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“Falta um canal permanente de diálogo entre os grupos de pesquisa e os formuladores de políticas públicas”

Confira entrevista com Carla Montuori, coordenadora do Grupo de Pesquisa “Meios e Mídias no contexto da pós-verdade” e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP. 

 

Num mundo saturado por informações, onde narrativas falsas muitas vezes circulam com mais velocidade — e impacto — do que os fatos, entender a complexa relação entre mídia, política e verdade se tornou mais urgente do que nunca. É nesse cenário desafiador que se destaca o trabalho da pesquisadora Carla Montuori, referência nos estudos sobre comunicação política e os efeitos da desinformação em sociedades democráticas. Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura das Mídias da Universidade Paulista (UNIP), Carla Montuori é coordenadora do Grupo de Pesquisa “Meios e Mídias no contexto da pós-verdade” e integrante do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP. “Observamos um cenário marcado pela crise das grandes narrativas e pela ascensão de discursos emocionais em detrimento da objetividade factual e científica”, pontua. Com uma formação sólida que integra Ciências Sociais, Comunicação e Processamento de Dados, e dois pós-doutorados — um deles na Universidade de Valladolid, na Espanha — ela alia teoria crítica, pensamento interdisciplinar e um olhar atento sobre os mecanismos que moldam a opinião pública: “em contextos marcados pela pós-verdade e pela manipulação da informação, a arte pode atuar como ferramenta de resistência e conscientização, ampliando o alcance das reflexões acadêmicas e contribuindo para a construção de uma cultura mais crítica e menos vulnerável à desinformação”, defende. Nesta entrevista, Carla Montuori analisa os riscos da desinformação sistêmica, reflete sobre o papel das mídias na era digital e aponta caminhos possíveis para a reconstrução do debate público em tempos de polarização e descrédito das instituições. Confira!

 

Ciência & Cultura — Seu trabalho está focado no estudo da pós-verdade e sua relação com os meios de comunicação. Como você enxerga o impacto da pós-verdade na sociedade contemporânea e qual é o papel da ciência na desconstrução das narrativas distorcidas que surgem nesse contexto?

Carla Montuori — É importante apontar a complexidade na definição do conceito de verdade, uma vez que se trata de uma terminologia com amplitude filosófica e difícil delimitação. Ao abordar os conceitos de verdade e pós-verdade, adoto como perspectiva o fenômeno da verdade factual e racional, que, como bem definiu Hannah Arendt, está vinculada à realidade dos acontecimentos concretos. Nesse sentido, recorro ao conceito de pós-verdade formulado por Anthony Gooch (2017), que a caracteriza como a revitalização da verdade por meio da banalização da objetividade dos dados e da supremacia do discurso emotivo. Dito isso, observamos um cenário marcado pela crise das grandes narrativas e pela ascensão de discursos emocionais em detrimento da objetividade factual e científica. A pós-verdade se manifesta com força nas redes sociais, onde a viralização de conteúdos falsos, muitas vezes emocionalmente apelativos, fragiliza a credibilidade de instituições, como a ciência, a mídia e a democracia. Nesse contexto, o papel da ciência torna-se crucial: ela deve atuar não somente como produtora de conhecimento, mas também como agente ativo na comunicação e na defesa da verdade factual. Isso implica disputar os espaços de circulação da informação, fortalecer o jornalismo científico e desenvolver estratégias para traduzir o saber especializado em linguagem acessível e confiável.

 

“A viralização de conteúdos falsos, muitas vezes emocionalmente apelativos, fragiliza a credibilidade de instituições, como a ciência, a mídia e a democracia.”

 

C&C — Como coordenadora do Grupo de Pesquisa “Meios e Mídias no Contexto da Pós-Verdade”, quais são os principais desafios que você e sua equipe enfrentam ao tentar estudar e comunicar as implicações das novas dinâmicas da informação, especialmente em um cenário onde as mídias sociais desempenham um papel tão influente?

CM — Como coordenadora do Grupo de Pesquisa “Meios e Mídias no Contexto da Pós-Verdade”, enfrento, junto à equipe, uma série de desafios que se iniciam já na base conceitual do objeto de estudo. Termos como verdade, desinformação, fake news e narrativas falsas são frequentemente utilizados de forma intercambiável, mas possuem nuances e implicações distintas que precisam ser cuidadosamente delimitadas no campo acadêmico. Além disso, há obstáculos metodológicos importantes. Um deles é o acesso às redes sociais, tendo em vista que as big techs têm imposto cada vez mais restrições ao monitoramento e à coleta de dados por parte dos pesquisadores, dificultando a análise sistemática e longitudinal dos conteúdos. Soma-se a isso o volume massivo e a velocidade com que as informações e desinformações circulam nos ambientes digitais, o que torna qualquer esforço de mapeamento e categorização não somente desafiador, mas também dinâmico e em constante atualização.

