Aziz Ab’Sáber e a política ambiental no Brasil atual

Problemas atuais no país chocam-se com legado deixado por geógrafo

Resumo

Neste texto, procuro, por meio do legado do professor Aziz Ab’Sáber, traçar uma interpretação do cenário socioambiental brasileiro. Trata-se de uma tentativa de, a partir de alguns conceitos emprestados da vasta e importante produção do geógrafo, analisar a devastação em curso e o quanto ela pode se agravar, caso aprovadas parte das medidas em discussão no Congresso Nacional.

Não resta dúvida que, caso ainda estivesse presencialmente entre nós, o geógrafo Aziz Ab’Sáber demonstraria toda sua indignação frente ao cenário socioambiental no Brasil. Inicialmente, pelo avanço do desmatamento na Amazônia nos últimos anos, felizmente com uma diminuição importante em 2023. Mas, também, pela intensa destruição do cerrado registrada no mesmo ano. Sem falar na disputa política revisionista das políticas públicas de conservação ambiental presente no Congresso Nacional.

Entre seus maiores legados está a já clássica divisão regional brasileira, definida em seis domínios morfoclimáticos, a saber: Amazônico, Cerrado, Caatinga, Mares de Morros, Araucárias e Pradarias. Além destes, o professor apontou a faixa de transição, que seria uma síntese transitória entre os principais domínios. Em cada domínio, Ab’Sáber identifica uma área central que expressaria o ápice da combinação de elementos estruturais, como a geologia e o relevo, a processos climatológicos, expressos na vegetação.[1] (Figura 1)


Figura 1. Domínios morfoclimáticos do Brasil, segundo Aziz Ab’Sáber
(Fonte: Mundo Educação. Reprodução)

 

Entre os domínios definidos pelo geógrafo, destacam-se os que possuem uma elevada diversidade biológica, como o Amazônico e o de Mares de Morros (que corresponde a uma faixa com presença da Mata Atlântica, que vai além da classificação de Ab’Sáber), aos quais podem ser somadas as faixas de transição, como o Pantanal. Não menos importante é a presença da sociodiversidade desses domínios e nessa faixa de transição, marcada por povos originários, mas acrescida de comunidades locais, como ribeirinhos, caboclos, quilombolas, entre outros. Esse conjunto de gêneros de vida, raro no mundo atual, configura uma enorme vantagem comparativa do Brasil frente a outros países que, embora tenham diversidade biológica – que podem resultar em novos materiais, fontes de energia alternativas, fármacos e alimentos – não dispõem da presença da população que conhece espécies que podem dar pistas para identificar princípios ativos importantes a partir dos quais possam ser criadas inovações tecnológicas. Aziz estava atento à relevância das comunidades locais e criticou o modelo de incorporação da Amazônia à economia brasileira, que desconsiderou os primeiros habitantes destas terras:

 

“Estabeleceu-se a importante e competitiva Zona Franca de Manaus, construíram-se represas para hidrelétricas, descobriram-se petróleo e gás na Amazônia ocidental, mas, em compensação, rasgaram-se rodovias em desmesuradas extensões de terras florestadas sem qualquer previsão ou gerenciamento de impactos físicos, ecológicos e socioambientais. Na terra dos grandes espaços florestados, tramou-se contra as reservas indígenas e contra os próprios indígenas, remanescentes da pré-história. Atendeu-se literalmente a todos os interesses dos especuladores de fora e de dentro do país sob alegações de um desenvolvimento que se sabe absolutamente incompleto e antissocial.

Privatizou-se o distrito mineral mais importante descoberto ao longo do século XX (Carajás). Esgotaram-se as jazidas de manganês da antiga Serra do Navio e, após se terem tolerado as pressões dos proprietários de garimpo, não houve estratégia correta para enfrentar a sanha dos madeireiros que continua a existir sob grande pressão. E, assim, a Amazônia, a maior e mais rica floresta tropical do mundo, berço de riquezas incontáveis para a humanidade, por sua biodiversidade, transformou-se num espaço de cobiça e crítica que fere a autoestima de todos nós”.[2]

 

Quando se observa a Amazônia quase 20 anos após a entrevista de Ab’Sáber a Dário Borelli, verifica-se que a situação só piorou, lamentavelmente. Os números do desmatamento chegaram, no período do golpe de 2016 até 2022, ao seu ápice. Políticas de controle, adotadas pelo atual governo, conseguiram diminuir o desmatamento na Amazônia, porém, outro domínio não teve a mesma sorte.

