Um curso moderno de psicologia

Curso inovador da Universidade de Brasília integra conceitos teóricos e habilidades práticas, visando formar tecnólogos capacitados em aplicar as leis do comportamento no cotidiano.

Resumo

O ensino visa incrementar e diversificar o repertório de comportamento dos indivíduos, utilizando métodos educacionais baseados em princípios sólidos de aprendizagem. Embora tenha havido progresso significativo nas leis de aprendizagem nos últimos 35 anos, sua aplicação na educação ainda é limitada, com destaque apenas para a instrução programada e textos programados. No entanto, para as ciências experimentais, são necessárias habilidades além das verbais. No novo Departamento de Psicologia da UnB, será oferecido um curso básico focado em conceitos, princípios e técnicas fundamentais de aprendizagem, visando formar estudantes capacitados a aplicar as leis do comportamento eficazmente em sua prática diária.

O objetivo do ensino consiste, em geral, em incrementar e diversificar o repertório de comportamento dos indivíduos. Como isto supõe aprendizagem, os bons métodos educacionais devem utilizar o que há de melhor na compreensão que se tem do processo de aprendizagem. Devem, pelo menos, tentar aplicar os princípios mais facilmente demonstráveis no laboratório, pois, se a solidez dos princípios não depende da praxe educacional, a melhor prática será a que mais adequadamente os empregue.

No que diz respeito às leis de aprendizagem, muito progresso houve nos últimos 35 anos. Mas o único indício, até esta data, de que estejam sendo estendidas ao ensino é a instrução programa, especialmente os textos programados. Contudo, bons textos não são o suficiente, pelo menos para as ciências que se pretendem experimentais. Outras habilidades são necessárias, além das simplesmente verbais, se o estudante tiver que aprender a fazer as coisas que o cientista ou o tecnólogo realizam. Ora, em psicologia o que se quer é que todos os estudantes sejam pelo menos “tecnólogos”. Isto é, que usem as leis do comportamento de modo eficaz em sua atividade cotidiana; que, ao lado do conhecimento “discursivo”, tenham também conhecimentos “práticos”.

Ao planejar a implantação de um novo Departamento de Psicologia, orientado experimentalmente no campo da aprendizagem, não se poderia deixar de começar em casa a tentativa de aplicação desses princípios. Talvez seja prematuro falar de uma experiência que apenas se terá iniciado quando o presente número da Ciência & Cultura estiver impresso, mas a intenção é a de que possa ser acompanhada de perto por todos os que se interessam pelo ensino de ciências. A começar no dia 16 de agosto, o Departamento de Psicologia da UnB oferecerá um curso básico onde serão examinados os conceitos, princípios e técnicas fundamentais, destinado a estudantes de psicologia e a outros para os quais a matéria é subsidiária. Este curso corresponde ao ponto de vista de conteúdo a mais ou menos um ano letivo, tal como, por exemplo, o “1-2” da Universidade de Columbia, ou ao “2⁠º” de psicologia experimental da Universidade de São Paulo (USP). (Figura 1)


Figura 1. Capa da 4a edição da revista Ciência & Cultura de 1964
(Fonte: Acervo SBPC)

 

Será um curso com 9 aulas, 16 demonstrações, 15 experimentos, 9 seminários e exigirá de 50 a 100 horas de leitura. Leituras, aulas, experimentos, seminários e demonstrações serão programados em tarefas que possam ser realizadas sem dificuldade e de uma só vez. Cada uma dessas tarefas será chamada um passo. A divisão do curso em pequenos passos que possam ser facilmente dominados correspondo à aplicação do princípio das aproximações sucessivas, demonstrado no laboratório nos estudos de encadeamento diferenciação.

