincrônica como diacrônica. Porque o historiador não estuda só sucessão de acontecimentos, ele estuda também de que forma os acontecimentos se cruzam, se entrelaçam num determinado tempo e numa determinada sociedade. Outro aspecto que acho relevante é que eles ajudam a compreender de que forma essas instâncias se formaram na sociedade brasileira, por exemplo, a própria saúde pública, a relação das pessoas com o corpo, e o aparato do Estado em relação às assistências nessa área. Quando entendemos a formação da sociedade e desses sistemas, entendemos os próprios desafios atuais. Porque os desafios atuais não se iniciaram na véspera: são processos longínquos que levaram a esse mundo em que estamos vivendo. Então essa forma de compreender esses processos nos ajuda a compreender no presente muitos elementos de longa duração, como, por exemplo, o próprio racismo. É um tema que se tem discutido muito na sociedade, e não é algo que começou ontem. Do mesmo modo, o fato de que no Brasil as principais medidas de saúde pública foram sendo tomadas pelo Estado é um fato que está inscrito na história do país. Então, estudar a história da formação do Estado brasileiro é também estudar a formação da saúde pública. Desta forma, a história é um elemento essencial do presente.

 

C&C – No contexto do Programa de Pós-Graduação, como você incentiva e apoia a participação das mulheres na pesquisa em história das ciências e áreas relacionadas?

LK – A área de história é uma área bastante feminina. Temos uma proporção de mulheres em relação a homens bastante grande, mesmo na pós-graduação. O que acontece é que os próprios alunos em geral sugerem temas que tentam compreender a atuação de mulheres ao longo das do tempo nas ciências e na saúde, analisando a atuação das mulheres médicas e das mulheres cientistas. Então é um tema que vem de uma demanda dos próprios alunos, não apenas uma abertura da nossa temática. E nós acompanhamos essa demanda social por uma história que valorize essa agência feminina e valorizamos a agência de nossas alunas e das nossas professoras.

 

 

“Incluir o ponto de vista feminino significa primeiro incluir o ponto de vista de metade da população.”

 

 

C&C – Como mulher atuante na academia, quais desafios você identifica para as mulheres que buscam carreiras na pesquisa em história das ciências, e quais conselhos você daria a mulheres jovens que estão interessadas nesse campo?

LK – Apesar de ter dito anteriormente que nossa área é bastante feminina, ainda vemos uma diferença interessante entre a quantidade de mulheres que entram para fazer História e a quantidade de profissionais mulheres que são bem-sucedidas, digamos assim, que estão no auge de sua carreira. Acredito que isso aconteça também em outras áreas. Então temos que refletir um pouco a respeito disso, de que tipo de mulheres profissionais altamente qualificadas estamos colocando e barrando no mercado de trabalho e no meio acadêmico – e quais são essas barreiras. Uma coisa que entendo que possa ajudar as mulheres a compreenderem que elas podem e devem ter esse papel altamente qualificado é elas falarem de temas que são considerados masculinos ou universais. Porque normalmente os homens se dedicam a temas que são considerados “universais”, ou seja, que dizem respeito a todos, enquanto as mulheres muitas vezes ficam relegadas a estudar temas que dizem mais respeito a um universo tido como “feminino” ou fundamentalmente sobre a história das mulheres. Então acredito que talvez um dos desafios seja que as mulheres abracem temáticas mais universais, no sentido que interessem a sociedade como um todo.

 

C&C – A diversidade é crucial para o avanço da ciência. Como a inclusão de diferentes perspectivas, incluindo a presença de mulheres, afeta a qualidade e amplitude das pesquisas?

LK – A ciência é sempre coletiva. Então o ponto de vista das mulheres é o ponto de vista de um dos agentes da construção das ciências. Nos dias de hoje é muito interessante chamarmos atenção para essa importância de se ouvir as mulheres – até porque o mundo já é um mundo masculino dominado por essa presença masculina, como se os homens fossem os únicos agentes. E sabemos que não são. Então, incluir o ponto de vista feminino significa primeiro incluir o ponto de vista de metade da população e segundo de pessoas que sempre foram consideradas como secundárias ou subalternas. E não só as mulheres, mas também os negros, as populações originárias, e tantos outros. Precisamos dessa diversidade. Precisamos de uma visão que ajude a romper essa arrogância de quem sempre dominou esse campo.

 

“Olhar para a ciência não como algo exterior a você, mas como algo que te pertence também.”

 

 

C&C – No contexto da divulgação científica, qual é o papel da história das ciências em comunicar efetivamente a importância da pesquisa científica para o público em geral?

LK – Acho muito importante que a população tenha mais contato com a história geral e com a história da ciência. Porque a ciência é sempre uma ação coletiva e quando a população entende de que forma as teorias e práticas científicas se efetivam, ela entende seu próprio papel nessa cadeia de produção de conhecimento. Então é uma espécie de “desalienação” no sentido de começar a olhar para a ciência não como algo exterior a você, mas como algo que te pertence também.

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