Depoimento de uma ex-aluna das décadas de 1960-1970
Ab’Sáber “foi e é responsável pela formação graduada e pós-graduada de centenas de estudantes, a quem dedicou especial atenção.”
(Aldo Paviani, 2012)[1]
Este ano marca o centenário de nascimento do Professor Azi Nacib Ab’Sáber e doze anos que nos deixou. Como legado, deixou numerosos estudos que se tornaram fundamentais para o conhecimento da natureza no Brasil, bem como a lembrança de suas aulas de Geomorfologia na graduação e pós-graduação em Geografia no Departamento de Geografia (DG) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da na Universidade de São Paulo (USP). Publicações sobre suas atividades, contribuição e importância científica já foram objeto de vários eventos e de obras de referência em sua homenagem. Posso destacar a de Lombardo (2007),[2] como número especial da Revista Espaço@Ação da Universidade Estadual Paulista (Unesp); a de Modenesi-Gauttieri et al. (2010),[3] intitulada “A obra de Aziz Nacib Ab’Sáber”, que reúne todas as suas publicações, além de fotos e entrevista; e a de Silva, Ramos e Cordeiro (2013),[4] intitulada “Caminhos de Ab’Sáber. Caminhos do Brasil”, um seminário em sua homenagem. Lombardo (2007)[2] o denominou de “um geógrafo, à frente de seu tempo” e Mauro (2012)[5] considera sua contribuição ainda como atual.
Então, optei aqui por fazer um breve depoimento como sua ex-aluna sobretudo dos anos 70 do século passado, dividido em sete cenas, aqui ditas partes, que ocorreram no DG/FFLCH/USP. Elas iniciam pela prova do vestibular para ingresso na graduação de Geografia nesse Departamento, em 1968, e depois seguem como aluna das disciplinas de Geomorfologia da graduação em Geografia de 1968 a 1971 e de Mestrado em Geografia Física na década de 1970.
“Sua luta e de outros engajados nessa causa fizeram com que na constituição federal de 1988 a Amazônia fosse legalmente protegida, junto a outros biomas.”
São cenas que o tornaram, para mim, um professor inesquecível, que contribuiu com os alunos que por ele passaram, com seus conhecimentos para além da Geomorfologia e das questões ambientais e seus exemplos ao fazer isso Hoje, cerca de cinco décadas depois, posso avaliar mais claramente o que aprendi naquela época e que aqui comento em cada uma das partes, à luz da experiência e consciência profissional que vivi. Passo a seguir ao depoimento dividido em exame vestibular, Graduação, Pós-graduação e termino com os comentários sobre o que é ser Geógrafo, parafraseando o título de um dos seus livros.[6]
No dizer de Paviani Ab’Sáber “foi e é responsável pela formação graduada e pós-graduada de centenas de estudantes, a quem dedicou especial atenção.” (Aldo Paviani, 2012)[1]. Eu sou prova disso.
