Introdução
É de enorme responsabilidade aceitar escrever sobre Carolina Martuscelli Bori. Temo e corro o risco de não corresponder à sua grandeza. A virtude não lhe faltava, mas em mim, escasseia o talento. Ao mesmo tempo, não é possível declinar do chamado: é a própria responsabilidade que impõe o sim. O risco é, pois, inevitável.
Apresentei-me à Carolina Bori em outubro de 1971, na Primeira Reunião Anual da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto, à qual compareci para apresentar um trabalho que realizara como recém-formada em psicologia, na Universidade de Brasília (UnB). Interessava-me cursar a pós-graduação na Universidade de São Paulo (USP), onde ela era professora. Quem intermediou o encontro foi Ricardo Gorayeb que, então, presidia a Sociedade e, com sua atenção cativante, deu-me licença para solicitar-lhe a intermediação. Ela me recebeu com gentileza, ouviu-me sobre minha intenção, orientou-me sobre o momento e o modo de me inscrever para a seleção ao Mestrado e, ao despedir-se, disse: “Fico bastante feliz de saber que, na Universidade de Brasília, os professores da Psicologia ainda estão muito empenhados na formação de pesquisadores”. Essa frase chamou minha atenção. Levei-a comigo para sempre. Uma frase simples com uma multidão de significados e sentidos, alguns dos quais pude captar um tempo depois e outros, somente após anos de convivência com Carolina. Nessa frase, embora eu não soubesse, ela dizia em que apostava, por que e como o fazia. Sim, era isso. Carolina era enigmática.
Os Tempos
Alberto Guerreiro Ramos[1] apresenta o arcabouço conceitual de uma nova ciência das organizações dirigida “a problemas de ordenação dos negócios sociais e pessoais numa microperspectiva, tanto quanto numa perspectiva macro” (p. XI). Ele descreve três modos de organização da sociedade: a economia, a isonomia e a fenonomia e associa cada um, respectivamente, a uma de três concepções de tempo: serial, convivial e de salto. Para ele, a sociedade ideal e justa seria a policrônica, que propicia a vivência das três experiências temporais.
A economia é um “contexto organizacional altamente ordenado, estabelecido para a produção de bens e/ou para a prestação de serviços”[1] (p. 147-148). Os participantes da organização econômica são detentores de emprego, suas atividades têm caráter impessoal e, por isso, são atores despersonalizados; apenas se comportam, mas não atuam, isto é, orientam-se por regras administrativas ou de causalidade eficiente, de modo impessoal. Trata-se de um universo mecanomórfico em que não há lugar para a criação, é regido pelo tempo serial, linear, sequencial ou cosmológico, conforme Buber,[2] que agrupa passado, presente e futuro, sendo o passado causa do presente e o presente causa do futuro.
“Carolina era extremamente provocativa na proposição de temas e atividades da disciplina. Ela nos incitava à ousadia, pois não há campo que mais requeira de nós um compromisso com a transformação do que o da educação.”
Nas sociedades policrônicas, além da economia, há outras formas de organização, com seus modos temporais próprios. No modo isonômico, prevalece o tempo convivial, ou tempo antropológico, conforme Buber,[2] “o tempo da relação pessoal face-a-face, em que o presente é a medida do passado e este somente adquire sentido porque atualizado para o presente por meio da memória”[3] (p.10). Na organização isonômica, “espera-se dos indivíduos que se empenhem em relacionamentos interpessoais, desde que estes contribuam para a boa vida do conjunto”[1] (p. 150). Nela, as pessoas possuem ocupações e não empregos, uma vez que suas atividades se orientam
por critérios relacionados à realização dos objetivos intrínsecos à própria atividade, e não, como na economia, por critérios ligados à eficiência instrumental. O termo isonomia é referido à condição de igualdade que seus membros possuem, não por constituírem uma massa homogênea, mas pela aceitação plena da singularidade de cada pessoa[1] (p.10).
