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Cesar Lattes na Universidade Federal do Mato Grosso

Projeto Lattes deu oportunidade à UFMT de fazer parte de um grupo de destacadas instituições de pesquisa na área de raios cósmicos, altas energias e geocronologia.

 

Algo marcou a minha vida aos 19 anos que definitivamente determinou que eu continuasse me aplicando aos estudos e insistisse em qualificar especificamente para formar professores de Física. Foi um longo caminho com todas as nuances da vida de um ser humano comum do sexo feminino, nascida no continente sul-americano, migrante das Minas Gerais para o Mato Grosso. Casamento, filhas, trabalho, não necessariamente nessa ordem, mas nada, após conhecer Cesar Lattes, mudaria meus planos de me qualificar para formar professores da Educação básica. Contarei um pouco das minhas memórias desse primeiro contato:

Era um dia qualquer de maio de 1986, depois de muito trabalho para o Centro Acadêmico de Física “Professor João Vasconcellos Coelho” arrecadar recursos para receber Cesar Lattes, fomos eu, meu colega Paulo e Francisco Carlos Monteiro (Xyco) de fusca, buscar o eminente físico no aeroporto Marechal Rondon em Várzea Grande, cidade vizinha, porque nosso aeroporto “de Cuiabá” fica na cidade depois da ponte do Rio Cuiabá. Colocamos nossas melhores roupas e o carro estava impecável. Esperamos e esperamos, porque chegamos cedo. O avião pousou e o coração disparou, de repente corremos para o saguão e encontramos um senhor de bermuda, camisa florida e sandália Itapuã, muito na moda naquele tempo, óculos no alto da cabeça vindo em nossa direção. Claro que esperávamos um senhor de terno, todo formal. Hoje sei que fomos levados pelo imaginário do que seria a indumentária de um “prêmio Nobel” – gostei de ver que meu modelo não estava correto. (Figura 1)


Figura 1. Professor Lattes palestrando no Departamento de Física
(Acervo pessoal)

 

Cesar Lattes nos cumprimentou com um sorriso paternal. Apresentei-me, assim como os demais. Ele perguntou se eu acreditava em realidade objetiva – gelei. Claro que nem sabia do que se tratava, mas para aparecer disse a ele que estava estudando o paradoxo dos gêmeos, ele sorriu de novo e disse que Albert Einstein era uma besta e que não me preocupasse com isso. Uma vez no carro, já próximo da hora do almoço, o convidamos para almoçar. Havíamos guardado dinheiro para levá-lo a uma das nossas mais tradicionais peixarias da cidade, a saudosa “Peixaria Popular”. Era momento raro para nós, tanto pela companhia ilustre quanto pelo almoço na peixaria – assim como no Sul e Sudeste há muitas churrascarias, aqui temos peixarias. Bom, ele perguntou se na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) tinha restaurante universitário e quis almoçar lá. Fiquei preocupada com o nosso cardápio, mas foi ótimo porque tinha, entre outras iguarias do bandejão nosso de cada dia, farofa de banana. Cesar Lattes foi uma ótima companhia nesse almoço especial. Lembro-me pouco de detalhes da nossa conversa, mas recordo que os alunos dos cursos de Física, Matemática e Química logo o reconheceram e formamos um grupo animado falando de ciência, de professores, de Brasil e de futuro. De repente, ele se incomoda com algo na boca e tira a dentadura para limpar o incômodo, sem a menor cerimônia, espanto geral que passou num lampejo, afinal entre jovens universitários esse tipo de atitude não causa mais do que uma pequena estranheza – tomara que hoje ainda seja assim. Foi uma aula de vida e de sinceridade e aprendi que o que importa é o nosso conhecimento, nossa responsabilidade, nossas convicções e o resto é resto. Foram dias memoráveis, uma semana de aulas com ele, e muita, muita conversa, sobre a ciência brasileira, sobre o Brasil. Sei que também nossos professores do então departamento de Física nunca mais foram os mesmos e que muitos sonhos de se qualificar, fazer pesquisa de ponta, vieram dali.