Parte 1
Início de 1968. Sala 7 do Departamento de Geografia da USP em São Paulo, lotada, onde ocorria a prova escrita do vestibular para ingresso no curso de graduação em Geografia do DG/FFLCH/USP. Não havia FUVEST. O vestibular era feito no próprio DG. Aziz Nacib Ab’Sáber (que eu não conhecia, nem sabia de sua importância), presidia os trabalhos e informava as instruções sobre a prova. Eu realizava essa prova. De certo modo meio intimidada, assim como vários colegas presentes, pela situação estressante de prestar vestibular, mas também por aquele homem imponente, alto, nariz erguido, cabelos escuros penteados meio em desalinho, olhando a todos e ninguém em particular e, vez por outra, ao teto alto e ao jardim externo visto das grandes janelas, enquanto falava. Seus passos de um lado ao outro da sala seguiam uma linha imaginária (para nós), à medida que ia falando as instruções. Vestia um terno cinza, com paletó desabotoado e camisa branca, sem mangas e sem gravata. Ao encerrar as instruções, giz na mão, vai à lousa e escreve “Amazônia”. Era para escrevermos sobre esse tema. (Figura 1)
Figura 1. Aziz Ab’Sáber em aula na USP
(Fonte: NJR/ECA/USP. Reprodução)
Hoje entendi que, nesse final da década de 60 do século passado, ele já se preocupava com essa região, ou bioma, ou ecossistema, ou território, nome a depender do escopo do trabalho. E com o qual ele continuou se preocupando praticamente por toda a sua vida.[7, 8] Até ganhou prêmio Jabuti com o livro “Amazônia: do discurso a práxis”.[9]
Em vários artigos e nas aulas de pós-graduação que se seguiram até a década de 1990, ele expôs seu significado para o Brasil e o mundo, muito enfaticamente e afirmando que a degradação da Amazônia traria consequências que iriam além da perda de biodiversidade. Ele já defendia a ideia de que a exploração de seus recursos naturais era uma questão de Estado. Já sabia disso naquela época. Sua luta e de outros engajados nessa causa, fizeram com que na constituição federal de 1988 a Amazônia fosse legalmente protegida, como patrimônio nacional do País. junto a outros biomas, exceto o Cerrado. Assim, sua utilização só poderia ser feita na forma da lei, de modo a assegurar sua preservação, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. O que não quer dizer que isso tenha acontecido desde então na realidade, ao contrário, somos bombardeados, quase que diariamente, com notícias de expansão do desmatamento.
Ao colocar o tema Amazônia na prova escrita do vestibular em 1968, e sem falar no termo sustentabilidade, que surgiu e se propagou poucos anos mais tarde, ele revelava uma vontade de que voltássemos nosso olhar para a importância desse tão notável bioma e nos preparássemos para defendê-lo. Aprendi, naquele momento, o que era um professor-cidadão e um geógrafo engajado na luta ambiental em defesa do território brasileiro. Ele estava à frente de seu tempo, como disse Lombardo.[2]
Parte 2
Primeiro semestre de 1969, Ab’Sáber ministrava a disciplina de Geomorfologia no referido Departamento, aos alunos de graduação em Geografia, dos quais eu já fazia parte. Ele caminha de um lado ao outro da sala de aula, explicando o relevo da América do Sul. Parecia um grande ator fazendo um monólogo para uma plateia atenta e ansiosa por absorver suas ideias. Usava termos geológicos e geomorfológicos com os quais mal começávamos a nos habituar, contudo, o impressionante é que conseguíamos “ver” as paisagens sobre as quais ele discorria. Só a voz, o gesticular modesto, mas suficientemente forte, o giz reluzindo entre seus dedos e a lousa, que esperava, quieta, por exercer sua função de colaboradora cognitiva. Ela era e ainda é bem grande, presa à parede frontal da sala, da janela à porta. Teria uns seis metros? Nunca medi. Para ele era sob medida. Ele antevia, sem erros, o que desenharia, pois o desenho e seu significado já existiam, plenos, em sua mente.
De súbito, o desenho de um enorme perfil topográfico latitudinal do litoral banhado pelo oceano Pacífico até o litoral banhado pelo oceano Atlântico brota de seus dedos na lousa enquanto segura vigorosamente o giz que, vez por outra, entre um risco e outro, ele erguia como a batuta de um maestro. Não bastando, ele vai escrevendo sobre o perfil os nomes de suas paisagens, configuradas em grandes compartimentos com suas formas de relevo próprias, como assinaturas geológico-geomorfológicas, sustentadas pelos substratos silenciosos de diferentes idades. Não se falava ainda em Megageomorfologia, mas era isso. À medida que ia desenhando ia contando a história geológico-geomorfológica de cada um, explicava os componentes que denunciavam os fatores responsáveis pela sua configuração. Um filme não o faria melhor. Nada além do que um professor, uma lousa, um giz e uma mente vivaz e competente.
“Ab’Sáber revelava uma consciência política e uma postura de resistência o que, de modo tão coerente, nos ensinava algo mais que Geomorfologia com sua atitude.”
