Ao longo dos seus 75 anos, a revista Ciência & Cultura promove a participação das mulheres na ciência
A participação das mulheres na formação do pensamento científico é tão antiga quanto a origem da própria ciência. Contudo, a atuação feminina está longe de ter a mesma equidade ao longo da história: meninas e mulheres ainda enfrentam uma série de obstáculos ao acesso às carreiras científicas, assim como à manutenção e à promoção, que abrangem aspectos tanto culturais quanto estruturais.
Felizmente, este cenário vem mudando, mesmo que a passos lentos. Hoje, vemos mulheres envolvidas em várias áreas e perspectivas na ciência, onde até pouco tempo atrás só víamos homens atuando. Prova disso é o fato de que 46% — ou seja, quase metade do total de pesquisadores nos países da América Latina e Caribe — são mulheres, segundo relatório realizado pela British Council em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2022. Com isso, a região conquistou na última década a chamada paridade de gênero na ciência, que ocorre quando 45% entre 55% dos pesquisadores são representados por mulheres. Ainda, o Brasil possui 72% de seus artigos científicos assinados por ao menos uma mulher (seja como autora ou coautora), liderando o ranking dos países ibero-americanos, de acordo com o estudo da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) realizado em 2019.
“Com certeza, a divulgação científica pode reforçar o protagonismo delas na produção de ciência, tecnologia e inovação em todos os campos de conhecimento, difundir sua produção científica e afetar positivamente a opinião pública.”
“Os canais de divulgação científica que se propõem a contar as histórias de vida das mulheres e de suas pesquisas enquanto cientistas promovem não só a visibilidade, mas também desconstroem muitos estereótipos e mitos, além de inspirar outras meninas e mulheres a produzir conhecimento e a pensarem que ‘esse espaço também é pra mim’”, declara Bettina Heerdt, professora do Departamento de Biologia na Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná (Unicentro) e pesquisadora em Educação e Ensino, Gênero, Sexualidade e relações étnico-raciais. “Com certeza, a divulgação científica pode reforçar o protagonismo delas na produção de ciência, tecnologia e inovação em todos os campos de conhecimento, difundir sua produção científica e afetar positivamente a opinião pública”, afirma Maria Elisa Máximo, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e secretária regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de Santa Catarina.
Inspirações
A revista Ciência & Cultura da SBPC, como o mais antigo veículo de divulgação científica em circulação no Brasil, sempre se preocupou em estimular a participação feminina. Especialmente no contexto da revista ao longo de seus 75 anos de existência, é possível observar a evolução dessas representações e narrativas na ciência. O primeiro artigo escrito por uma mulher foi publicado por Rosina de Barros (1909-1996) já na terceira edição da revista, em 1949. Nomes como Graziela Maciel Barroso (1912-2003), importante botânica brasileira, Marília Chaves Peixoto (1921-1961) matemática e engenheira e primeira mulher brasileira a ingressar na Academia Brasileira de Ciências (ABC), Elisa Frota Pessoa (1921-2018), uma das primeiras físicas no país e uma das fundadoras do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), são importantes protagonistas cujo impacto de seus pioneirismos refletem diretamente na evolução acadêmica que vivenciamos até os dias atuais.
Com destaque também para Johanna Dobereiner (1924-2000), agrônoma pioneira em biologia de solo, cujo estudo sobre a fixação de nitrogênio representou um avanço significativo para a agricultura tropical e o cultivo de soja. O Brasil é hoje o maior exportador de soja do mundo, com cerca de 101 milhões de toneladas de soja exportada em 2023, segundo a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC). (Figura 1)
Figura 1. Johanna Dobereiner, engenheira agrônoma brasileira, pioneira em biologia do solo.
(Fonte: Embrapa. Reprodução)
É praticamente impossível não associar a SBPC aos feitos de Carolina Bori (1924-2004): a primeira mulher a ocupar a presidência da entidade em 1987. Entre tantas frentes de atuação, Carolina Bori destacou-se ao popularizar a ciência por meio de programas de rádio e conferências, na regulação da Psicologia como ensino e profissão no Brasil, enfrentou a ditadura militar e defendeu que a comunidade científica olhasse para os problemas sociais do país, buscando diminuir a distância entre o conhecimento acadêmico e o público em geral. (Figura 2)
Figura 2. Carolina Bori, uma das primeiras psicólogas brasileiras a realizar trabalhos de campo e primeira mulher a ocupar a presidência da SBPC
(Fonte: ABPMC. Reprodução)
Membro titular da ABC, Vanderlan da Silva Bolzani (1949), professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, foi a primeira presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) em 2008 e vice-presidente da SBPC durante dois mandatos, sendo responsável pela criação do Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher” em 2019. “Até então, a SBPC só tinha premiado homens e não tinha nenhuma premiação para homenagear as cientistas mulheres. Então, em uma assembleia-geral fiz a proposta de criação do Prêmio Carolina Bori para mulheres e meninas na ciência: hoje um grande sucesso. Sinto-me feliz por ter criado esta premiação e mais ainda por ter tido total apoio”, declara. Este ano, a pesquisadora foi homenageada com uma edição especial da revista científica Journal of Natural Products da Sociedade Americana de Química (ACS), referência na área química, destacando seu papel como formadora de novas gerações de cientistas. “Foi a primeira vez que esta homenagem é concedida a um cientista fora dos Estados Unidos e Europa. Fiquei muito emocionada e feliz com este reconhecimento. Acredito que são com ações desta natureza que continuaremos a mudar a história”.