Finalmente, temos, nas sociedades policrônicas, o tempo do desenvolvimento que corresponde à vivência do tempo de salto, à experiência da fenonomia, que corresponderia ao kairos, “um tempo não quantificável que é constitutivo das percepções humanas do processo que conduz a eventos críticos”[1] (p. 169). Trata-se de uma experiência em que se rompem os limites sociais e a pessoa torna-se dona de si mesma; a fenonomia é o espaço do exercício de criação individual no qual a ação pessoal é automotivada, autônoma e responsável. Há “o máximo de opção pessoal e o mínimo da subordinação a prescrições operacionais formais”[1] (p. 152), ligando a experiência também ao tempo antropológico. O trabalho artesão é um exemplo de fenonomia, sendo a ação criativa o seu fator fundante:
A fenonomia é o espaço da aventura artística e criativa, em que a experiência do tempo de salto é vivenciada em momentos críticos de ruptura. A concepção de desenvolvimento inerente à organização fenonômica difere da concepção de desenvolvimento ancorada no tempo serial. O desenvolvimento, se concebido de acordo com o tempo de salto, cuja medida é a ruptura, pode ser entendido como o aparecimento de novidades. A fenonomia afirma, então, a imprevisibilidade do desenvolvimento, pois, conforme indica o termo ruptura, as regras de causalidade eficiente não podem ser aplicadas como suas ferramentas preditivas.[3] (p. 14).
Trago à consideração do leitor essas ideias de tempo, ainda que sumárias, para referir-me e tentar apresentar um quadro do modo como Carolina Bori conduzia suas ações em relação ao grupo de estudantes que trabalhavam com ela, segundo minha percepção e reflexões. É claro que esse modo de ver sua atuação desenvolvi-o no decorrer de minha vida, sempre em retrospectiva, por vezes, anos após ter convivido com ela, ao reviver, saudosamente, aqueles maravilhosos tempos de sua presença.
Teço uma separação dos tempos de Carolina Bori conforme sua atuação em três agrupamentos de atividades com seus estudantes. É claro que a separação e a distinção devem ser vistas com reserva, pois num mesmo conjunto de ações, os tempos, por vezes, se alternam e se misturam. Trata-se, portanto, apenas de uma caracterização pela predominância de uma determinada forma de organização das atividades e não por sua exclusividade.
Tempo cosmológico ou serial das aulas
Carolina Bori cumpria com assiduidade e pontualidade os seus compromissos como responsável pela condução de atividades em sala de aula, a despeito das incontáveis obrigações e compromissos que assumia em inúmeros outros contextos. Não há em minha memória registro de ausência ou atraso às aulas que ministrava. Era assim tanto no âmbito do curso de graduação quanto no de pós-graduação em Psicologia da USP. Por mais de uma vez, fui sua monitora na disciplina Psicologia Experimental, na graduação. Nunca testemunhei sequer uma ausência sua nas atividades da disciplina. O mesmo ocorria no âmbito da pós-graduação.
Pode parecer estranho ao leitor a louvação a uma atitude que é parte do dever de todo professor. Cabe esclarecer que o que me chamava a atenção era a enorme capacidade de organização que Carolina exercia sobre o seu tempo e suas inúmeras e diversificadas atividades. Ela era a dona e regente absoluta de seu próprio tempo e de suas atividades. Não contava com o auxílio de nenhum secretário ou auxiliar particular e dispunha para tanto de, no mínimo, uma boa memória.