Sem ousar perguntar, dado que hipnotizados e boquiabertos, ouvíamos e anotávamos tudo, inclusive o desenho que, obviamente, não ficava nem parecido. Mas que, em nossa memória, restava impecável. Nunca esqueci essa aula. Se eu fechar os olhos ainda vejo o enorme perfil. Era a primeira vez que via algo desse tipo e tão completo da América do Sul e começava a entender. Utilizado como recurso didático. Porém, convém dizer e hoje sei, que era muito mais do que um perfil, seu tom exalava a paixão pelo que fazia e ensinava, exemplo muito eficiente para nossa formação. Palavras e uma figura de síntese, descortinavam essa prática aos futuros geógrafos. Me apaixonei pela Geomorfologia, e não fui a única. A influência de um professor pode motivar novos geógrafos e professores de Geografia a usarem os mesmos recursos. Sobretudo em escolas, em geral, periféricas aos grandes centros urbanos, onde giz e lousa são tudo que se tem.
Por outro lado, hoje acompanho a análise de Mello e Oliveria (2021),[10] quando lembram que Ab’Sáber se preocupava com o fato de o ensino dos conteúdos geográficos daquela época não refletirem o que era a ciência geográfica produzida na Universidade. Isso, para ele, estava distante da realidade dos alunos e, por vezes, distante do domínio dos próprios professores, principalmente na escola fundamental e média. Por essa razão ele apontava a necessidade de formação pedagógica dos docentes, tendo como maior parte os trabalhos de campo. Essas ideias influenciaram bastante a dita “nova escola” com a qual ele contribuiu bastante sobre como ensinar Geografia nessas escolas. Ainda concordando com Mello e Oliveria (2021),[10] quando afirmam que do ponto de vista didático interpretam que a proposta de Aziz se aproxima do que hoje chamamos de Pedagogia “freireana” (sic). Isso mesmo, do patrono da Educação no Brasil.
Aprendi mais do que Geomorfologia nessa aula, que é preciso “ver” as paisagens para entendê-las para poder ensiná-las como elas merecem. Aprendi também uma forma de dar aula e de adaptá-la ao perfil dos alunos e à situação da escola, bem como da importância do campo. E só estava no segundo ano da graduação.
Parte 3
À porta dos anos 1970. Muito interessada em Geomorfologia, chega em minhas mãos um texto de Ab’Sáber de 1969, da série (ou coleção) Geomorfologia, n. 18, editado pelo extinto Instituto de Geografia da USP (IGEOG-USP), criado em 1963 e extinto em agosto de 1986, quando foi incorporado ao DG, o qual ele presidiu. Ele intensificou a publicação da coleção Geomorfologia, entre as várias outras coleções temáticas publicadas, e nesse texto, propõe uma metodologia de análise em três níveis que representam três abordagens sucessivas de um mesmo objeto geomorfológico. Ao ler o texto parece o Professor falando. Pode-se “vê-lo” em cada linha. (Figura 2)
Figura 2. Aziz Ab’Sáber tinha especial dedicação à educação
(Foto: Francisco Emolo/ Espaço Aberto/ USP. Reprodução)
Mas, para apreender melhor as ideia do Professor Ab’Sáber, Mauro (2012),[5] com quem concordo plenamente, afirmou: “Não há como trabalhar com a Geomorfologia brasileira, tanto no magistério quanto na pesquisa, sem efetuar leituras da produção científica de Ab’Sáber”. Tal produção, também foi bem discutida, teórica e metodologicamente, por Vitte (2010),[11] ao dividir os momentos sucessivos da Geomorfologia brasileira, e apontar sua ruptura epistemológica na década de 1950, da qual Ab’Sáber participava ativamente, sendo um dos seus notáveis representantes.