Espaços
Muitas outras seguiram e seguem sendo inspiração, como é o caso de Jaqueline Goes de Jesus (1989), biomédica recentemente nomeada Embaixadora da Ciência no Brasil e é mais um exemplo importante dessas conquistas. Uma mulher, negra, nordestina, que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2 apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil. “Mulheres como ela abriram caminhos, mostraram que é possível ocupar espaços de diferentes graus de importância, produziram trabalhos relevantes, alcançaram reconhecimento e, por isso, têm um papel fundamental na representatividade”, destaca Maria Elisa Máximo. “Contudo, é crucial refletirmos sobre os limites da representatividade, que em geral, esbarra na cultura meritocrática: elas chegaram nos ‘topos’ da carreira acadêmica em suas áreas, mas, há de fato condições reais para que todas cheguem? Se quisermos que as meninas de hoje se tornem futuras cientistas, elas devem sim conhecer, ler, explorar a histórias dessas mulheres, sua produção, sua trajetória. E mais: precisamos ampliar esse panteão da representatividade, e incluir definitivamente nomes como Lélia Gonzalez, Jurema Werneck, Cida Bento, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Sônia Guimarães e outras intelectuais negras, indígenas, deficientes, etc. As novas gerações precisam mais do que exemplos nos quais se espelhar e se inspirar. Elas precisam de condições reais e efetivas para acessarem, permanecerem e transitarem no meio acadêmico, em todas as suas áreas e espaços, incluindo os de poder e de decisão”, declara. (Figura 3)
Figura 3. Jaqueline Goes de Jesus, biomédica que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2 apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil.
(Fonte: UFBA. Reprodução)
Desigualdade de gênero
A disparidade de gênero é uma característica presente em praticamente todas as áreas da ciência. Mulheres geralmente constituem uma minoria em várias disciplinas e enfrentam mais desafios do que os homens para avançar em suas carreiras ou alcançar posições de liderança. Ainda hoje, existem assimetrias no campo científico, onde as ciências STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática) consideradas “duras” são frequentemente associadas a pesquisadores homens. Nessas áreas, as mulheres são apenas 33%, de acordo com o relatório “Women and the Digital Revolution” da ONU, que inclusive criou o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) voltado para mudar esse cenário. “É muito comum vermos mulheres mais presentes em ambientes acadêmicos relacionados ao cuidado, como medicina, enfermagem ou biologia, do que ocupando esses espaços em outras áreas como as engenharias e a física, por exemplo”, reforça Bettina Heerdt.
À medida que a revista Ciência & Cultura evoluiu, artigos e discussões passaram a abordar mais questões como desigualdade salarial, representatividade e discriminação, além de destacar o impacto de mulheres que abriram caminho para outras. Isso ajudou a aumentar a conscientização sobre a importância da diversidade e da equidade de gênero na ciência. “Quando pensamos em uma ciência mais diversa e inclusiva, precisamos pensar no gênero e nas suas interseccionalidades, pois, quando impedimos mulheres negras, indígenas, trans de participarem da ciência, não é um prejuízo só para essas pessoas que não estão produzindo conhecimento, mas é um prejuízo também para toda a humanidade”, ressalta Bettina Heerdt.
“Quando impedimos mulheres negras, indígenas, trans de participarem da ciência, não é um prejuízo só para essas pessoas que não estão produzindo conhecimento, mas é um prejuízo também para toda a humanidade.”
Para Maria Elisa Máximo, o grande desafio é eliminar as formas de violência que essas mulheres ainda enfrentam nas diferentes esferas das ciências. “Desde a dimensão epistêmica (pelo não reconhecimento, valorização e até pelo ‘sequestro’ de suas ideias e formulações), até violências psicológicas e físicas, de assédio moral e sexual. Neste ponto, é urgente que governos e gestores se empenhem na elaboração e efetivação de políticas públicas e institucionais voltadas ao enfrentamento dessas violências, incluindo o racismo, xenofobia, intolerância religiosa, discursos de ódio, manifestações neofascistas e qualquer outra prática ou visão de mundo pautada pelo machismo e pela misoginia”, reforça.
Diversidade de perspectivas
A desconstrução de preconceitos, por mais clichê que seja, é parte de um processo que resulta na melhoria do espaço feminino. “Temos que ter um ambiente mais que familiar para mudanças da questão de gênero, onde as meninas e meninos possam perceber que o mundo sustentável, tão propalado e discutido hoje, deve ter homens e mulheres excelentes no que fazem, independente da área”, ressalta Vanderlan Bolzani. Pioneiras na ciência, artes e cultura, muitas são as mulheres que merecem ser destacadas não apenas por suas contribuições, mas por serem protagonistas no entendimento mais amplo da ciência brasileira e na sociedade. “A importância da divulgação científica está muito ligada à humanização das mulheres cientistas. A partir do momento em que divulgamos a história dessas mulheres, divulgamos também pessoas que são humanas, que têm filhos e uma vida social, mulheres que produzem um conhecimento comprometido tanto político quanto social. E o melhor, conseguimos fazer com que essas histórias sejam também de outras pessoas.”
“Mesmo com os avanços que alcançamos hoje em plena sociedade do conhecimento, temos que ter espaços mais justos e igualitários com relação às mulheres em todos os campos profissionais que elas queiram estar.”
A diversidade de perspectivas e vozes advindas de experiências das mulheres enriquece e promove a inovação nos campos científicos e culturais de diversas maneiras, refletido em benefícios tanto para a qualidade da pesquisa quanto para a relevância cultural. “É mais do que uma questão de valorização das mulheres e das cientistas. É uma questão social. Mesmo com os avanços que alcançamos hoje em plena sociedade do conhecimento, temos que ter espaços mais justos e igualitários com relação às mulheres em todos os campos profissionais que elas queiram estar”, conclui Vanderlan Bolzani.