Na pós-graduação, cursei duas disciplinas por ela ministradas. Uma dizia respeito a questões dos fundamentos e do método da pesquisa em Psicologia. A disciplina estruturava-se por meio de discussões em sala de aula ancoradas, principalmente, no importante livro de Murray Sidman, “Tactics of Scientific Research”.[4] As discussões realizadas pelos estudantes e coordenadas por Carolina eram do mais alto nível e tiveram papel decisivo na consolidação da minha formação metodológica na ciência, de modo geral, e na psicologia, em particular. A outra disciplina dizia respeito à programação de ensino. Nela, as atividades que propunha aos estudantes exigiam dela uma coordenação fora do comum, por várias razões. Primeiramente, porque havia uma empolgação quase excessiva de nós, estudantes, assistindo a aulas de uma das criadoras do chamado Ensino Programado Individualizado. A nossa empolgação era visível, quase não conseguíamos nos conter. Em segundo lugar, a educação é um campo de todo mundo, todos se sentem especialistas na área e têm algum ponto de vista a defender. Isso não é um mal e tampouco incorreto. Afinal, não há campo que mais pertença ao senso comum como o da educação e não poderia ser de outro modo, visto ser esta uma prática que diz respeito e é exercida, conscientemente ou não, por todos nós, em vários momentos de nossas vidas. Finalmente, cabe dizer: Carolina era extremamente provocativa na proposição de temas e atividades da disciplina. Ela nos incitava à ousadia, pois não há campo que mais requeira de nós um compromisso com a transformação do que o da educação. Aprendi isso com ela. (Figura 1)
Figura 1. Carolina Bori valorizava os interesse e as atuações de seus alunos
(Foto: Acervo SBPC. Reprodução)
Conforme já indicado, o universo regido pelo tempo serial ou cosmológico é mecanomórfico. Mas isso não quer dizer que, mesmo nos sistemas sociais que visam ao máximo a atualização pessoal, como se espera de instituições educacionais e formativas, algumas prescrições não sejam necessárias para manter o sistema de apoio à coletividade. Assim, o comparecimento às aulas, os prazos, o sistema de avaliação e a realização das tarefas e trabalhos propostos por Carolina faziam parte deste metabolismo básico que permite “estimular o senso pessoal de ordem e de compromisso com os objetivos fixados, sem transformar os indivíduos em agentes passivos”[1] (p. 146).
Tempo antropológico ou da convivência
Trabalhar com Carolina era como viver numa pequena comunidade. Reconhecíamos nela uma autoridade – a representação do passado, do que vale a pena ser repetido – no belíssimo sentido que Simone Weill[5] atribui a essa palavra, o de guardiã dos tesouros do passado, que nos possibilita o enraizamento no mundo pela “participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro” (p. 43).
“Carolina se empenhava para que nós, seus estudantes, fortalecêssemos nossos vínculos pessoais, contribuindo para o crescimento de todo o grupo.”
Carolina se empenhava para que nós, seus estudantes, fortalecêssemos nossos vínculos pessoais, contribuindo para o crescimento de todo o grupo. Incentivava sempre ações coletivas e costumava agir, discretamente, convidando um ou outro estudante a atuar no grupo para socorrer algum colega que, por ventura, em algum momento, estivesse precisando da ajuda coletiva. Em várias ocasiões, com delicadeza e discrição, induziu-me a fazer isso e sei de outros colegas que também foram convidados a agir em circunstâncias semelhantes. Ela não apenas incentivava e apoiava as nossas iniciativas que contribuíam para o aprimoramento das ações e relações das pessoas do grupo como, mais do que isso, convidava-nos sempre a visitar o mundo, solicitando nosso auxílio em diversas atividades que exercia, por exemplo, nas tarefas de organização dos congressos anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), na organização dos resumos dos trabalhos que iriam para os Anais e outras atividades da Sociedade. Encorajava-nos, vigorosamente, a assistir às defesas de tese ou de dissertações de nossos colegas; a nos inscrever e apresentar trabalhos na reunião anual da SBPC; promovia cursos, palestras e outras atividades com convidados que provinham de universidades estrangeiras e nos encarregava de algumas responsabilidades, incentivando sempre o nosso maior envolvimento; convidava-nos a fazer palestras sobre temáticas de nossos projetos de pesquisa em disciplinas que ministrava no curso de graduação em Psicologia, incentivava nossa participação como monitores em atividades dessas mesmas disciplinas, enfim, propiciava-nos toda a sorte de atividades que são próprias da vida acadêmica universitária. Para tudo isso, estava sempre disponível para nos orientar, caso assim o desejássemos. Colaborava intensivamente para a realização de projetos propostos por seus estudantes, como foi o caso da edição da revista Psicologia,[6] publicada por treze anos consecutivos. Cumpria, desse modo, magnificamente, com sua missão de apresentar-nos o mundo acadêmico profissional, proporcionando nossa imersão nele, fazendo-nos possuir, verdadeiramente, o passado, por vivermos, efetivamente, o presente, isto é, não por meramente conhecermos os acontecimentos já transcorridos, mas por nos ser possível atualizá-los no presente, conferindo-lhes, pela memória, um sentido atual, transformando sua ausência em presença, pois que, somente pela memória é possível atualizar o passado; a memória é o órgão do tempo antropológico.[2, 3] (Figura 2)
Figura 2. Revista Psicologia surgiu de um projeto de estudantes e foi amplamente apoiada por Carolina Bori
(Reprodução)
Podemos compreender o tempo cosmológico e empregar seu conceito como se, relativamente, o tempo existisse já em sua totalidade, mas o futuro não nos teria sido dado ainda. Pelo contrário, o tempo antropológico, ou seja, o tempo que conta na realidade peculiar do homem concreto, que quer conscientemente, não pode ser compreendido assim, já que o futuro não pode ser dado de antemão, porque, segundo me dizem minha consciência e minha vontade, depende em certa medida de minha decisão. O tempo antropológico é real somente naquela parte que se chama passado. […] o órgão para o tempo antropológico a que me refiro é, essencialmente, a memória, uma memória certamente aberta ao presente: enquanto experimentamos algo como tempo, enquanto somos conscientes da dimensão temporal como tal, entra em jogo a memória; em outras palavras: o presente em si não conhece nenhuma consciência temporal específica[7] (p. 46).