Essa ruptura decorria do fato da comunidade brasileira de geomorfólogos, e dele em particular, tomarem contato com a Teoria da Pediplanação de Lester King proposta em 1956, a qual rompe teórica e metodologicamente com o conhecido Ciclo geográfico de evolução do relevo de Willian Morris Davis de 1899, o ‘ciclo davisiano’. Concordando com Vitte (2010),[11] essa ruptura se caracteriza pelo fato de a análise geomorfológica abandonar o paradigma até então sacralizado universalmente de evolução do relevo e de enquadrar um dado relevo como produto de uma determinada fase do ciclo davisiano. É quando a Geomorfologia muda de paradigma e passa a tentar reconhecer as grandes superfícies de aplainamento e respectivas idades, sob condições paleoclimáticas e consequências, que se sucederam. Assim, a história do relevo mudou. E Ab’Sáber defendia essa mudança.
Some-se que nessa mesma oportunidade a Geomorfologia carecia de uma sistematização metodológica. Então, Ab’Sáber (1969)[12] naquele referido texto e em suas aulas, propôs que a análise geomorfológica seja feita em três níveis de tratamento, por ele considerados metodologicamente fundamentais: 1) a compartimentação topográfica; 2) a estrutura superficial da paisagem; e 3) a fisiologia da paisagem. Trata-se de entender que a topografia permite visualizar o modelado do relevo de uma dada área, que é sustentado por uma estrutura superficial que contém solos, colúvios, linhas de pedras e cascalheiras, e que apresenta uma dinâmica definida e própria, que ele chama de fisiologia da paisagem e evolui no tempo. Pude aprender que cortes topográficos (Nível 1) apenas fazem sentido se lhe for adicionado seu suporte (estrutura) (Nível 2) e sua dinâmica (fisiologia) (Nível 3), ao longo do tempo, sobretudo Quaternário. Entendi que para entender a paisagem era imprescindível integrar esses 3 níveis de abordagem. Até hoje essa proposta continua bem aceita e é bastante utilizada. Em outras palavras, Ab’Sáber” continua geomorfologicamente atual.[2]
“Visão integrada e multiescalar é chave para compreender a paisagem. Era preciso ir além de olhar, era preciso ‘ver’ e ‘ler’ a paisagem.”
Compreende-se que as unidades têmporo-espaciais correspondem a compartimentos de fisionomia homogênea e intrínsecos do meio físico, compondo áreas reconhecíveis na superfície terrestre, que podem ser entendidas como paisagens, visíveis em médias e grandes escalas cartográficas. E mais, que a análise integrada nesses três níveis permite a obtenção de indicadores comportamentais/funcionais mais seguros, como subsídios para a elaboração de planos de controle preventivo de impactos negativos de uso e ocupação das terras, visando manutenção do equilíbrio ambiental. Hoje o sabemos como equilíbrio socioambiental.
Por essas ideias, pode-se deduzir que, para Ab’Sáber, a paisagem vai além do que se vê, e que para entendê-la é preciso ‘ver’ também o que ela contém e como funciona. Convém lembrar, que desde aquela época, os conceitos de paisagem evoluíram muito em Geografia, mas também em outras ciências. E enfatizar que o que se vê e se destaca ao vê-la é o relevo… um importante descritor em médias e grandes escalas. ‘Ler a paisagem’, como ele disse em uma entrevista, era entendê-la dessa forma. Ele estava de fato à frente de seu tempo ao considerar o que atualmente se fala em análise 3D (três dimensões espaciais) e 4D (a dimensão temporal) e se representa em blocos 3D com base em modelos digitais de elevação e em perfis topográficos (2D) nos estudos geoambientais para delimitar e entender as paisagens. Aliás, nem o termo geoambiental era dito por ele. Mas a lição metodológica daquele momento ficou registrada! E pode perfeitamente ser aplicada. Como o é.