Logo após essa visita ao Departamento de Física, dois protocolos de intenção de cooperação científica foram firmados, noticiados na imprensa local,[i] entre o departamento de Física Geral e Experimental da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o Departamento de Física do Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia da UFMT, o Núcleo de Estudos e Pesquisa do Rio de Janeiro (NEPEC) e o Núcleo de Instrumentação da UFMT. Esses protocolos foram a promessa de um convênio entre essas instituições, que foram assinados no gabinete do então reitor Eduardo De Lamônica Freire. É importante destacar a presença, além de Cesar Lattes e Armando Dias Tavares, este último presidente do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Rio de Janeiro, Carlos Augusto de Azevedo, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas, Abílio Camilo Fernandes Neto, Francisco Carlos Monteiro, respectivamente chefe e subchefe do Departamento de Física da UFMT, Paulo Eduardo Dias e eu como representantes do Centro Acadêmico de Física, José Mário Fontes Amiden, coordenador do Núcleo de Instrumentação da UFMT e Trentino Polga, do Centro Tecnológico para Informática, do Ministério da Ciência e Tecnologia.

 

“A existência do Píon, ou Méson Pi, foi comprovada experimentalmente por César Lattes, então jovem com 24 anos.”

 

A partir daí, com a chegada da minha primeira filha, me afastei temporariamente das atividades acadêmicas, tranquei o curso, mas acompanhei pelo noticiário local a assinatura do termo de cooperação que consolidou na UFMT o Projeto Lattes dando oportunidade à UFMT de fazer parte de um grupo de destacadas instituições de pesquisa na área de raios cósmicos, altas energias e geocronologia.

Foi um tempo de efervescência com a expectativa de cooperação virtuosa entre instituições de diversos países: Brasil, Japão, União Soviética, Itália, Polônia e Bolívia. No Brasil, faziam parte do programa a Universidade de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade de São Paulo (USP) e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), e, na União Soviética, a Academia de Ciências da República Socialista Soviética da Geórgia, através de Nina Nikolaevna Roinisrivili. Vale destacar que nessa mesma ocasião outro protocolo de intenção de cooperação científica foi assinado também com a Scuela Normale Superior de Pisa e com o Laboratório de Geocronologla e Geoquímica Isotópica de Pisa (Itália), que possibilitaria a vinda dos pesquisadores Erasmo Recami e Giorgio Ferrara para a concretização de outro projeto idealizado pelo cientista Cesar Lattes: a datação da nossa bela Chapada dos Guimarães com participação do Departamento de Geologia da UFMT. Deu-se então início ao “Programa Cesar Lattes”. (Figura 2)


Figura 2. Assinatura do Protocolo de intenção de cooperação científica – da esquerda para direita: Nina Nikolaevna, Takao Tati, o reitor De Lamonica Freire, Cesar Lattes, Edson Shibuya.
(Acervo pessoal)

 

Cesar Lattes se mudou para Cuiabá e passou a residir no Bairro Boa Esperança, ao lado da UFMT, em meados de 1988. Logo após instalado, trouxe Takao Tati, que veio do Japão para ficar um ano na UFMT.

Soube de uma palestra que ele faria no Departamento de Física e não pude resistir em assisti-la. O tema era “Uma Expectativa de Observação dos Fenômenos de Energia Ultra-alta”. Takao Tati falou da Teoria Quântica de Campos, subjacente à previsão teórica do físico japonês Yukawa de que a força nuclear entre núcleons é mediada por uma partícula, desconhecida naquela época – o Píon. A existência do Píon, ou Méson Pi, foi comprovada experimentalmente por Cesar Lattes, então jovem com 24 anos. A imprensa local noticiou, destacando:[ii] “O que constituiu no alvorecer da física das partículas elementares”, considerou Takao Tati. O cientista japonês explicou ainda que o programa de cooperação entre Brasil, Polônia, Japão, URSS e Bolívia “está observando fenômenos que ocorrem a energias ultra-altas, induzidos por raios cósmicos, tendo obtido muitos resultados interessantes que sugerem a existência de novos estados da matéria, até então desconhecidos. Ele citou, também, a teoria de renormalização, da qual é precursor, cuja validade é aplicada a partir de fenômenos de baixas energias. Se seu limite de aplicabilidade aparecer nos fenômenos de ultra-altas-energias, segundo Takao Tati, “deverá ocorrer uma profunda reformulação no conceito fundamental da física – o espaço-tempo.” (Figura 3)


Figura 3. Palestra do Prof. Takao Tati. Ao fundo: professores Marcos, João Vasconcelos Coelho, Cesar Lattes, eu e um colega da licenciatura.
(Acervo pessoal)