 

C&C — Como pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP, você está na interseção entre arte, mídia e política. De que maneira essas áreas se conectam no seu trabalho e como você acredita que a arte pode contribuir para a reflexão crítica sobre a pós-verdade e a manipulação da informação?

CM — Considero fundamental a interseção entre arte, mídia e política no enfrentamento à desinformação. A arte, em suas múltiplas linguagens, consegue sensibilizar, provocar e mobilizar o pensamento crítico de forma simbólica e acessível. Em contextos marcados pela pós-verdade e pela manipulação da informação, a arte pode atuar como ferramenta de resistência e conscientização, ampliando o alcance das reflexões acadêmicas e contribuindo para a construção de uma cultura mais crítica e menos vulnerável à desinformação.

 

“O papel da ciência torna-se crucial: ela deve atuar não apenas como produtora de conhecimento, mas também como agente ativo na comunicação e na defesa da verdade factual.”

 

C&C — Você tem uma carreira de destaque na pesquisa acadêmica e na coordenação de grupos de pesquisa. Quais foram os maiores desafios que você enfrentou enquanto mulher no meio acadêmico, especialmente em áreas como as ciências sociais e a comunicação, tradicionalmente dominadas por homens?

CM — Penso que, pessoalmente, enfrentei poucos desafios diretamente ligados à questão de desigualdade de gênero no ambiente acadêmico. Quando comparo com minha experiência no setor corporativo, percebo que lá as relações eram mais desiguais e hierarquizadas. Na academia, minha experiência não é marcada por desafios abertamente misóginos, talvez por eu não ser atravessada por uma dimensão interseccional, o que certamente torna a experiência de muitas outras mulheres ainda mais complexa e difícil. No entanto, um desafio constante que enfrento e que compartilho com muitos colegas da área diz respeito à falta de representação e de diálogo efetivo entre a comunidade acadêmica e os órgãos governamentais. Áreas como as Ciências Sociais e a Comunicação são, muitas vezes, invisibilizadas nas agendas prioritárias de fomento. Falta um canal permanente de diálogo entre os grupos de pesquisa e os formuladores de políticas públicas. Muitas vezes, produzimos conhecimento relevante para problemas sociais urgentes, mas esse saber não encontra caminhos para impactar diretamente as decisões políticas ou os programas governamentais.

 

C&C — Em sua opinião, como a educação pode desempenhar um papel central na formação de uma sociedade mais crítica em relação à pós-verdade e à manipulação midiática? O que deve ser feito para que as novas gerações se tornem mais conscientes e capazes de identificar essas distorções?

CM — Sim, acredito que a educação tem um papel fundamental na formação de uma sociedade mais crítica diante da desinformação. Especificamente, defendo implementar estratégias de literacia midiática desde os primeiros anos da educação básica, ainda no ensino infantil. É imprescindível que crianças e jovens desenvolvam competências para interpretar criticamente os conteúdos que consomem, compreender como funcionam os algoritmos das redes sociais e reconhecer práticas de desinformação. Tenho desenvolvido, junto aos meus orientandos, projetos de literacia midiática que utilizam recursos com alta carga didática e lúdica, como jogos, histórias em quadrinhos, cursos interativos e quizzes, ferramentas que se mostraram eficazes para engajar diferentes faixas etárias de maneira acessível e envolvente. Entretanto, é preciso reconhecer que o enfrentamento à desinformação exige um esforço articulado entre múltiplos setores: a regulamentação das mídias digitais, o fortalecimento das agências de checagem, a responsabilização das plataformas pela circulação de conteúdos nocivos e o compromisso dos meios de comunicação com a ética e a transparência.

 

“A educação tem um papel fundamental na formação de uma sociedade mais crítica diante da desinformação.”

 

C&C — Você é uma mulher líder em um campo interdisciplinar que lida com temas extremamente atuais e complexos. Que conselho você daria a outras mulheres que desejam seguir uma carreira de pesquisa acadêmica, especialmente nas áreas de comunicação, política e arte, e como podemos tornar esse espaço mais inclusivo e acolhedor para elas?

CM — Vejo a pesquisa acadêmica como um espaço repleto de desafios, mas também de grandes possibilidades de transformação. Para mulheres que desejam trilhar esse caminho, especialmente em áreas como comunicação, política e arte, meu principal conselho é investir com dedicação na leitura e na escrita acadêmica, pois são práticas fundamentais para consolidar o pensamento crítico e a produção de conhecimento relevante. Participar de eventos, debates, seminários e congressos é essencial para a formação acadêmica e para a inserção nas principais discussões que movimentam as áreas de conhecimento. Da mesma forma, integrar projetos de pesquisa, tanto nacionais quanto internacionais, amplia as possibilidades de intercâmbio intelectual, fortalece redes de colaboração e permite uma compreensão mais ampla e comparativa dos fenômenos estudados. Por fim, é importante estabelecer diálogo com projetos de impacto social e manter-se atenta às transformações nas políticas científicas e nos editais de fomento, que demandam atualização constante e estratégias articuladas.

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