Parte 4
Início dos anos de 1970. Novamente em sala de aula, coincidentemente a mesma do exame vestibular (desta vez já no 1º ano da pós-graduação), Ab’Sáber prescrevia uma prova aos pós-graduandos de Geografia Física sobre Geomorfologia. Porta fechada. Bate à porta um homem vestido à paisana acompanhado de soldados da Polícia Militar. Ab’Sáber atende. O homem fala, em tom ameaçador, que desejam entrar para buscar um aluno (colega nosso e que fazia a prova). Ab’Sáber diz, em bom-tom e calmo, algo mais ou menos assim: como professor sou soberano em sala de aula, meus alunos estão fazendo prova e eu não vou interrompê-los; quando eles acabarem o senhor poderá entrar. Em seguida fechou a porta, postando-se contra o vidro da porta, de modo que o tal homem não visse nem ouvisse o que acontecia dentro da sala e voltou-se para os alunos dizendo: ao acabarem a prova saiam da sala e lentamente dirijam-se à rampa do préio e sigam até a saída. Não parem e não formem grupos, nem falem de política. A partir de lá corram até o ônibus e saiam rápido da Cidade Universitária (Campus da USP-São Paulo). O colega procurado pulou a janela enorme da lateral da sala e evadiu-se do local. Daquela vez deu certo. Depois não mais. Como sabemos e lamentamos.
Que cena doída. Mais tarde realizei o quanto, pois na época só sobrevinham o espanto e o medo. Hoje sei que o contexto era maior que a prova. Aprendi que o professor não pode estar alheio ao que está acontecendo e deve tomar uma posição clara. E assumir essa posição com suas atitudes. Aziz assim o fez. A ditadura continuou um bom tempo e a repressão piorou bastante. Mas, Ab’Sáber foi um exemplo de coragem e de coerência, desta vez como professor-cidadão. Posição que ele guardou a vida toda, tanto assim que mais tarde integrou partido político e defendeu políticos e instituições que eram contra a ditadura.
Ab’Sáber revelava uma consciência política e uma postura de resistência, o que, de modo tão coerente, assim nos ensinava algo mais que Geomorfologia com sua atitude. Que o professor é soberano em sala de aula, sim, mas num sentido muito maior. Era o professor engajado na política que deixava claro para nós e para os militares e indivíduos à paisana, quem mandava na sala de aula. No período que se seguiu aprendi muito sobre tudo isso. Hoje sei de soberania de um professor num sentido muito, mas muito maior. Mas começou com esse episódio.
Parte 5
Segundo semestre de 1972, se me lembro bem. Estava no 2º ano do Mestrado. Ab’Sáber comanda uma excursão para o Vale do Paraíba com os alunos da pós-graduação em Geografia Física daquele mesmo DG. Eu escolhera trabalhar com Pedologia e Geomorfologia no mestrado, junto ao Programa de Geografia Física do Departamento de Geografia da USP. Em outras palavras, trabalhava com a estrutura superficial da paisagem. Por quê? Porque me permitia identificar a gênese dos solos e suas relações com os demais componentes da paisagem, em especial com o relevo, e claramente inspirada pelos 3 níveis da análise geomorfológica, que começou com aquela publicação Geomorfologia n.18 de Ab’Sáber (1969).[12] Hoje tenho claro esse pensamento. Mas, na época não tinha. As escolhas iam acontecendo naturalmente, influenciadas pelo ambiente que vivíamos e professores que nos guiavam. Eram paixões inocentes. Que felizmente foram amadurecendo.
No micro ônibus azul e branco que nos levava ao campo e que nós, alunos, chamávamos carinhosamente de De Martonne, um geomorfólogo ilustre, seguíamos viagem. No caminho várias paradas, Planalto Atlântico e o seu substrato cristalino sustentando seu relevo serrano, Vale do Paraíba rebaixado em relação ao Planalto Atlântico, mostrando um relevo colinoso muito suave e assentado sobre um substrato sedimentar, e, por fim Santa Isabel, um município com suas cascalheiras e depressões, por vezes formando lagos, revelando percursos fluviais, terraços, subsidências. Em cada uma explicações de como se formou aquela paisagem geomorfológica. Cada parada uma aula. E mais, como as populações foram ocupando aqueles espaços que fazem ligação entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Agora o Professor se misturava a nós. Cadernetas de campo e máquinas fotográficas em punho (não existiam celulares), material obrigatório, íamos registrando tudo. Para minha surpresa, Ab’Sáber era como nós e cozinhava pros alunos, contava histórias.