 

A abrangência do Programa Lattes na UFMT

Era a inauguração de uma nova etapa da UFMT e do Departamento de Física, fazendo valer sua autonomia. Parecia florescer, porque o ensino e extensão já eram atividades muito bem desenvolvidas e, agora, teríamos a possibilidade de produzir pesquisa de ponta, consolidando o tripé pesquisa-ensino-extensão, vocação da academia. Mas nada é fácil, inclusive no âmbito das críticas. Eduardo De Lamonica Freire, em entrevista para a imprensa, pontuou que “se sente espantado” quando lhe é questionada a validade do Programa César Lattes, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em uma universidade regional. Lattes defendia, também, afirmando que “A ciência é universal e deve ser desenvolvida em favor do ensino…” e foi enfático ao lembrar a universalidade da ciência e a necessidade do desenvolvimento tecnológico no “mundo moderno”.[iii]

 

“A ciência é universal e deve ser desenvolvida em favor do ensino.”

 

Por outro lado, sob a ótica dos nossos professores do Departamento de Física, capitaneados por Abílio, Amiden e Xyco, o Programa Cesar Lattes era a oportunidade sonhada para a implementação da pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. Muito esforço foi feito para a adequação do espaço físico, laboratórios e instalação de Cesar Lattes e Takao Tati em Cuiabá. O apoio inicial do CNPq foi fundamental: era o impulso necessário, naquele momento, para a que o embrião que indicava a potencialidade da Física da UFMT se desenvolvesse.

Estavam previstas, no âmbito do Programa, pesquisas em: Física Teórica, a cargo de Takao Tati, do Japão; Interação da Radiação com a Matéria, coordenada por Adriano Goggini, da Escola Superior de Pisa, Itália; e a Interação de Energia Muito Alta, com a colaboração de pesquisadores da Bolívia, Japão e União Soviética. Vale destacar dois outros temas bem oportunos. Partículas e radiação solar, considerando que 1988 /1989 foi um período em que o Sol entrou em atividade máxima, com erupções que enviaram a Terra uma maior densidade de partículas com propriedades não compreendidas. O projeto destinava-se também a estudar variações das radiações solares e datação geocronológica da Chapada dos Guimarães e Pantanal Mato-Grossense, envolvendo também pesquisadores do Departamento de Geologia. Sobre a Chapada dos Guimarães é importante destacar que é um importante ponto turístico a cerca de 60 km de Cuiabá. Estudos geológicos determinam que se trata de uma região de formação rochosa constituída por um depósito marinho com idade estimada entre 440 e 475 milhões de anos. Foi um mar fechado de águas rasas, hoje com imensos e lindos paredões de rocha. Naquele tempo até os ufólogos lá esperavam discos voadores. Apesar das pesquisas, contudo, a região não possui sua composição geológica totalmente conhecida. O Pantanal Mato-Grossense, a cerca de 150 km, é a maior planície de inundação da Terra. Esse segundo estudo ficou sob a coordenação de Giorgi Ferrara, do Laboratório de Geocronologia do e Química Isotópica de Pisa, na Itália. Logo, podemos observar que era um projeto de fôlego que, se consolidado, mudaria em definitivo a Física do Estado de Mato Grosso.

Ainda afastada do curso de Física, acompanhei pela imprensa a notícia da abertura da mostra da descoberta científica do Cesar Lattes intitulada “40 anos da descoberta do Méson Pi”, organizada por Ernest Hamburguer, do Departamento de Física Experimental do Instituto de Física da USP, no corredor do Departamento de Física da UFMT. Pesquisei para lembrar a data, com muito custo e ajuda de um amigo, e descobrimos que foi em 4 de outubro de 1988. Eu gostaria ter ido, mas minha filha estava com um ano e meio, e deveria estar demandando a presença da mãe. (Figura 4)

Figura 4. Abertura da exposição comemorativa dos 40 anos de descoberta do Méson Pi.
(Acervo pessoal)

 

Busquei nos arquivos da UFMT o desenrolar de toda essa história, do Projeto Lattes e seus frutos na UFMT. Encontrei apenas algumas pequenas notas na imprensa. Falei com professores da época e consegui um depoimento que expressa um sentimento do então chefe do Departamento de Física, o grande articulador da vinda de Cesar Lattes para Cuiabá, Abílio Camilo Fernandes Neto, já citado. Permito-me transcrevê-lo:

 

“Foi com grande satisfação que a UFMT, mais especificamente o Departamento de Física, recebeu o Professor e Pesquisador Cesar Lattes para um período de palestras e desenvolvimento de projetos. Além da satisfação, foi uma surpresa muito agradável receber, pela primeira vez em nosso Departamento de Física, um cientista tão importante do Brasil e do mundo. Muitos professores e alunos não acreditavam que o famoso Lattes estava em visita à nossa Universidade.