As aulas serão pouco frequentes e distribuídas ao longo do curso, e só poderão ser frequentadas por estudantes que já tenham chegado ao ponto de poder apreciar o conteúdo delas. Para os estudantes que só o alcançarem em data posterior, haverá uma gravação da aula. Também as demonstrações, sempre que possível, serão repetidas. Entretanto, a frequência a essas aulas e demonstrações será inteiramente optativa e nenhum exame versará sobre elas. Toda gente hoje sabe que a atividade é essencial ao aprendizado, isto é, para que os comportamentos possam ser reforçados é necessário que sejam antes emitidos. Entretanto, uma vez eliminado o aversivo caráter compulsório que possam ter, as aulas poderão ser recompensadoras e motivadoras, agindo como os reforçados secundários do laboratório.

 

“Ora, em psicologia o que se quer é que todos os estudantes, ao lado do conhecimento ‘discursivo’, tenham também conhecimentos ‘práticos’.”

 

Os alunos poderão participar dos seminários sempre que o desejarem e estiverem em dia com o trabalho. Desnecessário dizer que as discussões nos seminários nunca serão usadas como artifício de exame. O seminário destina-se ao estudante que mereceu o direito de comentar e fazer perguntas a respeito do trabalho que está conduzindo no laboratório ou na biblioteca. Às vezes se superestimam os atrativos intrínsecos do conhecimento e o papel que possam ter as compensações finais da graduação. Seminários e discussões podem criar para os estudantes uma comunidade presente que valorize imediatamente o domínio do repertório programado. De outro lado, quase sempre, o processo de aprendizagem das noções exige uma redisposição do repertório verbal, uma reconstrução da experiência como diria Dewey, ou uma maior reversibilidade dos conceitos como diria Piaget. As discussões proporcionam ocasião para que esses rearranjos ocorram.

O trabalho de laboratório começa depois no nono passo do curso e é sua característica mais importante. Cada estudante disporá de um equipamento adequado durante o tempo necessário para a realização de suas tarefas. O consenso de opinião dos professores de ciência sustenta que o ensino deve acentuar o treino de laboratório. É difícil, entretanto, trazê-lo para os cursos introdutório de graduação, uma vez que habitualmente esse treino exige estreito contato pessoal entre instrutor e alunos. A solução encontrada foi a de preparar cuidadosamente instruções escritas que pormenorizem cada ato ou observação a serem executados, utilizando ilustrações e a linguagem mais simples, direta e pessoal possível. As primeiras instruções começam pela operação dos aparelhos que o estudante usará e devem ser concomitantemente acompanhadas da manipulação dos mesmos. Essas instruções devem funcionar como estímulos discriminativos para ações que já façam parte do repertório do estudante, sob pena de serem ineficazes.

 

“A ciência de nossos dias sugere que essas técnicas punitivas de controle podem ter efeitos laterais indesejáveis.”

 

O estudante receberá uma nova tarefa — dará um novo passo para conclusão do curso — sempre que já tiver entregue o relatório sobre o experimento anterior, respondido por escrito cinco ou seis perguntas sobre a última leitura, ou ambas as coisas. Isso visa assegurar a participação ativa do aluno, verificando a aprendizagem a cada passo, e eliminando o hábito de só estudar às vésperas de exame. É o que corresponde ao princípio básico da aprendizagem no caso dos comportamentos operantes (voluntários): as respostas ficam estabelecidas através de suas consequências. Respostas que produzem consequências desejáveis aumentam de probabilidade, respostas cujas consequências são aversivas, tornam-se menos frequentes. Ambos os casos provavelmente ocorrem em muitas situações tradicionais em sala de aula, mas historicamente a ênfase tem sido (para o aluno) na eliminação de circunstâncias aversivas (reprovação). A ciência de nossos dias sugere que essas técnicas punitivas de controle podem ter efeitos laterais indesejáveis. Além disso, para que cada tipo de consequência tenha efeito é preciso que sejam imediatas, sem, como na escola, esperar até o fim do ano.