Nas palavras de Monteiro (2013):[13]
“…aquelas prodigiosas mãos que desenhavam no quadro negro, que figuravam mapas e blocos-diagramas da maior clareza didática… aquelas mesmas grandes mãos que cozinhavam para os estudantes durante excursões didáticas; aquelas mesmas que cozinhavam as sopas para os pobres…”
(Monteiro 2013)
Assim, prosseguíamos aprendendo sobre as paisagens, sua ocupação e as consequências. Campo é outra coisa. Cada parada era uma aula em si e por si. Sua abordagem já era multiescalar, multidisciplinar e multicritério, como se diz hoje, e por aproximações escalares sucessivas e integradas, da escala regional à local, da topográfica à fisiológica, passando pela estrutural, caracterizavam e diferenciavam o que era herança paleoclimática do que era climático, da cobertura vegetal e dos solos que a sustentavam, como sintomas do clima, e, finalmente, dos usos, abusos e desusos que já se fazia daquelas paisagens. Tudo integrado. Essas abordagens eram sua marca registrada.
Aprendi, assim, o que era visão integrada, ou porque não dizer, geográfica. E que essa visão integrada e multiescalar é chave para compreender a paisagem. Era preciso ir além de olhar, era preciso “ver” e “ler” a paisagem, como ele disse em uma de suas entrevistas, com todos os seus componentes articulados entre si, configurando-a. Que ensinamento. E ainda nem se falava os termos análise multiescalar e multicritério. Mas ele já praticava isso, embora com outros nomes. Entretanto o princípio ficou.
Parte 6
Ainda meados de 1972. Não havia xerox, nem todos conseguiam acessar as publicações na biblioteca. O centro acadêmico datilografava muitos textos e os reproduzia em mimeógrafo a álcool para disponibilizá-los aos alunos. Nessa época Aziz presidia o Instituto de Geografia da USP (IGEOG-USP). E nele editava a publicação de textos simples, como já exposto, em preto e branco e impressas em off set. A política editorial por ele conduzida era multitemática, consubstanciada em séries (coletâneas), cujos títulos reproduziam as disciplinas do curso de graduação em Geografia. Incluíam também de estudos de caso, de visões teóricas, de propostas metodológicas, de teses e dissertações. Assim, havia as séries de Geomorfologia, Climatologia, Geomorfologia e Pedologia, Biogeografia, e também Geografia Urbana, Geografia Agrária e outras tantas, a preços muito acessíveis. Formaram coleções memoráveis que muito auxiliavam os alunos e, porque não dizer, os docentes também. Paralelamente, Aziz também intensificou na prática uma das atribuições do IGEOG: distribuir bolsas de estudo. Os valores eram inferiores aos da FAPESP, CNPq, CAPES. Mas ajudavam muito. As normas do IGEOG e os princípios dele ajudavam a formar novos profissionais de Geografia. Novamente, a preocupação do Professor Aziz com a divulgação cientifica, com a pesquisa e o ensino.
Aprendi que a gestão de uma instituição de pesquisa, como era o IGEOG, deve ter políticas inclusivas, embro não se usasse esse termo à época. E que tais políticas devem favorecer o acesso aos materiais e equipamentos que auxiliem os alunos e os docentes em seus estudos e ensino, e sejam de qualidade. O IGEOG tinha esses princípios em seu estatuto/regulamento. Publicações, bolsas, atendimento de acadêmicos, apoio ao ensino fundamental (professores e alunos).
Segundo palavras felizes e oportunas de Mauro (2012):[5]
“O pesquisador, enquanto cidadão, identifica-se e transpassa, em muito, os limites de seu objeto de pesquisa, se relaciona com ele, com a racionalidade da ciência, mas sempre com a dedicação de quem tem emoções e ama” (p.8).
