Questionamentos e vontade de superar a si mesmo marcaram vida do cientista
Quando, após cinco anos no exterior, voltei ao Brasil como professor assistente do Instituto Tecnológico de Aeronáutico (ITA), aceitei o convite para dar aulas no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Esta foi a primeira vez que vi César Lattes. Ele se indispôs, nesta ocasião, com o diretor do CBPF e houve um violento embate em palavras.
Logo depois voltei para os Estados Unidos, ainda em 1964, para reassumir minhas funções no Laboratório Bell, pois era impossível fazer pesquisa nas condições de convulsão e absoluta ausência de recursos.
Quando voltei definitivamente para o Brasil seis anos depois, encontrei Lattes na recém-criada Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O Instituto de Física dessa universidade abrigava, além do pequeno grupo de Lattes, uns 10 ou 12 professores.
Minha previsão era de um conflito com Lattes em tempo relativamente pequeno. Pois bem, nunca tivemos um único mal-entendido. Lattes estava em busca ainda de sua bola de fogo e sua pesquisa se limitava a interpretar dados vindos de Chacaltaya.
Seu sucesso tinha sido tão grande na descoberta do méson-π que poucos o questionavam. Mas na Unicamp tinha conseguido alguns inimigos. Ficou notório o fato dele ter jogado um limpador de lousa na cabeça do General Valverde, então diretor da Engenharia.
“Seu sucesso tinha sido tão grande na descoberta do méson-π que poucos o questionavam.”
Em menos de um ano ficou pronto o seu laboratório no campus definitivo da Unicamp e para lá se mudou. Inicialmente ocupava o porão de uma escola secundária cedida à Unicamp.
Nunca ouvi uma palavra de ataque a um de nossos colegas. Em um momento pediu-me para contratar um seu colega do Rio de Janeiro para assumir a chefia de seu departamento. Assim fiz, mas não durou muito, pediu-me para mandá-lo embora. Não me disse por quê. Sua vontade era soberana. Desculpei-me com o pesquisador e enviei-o de volta ao Rio de Janeiro. Não houve altercação, todo mundo sentiu que Lattes era o Lattes e ele teria sempre razão.
Uma faceta do Lattes que é preciso mencionar é o seu fracasso depois da imemorável descoberta do méson-π espontânea e produzida por máquina. Como é natural e frequente, Lattes queria sempre superar a si mesmo.
Gleb Wataghin, responsável pela implantação da seção de ciências físicas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1934, dizia que ele merecia o Prêmio Nobel, tal importância de sua descoberta experimental. Eu concordo. E muitos físicos do Brasil e do exterior com quem conversei também concordam. Para mim é um mistério porque o Prêmio Nobel não lhe foi outorgado.
Lattes lutou a vida toda contra distúrbios mentais. Dizia ele que se submetia a choques elétricos para livrar-se dos devaneios. Convém também dizer-se que ele tinha um lado místico semelhante ao de Mário Schenberg que, durante um período de três meses (1968), passou em minha casa fugindo da prisão. Isso ocorreu nos Estados Unidos. Todas as noites um carro com dois personagens ostensivamente ficava em frente à minha casa. Eram certamente do FBI. E consegui para Schenberg várias prorrogações de seu visto. (Figura 1)
Figura 1. César Lattes, Mário Schenberg e José Leite Lopes, físicos brasileiros.
(Fonte: http://zenith.mast.br. Reprodução)
Schenberg compartilhava com Lattes e Newton Bernardes algumas dúvidas esotéricas. Enquanto Schenberg tinha sua percepção mais organizada, tendendo ao budismo, Lattes tinha crenças prosaicas vindas de mitos populares. Por exemplo, recebia, através de uma empregada, cartas de sua esposa já falecida, psicografadas.
Há um episódio que merece ser relatado, pois descreve suas ambivalências. Veio à minha sala com Newton Bernardes, físico também muito inteligente, para convidar-me para visitar Hilda Hilst, já famosa escritora, perto de Campinas. Seria para ver um fenômeno extraordinário e lá fui eu acompanhado de meus dois amigos.
Hilst era uma personagem inesquecível. Levou-nos a um quarto onde tinha uma montanha de equipamentos eletrônicos de sons ligados uns aos outros e, de vez em quando, ouvia-se um ronco ou som parecido. Conclui imediatamente que se tratava de reverberação, pois é impossível, a não ser por técnicos em eletrônica, ligar tantos aparelhos sem que circuitos de realimentação se formem.
Expliquei isso aos dois físicos teóricos, meus amigos, que não acreditaram em mim. O que confirma a vocação mística dos dois.
“Ele merecia o Prêmio Nobel, tal importância de sua descoberta experimental. E muitos físicos do Brasil e do exterior também concordam.”
Outra vez, levei Roberto Salmeron que era membro do Conselho de Administração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), para visitar o Lattes. Este mostrava uma grande percepção. Mostrou uma carta psicografada que sua esposa havia mandado e lembro-me que me disse: “não mostro para você porque você é um incrédulo”, com o que pensava estar me ofendendo. Não sei o quê Salmeron pensou, não falamos sobre o assunto.
Pensando nos dois físicos teóricos Schenberg e Newton Bernardes com maior sucesso e Lattes, acho que chego à conclusão de que o sucesso é um grande perigo. Pois frequentemente não pode ser alcançado pela segunda vez pelo vitorioso.
Schenberg, Bernardes, Lattes, homens de inteligência superior, sugerem que isso não está longe da verdade.
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