Os experimentos foram cuidadosamente planejados para permitir que o estudante observe a operação de certos princípios básicos do comportamento; aprenda algumas técnicas elementares no uso de aparelhos e tratamento de dados; e progrida da mínima até a máxima responsabilidade na composição de relatórios. As demonstrações substituem os experimentos que não puderem ser realizados individualmente. Sob este aspecto, as instruções nunca perdem de vista os atos concretos que, quando executados corretamente pelo estudante, caracterizam o manejo proficiente do instrumento, do dado ou da técnica de comunicação científica. Atentam para aqueles comportamentos, em suma, que definem a “prática”. (Figura 2)


Figura 2. Carolina Bori e Fred Keller em 1961
(Fonte: Hübner e Starling (2019). Reprodução)

 

Em resumo, o curso foi organizado de modo a aumentar a responsabilidade do aluno no processo de aprendizagem, fazendo com que — em vez de assistir passivamente tantas aulas por semana — de sua própria atividade dependa o ritmo de seu progresso. As dissoluções dos exames em verificações de leituras e relatórios de experimentos visa diminuir a ansiedade improdutiva que o atual sistema rígido de aferição de escolaridade quase sempre gera. Ao lado disso, o aproveitamento deverá ser integral, isto é, não se concederá promoção na base de apenas uma porcentagem acima de 50% do domínio do conteúdo. E esse é o aspecto mais arrojado do projeto: tentar assumir a responsabilidade de ensinar todo o programa a todos os estudantes. Não se trata só de o professor dar todo o programa a todos os estudantes, mas sim de que o estudante o aprenda por completo.

Esses propósitos, essa organização do ensino e esse tipo de curso individualizado estão longe de serem inatacáveis e indiscutíveis. Objeções as mais diversas são facilmente invocadas: a falta de um calendário regular é inaceitável; a abolição de exames finais inadmissível; os princípios do laboratório inaplicáveis; inadaptável ao nosso sistema escolar; incompatível com as nossas tradições; inacessível quanto ao custo; inane nos objetivos; inexequível, incompleto, ingênuo, inócuo, iníquo, indesejável, ilegal e até inconstitucional. Mas são objeções oriundas principalmente da inércia e nos deixam indenes se bem que não inermes. Discuti-las ao nível dos preconceitos é quase que só um exercício de aliteração.

 

“Não se trata só de o professor dar todo o programa a todos os estudantes, mas sim de que o estudante o aprenda por completo.”

 

É óbvio que essa experiência só terá interesse para quem está insatisfeito com os resultados que a rotina escolar bem produzindo; que só poderá ser realizada onde houver uma administração disposta a cooperar moral e materialmente, auxiliando na remoção de óbices que entulham às vezes os canais burocráticos; e, é claro, onde se souber exatamente o que se deseja que o estudante aprenda.

Não há até agora nenhuma razão para se supor que a experiência encareça indevidamente os cursos ou onere um número excessivo de professores. Equipamento e pessoal podem ser os mesmos que um curso convencional de laboratório exigiria.

Muitas outras questões não têm repostas ainda. Muitas outras surgirão no decorrer do trabalho. Contudo, se quando este primeiro ano estiver concluído, os resultados continuarem a justificar o interesse dos colegas, haverá certamente mais gente que ajude a respondê-las.


Texto publicado originalmente em:
Um Curso Moderno de Psicologia. Cienc e Cult. Vol 16 n 4. 1964.
Leia o texto original em:
http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v59n2/a14v59n2.pdf
* Esse texto foi atualizado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Capa. Proposta de novo curso de psicologia renovava conceitos teóricos e habilidades práticas
(Fonte: Acervo UnB. Reprodução)
Fred S. Keller foi um psicólogo estadunidense pioneiro na área de Psicologia Experimental. Foi professor dos Institutos de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB).
Carolina Martuscelli Bori foi professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (SP) e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), além de organizadora e Chefe do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Também foi presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Rodolfo Azzi foi professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (SP) e no Instituto de Psicologia da UnB (DF). Desenvolveu atividades profissionais como assessoria técnica para a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), entre 1962 e 1963.

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