Parte 7
Modo indireto de estar com Ab’Sáber foi através também de seu livro: “O que é ser geógrafo”[7] que resulta das entrevistas concedidas à jornalista Cynara Menezes, com mais de 20 horas de gravação, como lembra Kzam (2022).[14] Segundo este autor, esse livro […] “representa uma espécie de autobiografia pessoal e profissional, pois revela as proezas e adversidades de seu comportamento íntegro e sensível às diversas inquietações da controvertida organização espacial brasileira[…]. Professor Emérito da FFLCH-USP, agraciado com o título de Presidente de Honra da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), tornou-se um dos cientistas mais respeitados dentro e fora dos círculos acadêmicos do país, o que pouco intelectuais conseguiram”. Eu acrescentaria que muito merecido.
Resumindo ainda Kzam (2022),[14] o livro está dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Profissão: geógrafo”, é a maior das duas, e contém 32 capítulos. Nela, destaca-se a importância do trabalho de campo e da abordagem interdisciplinar para a compreensão da realidade social e natural. Nesse sentido, entre outros, Ab’ Sáber destaca o papel de Pierre Monbeig (1908-1987), que foi quem organizou a primeira aula de campo da qual ele, Ab’Sáber, participou e que, segundo ele, teria mudado sua vida para sempre, pois como ele disse: “senti que podia ler a paisagem” (itálico nosso). A segunda parte, denominada de “Uma Ética para a Vida”, contém 7 capítulos que ressaltam, entre outros aspectos, a necessidade de desenvolvimento da ética nos estudos geográficos, como, por exemplo, dentre outros, o cuidado com os grupos sociais mais vulneráveis, pois, nas palavras dele, os mais carentes representam “multidões que estão abaixo da linha da pobreza”. Esse era Aziz Ab’Sáber.
Vale chamar a atenção para o fato de que, sem dúvida alguma, a Geografia, principalmente na USP, respondeu bastante bem a essa recomendação.
Considerações finais
O Professor Aziz Nacib Ab’Sáber ensinou muito mais que Geomorfologia, com certeza. Ensinou didática, ética, coerência, coragem, cidadania, paixão pelo que se dedicou, vinculação entre natureza e sociedade, metodologia de pesquisa em Geomorfologia, em Geografia Física e até de ensino da Geografia no nível secundário (hoje nível fundamental e médio) com muito campo.
Nesse imenso Brasil, que ele conhecia tão bem, suas ideias e seu modo de ensinar, sua prática usual, com muitos perfis, blocos diagrama, e uma oratória impecável, eram um exemplo de prática acadêmica, que inegavelmente inspiraram toda uma geração. E mais, aprendi que o que ele estava divulgando em aulas, publicações, orientações e eventos, demonstravam o vínculo inquestionável entre pesquisa e ensino, fato novo e muito estimulante para quem estava acostumado a livros didáticos que os professores utilizavam em suas aulas, no antigo ginásio e colegial (hoje nível fundamental e médio, respectivamente), que perfilhavam e ainda o fazem em muitos casos, uma didática tradicional.
Além disso, finalmente entendi que, para ele, geograficamente, nem tudo era uma questão de escala, mas muito mais de integração de escalas, hoje abordagens multiescalar no tempo e no espaço e multicritério na abordagem, deixando testemunhos visíveis e por vezes nem sempre nas paisagens, como testemunhos na sua reconstituição evolutiva. E de inclusão do ser humano e respectivos impactos ao usar, bem ou não, as paisagens e seus recursos, desde aqueles na escala local até a mundial, como as mudanças climáticas e impactos decorrentes. E aprendi, também, que podemos fazer tudo isso sem deixar nosso humanismo de lado. Ele tem que fazer parte. De tudo.
No dizer de Monteiro (2013) lembrando Guimarães Rosa “…as pessoas que amamos não morrem; ficam ENCANTADAS”. Eu arriscaria dizer que Ab’Sáber ficou ENCANTADO (por ter nos deixado), porém após e ainda, por continuar a ENCANTAR a muitos.
Missão cumprida, Professor!