 

“Caso ainda estivesse presencialmente entre nós, o geógrafo Aziz Ab’Sáber demonstraria toda sua indignação frente ao cenário socioambiental no Brasil.”

 

O cerrado, berço das águas no Brasil, por sua posição central escoa água para as principais bacias hidrográficas presentes no território brasileiro. Podem-se citar as bacias do rio Tocantins, do rio Paraná e do São Francisco, que dependem também de águas vertidas do domínio morfoclimático do cerrado, que enfrenta uma grande pressão pela expansão da produção de soja, quando não da presença da pecuária. O chamado agronegócio usa os serviços ambientais a seu favor. Para o professor Aziz “é preciso é evitar que o agronegócio faça o que queira, com a floresta a seu favor, sempre”.[3] (Figura 2)


Figura 2. Desmatamento do Cerrado aumentou significativamente nos últimos anos e preocupa ambientalistas.
(Fonte: Adriano Gambarini/ WWF Brasil. Reprodução)

 

Com a presença majoritária da direita, com forte atuação da extrema-direita, no Congresso Nacional, infelizmente a situação socioambiental no Brasil não é das melhores. Além do assassinato de lideranças ambientais, verifica-se uma ação coordenada para esvaziar o corpo legislativo constituído a duras penas no século XX, com um impulso relevante a partir da Constituição Federal de 1988. A dimensão pública dos serviços ambientais e ecossistêmicos prestados pelo patrimônio ambiental brasileiro não é considerada pela maioria dos congressistas, o que pode eliminar a vantagem comparativa brasileira, a rara combinação entre sociodiversidade e biodiversidade.

 

“A dimensão pública dos serviços ambientais e ecossistêmicos prestados pelo patrimônio ambiental brasileiro não é considerada pela maioria dos congressistas, o que pode eliminar a vantagem comparativa brasileira, a rara combinação entre sociodiversidade e biodiversidade.”

 

Essas breves linhas já permitem apontar a relevante contribuição do ex-Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) em direção à conservação ambiental no Brasil. Seus textos, embora em sua maioria gerada na segunda metade do século XX, ainda podem ser uteis para balizar políticas públicas socioambientais que orientem o cumprimento do artigo 225 da Constituição Federal, que preconiza a manutenção do ambiente natural no Brasil para as gerações atuais e futuras. Além da contribuição científica do professor Aziz Ab’Sáber, seu brado forte, e muito bem fundamentado, devem ser lembrados nesse momento crucial da história política brasileira.

 

Capa. Aziz Ab’Sáber deixou legado de luta pela conservação da riqueza natural do país
(Fonte: IEA/USP. Reprodução)

RIBEIRO, Wagner Costa. Aziz Ab’Sáber e a política ambiental no Brasil atual. Cienc. Cult. [online]. 2024, vol.76, n.spe1, pp.01-04. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20240016.
[1] Ab’Sáber, Aziz. Domínio dos “mares de morros” no Brasil. Geomorfologia. São Paulo, n. 2, p. 1-9, 1966.
[3] Borellli, D. L.. Aziz Ab’Sáber: problemas da Amazônia brasileira. Estudos Avançados, 19(53), 7–35, 2005. https://doi.org/10.1590/S0103-40142005000100002
[4] Ab,Sáber, Aziz. Amazônia: Sem projeto e sem debate, entrevista com Aziz Ab’Sáber. Carta Capital, 2008, disponível em https://www.ecodebate.com.br/2008/06/19/amazonia-sem-projeto-e-sem-debate-entrevista-com-aziz-absaber/, acesso em abril de 2024.
Wagner Costa Ribeiro é professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da Rede de Pesquisa em Geografia das Águas no Brasil e da Área Temática “Águas Transfronteiriças” da rede de pesquisa Waterlat/Gobacit.

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