Tempo de salto – kairós
O tempo do desenvolvimento corresponde à vivência do tempo de salto, kairos, à fenonomia, momento em que se exerce a criação individual e em que a ação é automotivada, autônoma e responsável, e o indivíduo ultrapassa limites sociais imediatos da vida cotidiana, conforme já indicado; é o espaço da criação.
[…] toda socialização é uma alienação do mundo interior da psique. A socialização tem aspectos contraditórios: sem ela o indivíduo não sobrevive como um membro da espécie, mas quando inteiramente dominado por ela, o ser humano[…]perde o caráter de pessoa[1] (p. 170).
O tempo de salto e a fenonomia eram onipresentes nas atividades de orientação dos projetos de mestrado e doutorado conduzidas por Carolina, ancoravam-se no tempo antropológico e prevaleciam em relação ao tempo serial. Por saber que esse era o campo da criação pessoal, por excelência, nele, regia suas ações pelo princípio da liberdade e autonomia dos estudantes na condução de suas próprias atividades, e exercia maximamente sua vocação como mestra artesã, ao organizar, policronicamente, o ambiente social no qual aconteciam suas orientações.
A atividade artesã testemunha uma pedagogia muito antiga que transmitia uma visão de mundo e um determinado modo de fazer as coisas.[8] Em sua essência, a educação se aproxima bastante da forma típica do trabalho artesanal e talvez contenha o germe da educação do futuro, como apontava Marx,[9] e não é à toa que autores de distintos matizes (Marx, entre eles) lamentaram a perda de aspectos essenciais da formação artesã, “vista como experiência ideal para se instruir e se educar, para tornar-se hábil com as mãos e rápido com a cabeça, para desenvolver juntas a precisão e a originalidade do projeto e da execução, para fornecer bons produtos, fortes e úteis”[8] (p. 14).
“Regia suas ações pelo princípio da liberdade e autonomia dos estudantes na condução de suas próprias atividades.”
A relação entre educação e atividade artesã é histórica. A habilidade artesanal diz respeito a um impulso humano básico e permanente, o anseio por um trabalho bem feito: o artesão é aquele que faz as coisas bem feitas. “Todo bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e ideias; esse diálogo evolui para estabelecer hábitos prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas”[10] (p. 20).
Como orientadora, Carolina agia sempre com extrema discrição, iluminando com uma pequena lanterna o caminho escolhido por seu orientando, sem lhe ofuscar a visão. Sabia o que dizer, quando dizer, o porquê dizer e, mais do que isso, sabia ouvir. De modo muito inteligente, não investia em brilhos, mas apostava em promessas. O brilho, por sua própria natureza, já nasce como domínio público, dispensando investimentos para ser notado. A promessa é intimista, uma ação sub-reptícia, um pequeno ensaio que requer investimento. Mas é preciso dizer: Carolina “trapaceava” para “ganhar a aposta”, criando as condições de possibilidade para a aposta dar certo. Com sua pequena lanterna, sabia como coordenar o foco de luz ao caminhar do estudante. Verdadeira guardiã dos tesouros do passado, sabia bem dirigir o foco de luz.
Agradecimento
A autora agradece aos professores Ingrid Lilian Fuhr, Zoia Prestes e Roberto Ribeiro da Silva pela leitura crítica do texto e pelas sugestões feitas.