 

É importante ressaltar que era um desafio para os professores do departamento fazerem parte do Programa Cesar Lattes, previsto para ser desenvolvido na UFMT sob sua coordenação, com duração prevista de três anos. Outros cientistas renomados do mundo, principalmente do Leste Europeu, participaram das atividades do projeto, realizando visitas a Cuiabá, com o objetivo maior de ampliar e consolidar a formação em ciência básica da comunidade científica e tecnológica de Mato Grosso.

Outro projeto apresentado aos professores, não apenas do Departamento de Física, mas também de outras áreas, foi sobre os raios cósmicos, que contou com a participação ativa de pesquisadores da Bolívia.

Acredito que uma das maiores contribuições de Cesar Lattes para a UFMT e o Departamento de Física tenha sido a vinda do professor e cientista do Japão, Takao Tati. Tati e sua esposa residiram em Cuiabá por um ano. Durante esse período, Tati escreveu um livro sobre a eletrodinâmica quântica, fazendo referências à sua permanência na UFMT e ao apoio que recebeu para elaborar seu livro e dar continuidade aos seus estudos – o livro foi revisado e traduzido pelo João Vasconcellos Coelho, fundador do nosso departamento.

 

“O Programa Cesar Lattes era a oportunidade sonhada para a implementação da pós-graduação em nível de mestrado e doutorado.”

 

Cesar Lattes foi recebido com muita honra pelo reitor Eduardo De Lamonica Freire e todo o reitorado, demonstrando o interesse da UFMT em contar com sua presença e dos demais professores que ele pretendia convidar para implementar os diversos projetos. A contribuição para o desenvolvimento científico e tecnológico da universidade seria significativa com os trabalhos a serem desenvolvidos. Foi um período de muito estudo e acesso ao desenvolvimento científico nas áreas dos projetos desenvolvidos, vivenciado tanto pelos professores quanto pelos alunos do Departamento de Física da UFMT.

Apesar de já estar com a saúde debilitada, Lattes sempre foi muito atencioso e preocupado com a possibilidade de criar grupos de pesquisa, principalmente na área dos raios cósmicos. Suas pegadas permanecem para sempre no Departamento de Física da UFMT, e seus ensinamentos estão gravados nos corações e mentes dos professores e alunos. Gratidão eterna. (Figura 5)


Figura 5. Professores do Departamento de Física em 1988. Em pé da esquerda para a direita: Walter Milhomen, Francisco Monteiro (Xyco) Abilio Camilo, Nina, Cesar Lattes, Takao Tati, Trentino Polga e Marcos. Sentados da esquerda para direita: Carlos Rinaldi, Shozo Shiraya, José de Souza Nogueira (Paraná), Telma Cenira, Edson Shibuya e Carlos Eduardo Rondon (Caju).
(Acervo pessoal).

 

De minha parte, entendo que o Projeto Cesar Lattes não vingou como esperado. Mas fato é que hoje somos um Instituto de Física com dois cursos de graduação e quatro programas de pós-graduação. Considerando nossa história, temos um bom DNA acadêmico. Vale a pena aproveitar!

 

Capa. César Lattes contribuiu para o desenvolvimento científico e tecnológico da UFMT.
(Acervo)
Iramaia Jorge Cabral de Paulo

Iramaia Jorge Cabral de Paulo

Iramaia Jorge Cabral de Paulo é professora do Programa de Pós-Graduação em Física Ambiental do Instituto de Física da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É editora da revista Experiências em Ensino de Ciências (EENCI) e é coordenadora do Grupo de Pesquisa em Sistemas Ambientais Complexos.
Iramaia Jorge Cabral de Paulo é professora do Programa de Pós-Graduação em Física Ambiental do Instituto de Física da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É editora da revista Experiências em Ensino de Ciências (EENCI) e é coordenadora do Grupo de Pesquisa em Sistemas Ambientais Complexos.
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