Com resistência a pragas e herbicidas, nova variedade de cana transgênica marca avanço da biotecnologia no Brasil e projeta um futuro mais sustentável para o setor sucroenergético.
A cana-de-açúcar, símbolo da economia agroindustrial brasileira, está passando por uma revolução silenciosa, mas promissora, no campo da biotecnologia. Em parceria com a Embrapa Agroenergia, a empresa-filha da Unicamp PangeiaBiotech acaba de dar um salto significativo ao desenvolver uma nova variedade geneticamente modificada da planta — a cana BtRR. Com resistência à principal praga da cultura, a broca-da-cana, e ao herbicida glifosato, amplamente utilizado no mundo, a inovação alia ganhos econômicos, produtivos e ambientais.
A cana ainda é cultivada majoritariamente de forma convencional no Brasil. A nova tecnologia incorpora dois modos distintos de ação genética, numa combinação que representa um divisor de águas para a cultura mais estratégica do país. A promessa não é apenas melhorar o desempenho agrícola e reduzir o uso de defensivos, mas também preservar a biodiversidade ao redor das plantações.
“A promessa não é apenas melhorar o desempenho agrícola e reduzir o uso de defensivos, mas também preservar a biodiversidade ao redor das plantações.”
Além disso, a cana BtRR abre novas possibilidades para a produção de etanol — tanto o de primeira quanto o de segunda geração — por meio do aumento da biomassa disponível. Isso reforça o papel da biotecnologia como aliada da transição energética e da descarbonização da economia, pontos centrais na agenda ambiental brasileira e global.

(Foto: Embrapa. Reprodução)
Outro trunfo da inovação é que os genes utilizados na nova variedade são classificados como FTO (Freedom to Operate), ou seja, livres para exploração comercial. O certificado foi obtido em 2019 e garante segurança jurídica e liberdade para escalar a produção. Atualmente, a PangeiaBiotech e a Embrapa Agroenergia buscam parcerias estratégicas com o setor produtivo para colocar a nova variedade no mercado.
As raízes da genômica no Brasil
O desenvolvimento da cana BtRR não é um ponto isolado. Ele se apoia em mais de duas décadas de construção do conhecimento genômico no Brasil. Tudo começou em 1997, quando o país decidiu, de forma pioneira, sequenciar o genoma de uma bactéria fitopatogênica — a Xylella fastidiosa, responsável pela clorose variegada dos citros, praga devastadora dos laranjais. O projeto envolveu 30 laboratórios paulistas, coordenados em rede, e recebeu US$ 12 milhões em investimentos da Fapesp.
O feito colocou o Brasil no mapa da ciência mundial: fomos o primeiro país a decifrar o genoma de um patógeno vegetal. Esse marco deu origem a uma onda de novos projetos, como o sequenciamento parcial da cana-de-açúcar em 1998 e o da Xanthomonas citri — causadora do cancro cítrico — no ano 2000. Esses esforços consolidaram uma base sólida de conhecimento e infraestrutura para que, anos depois, inovações como a cana BtRR se tornassem realidade.

(Foto: Agência Brasil. Reprodução)
Desde então, o campo da genômica se expandiu para todas as regiões do país, mobilizando universidades, institutos de pesquisa e empresas. Em Brasília, por exemplo, a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia tem se destacado em áreas como clonagem animal e biofábricas. Em 2003, foi responsável pelo nascimento da bezerra Vitória, primeiro clone bovino brasileiro por transferência nuclear — um feito que, além do valor científico, mostrou o potencial de uso da biotecnologia para produzir medicamentos em animais geneticamente modificados.
Do laboratório ao campo
A história da cana BtRR é, portanto, a ponta de um iceberg tecnológico em constante evolução. É o retrato de como o Brasil vem conectando pesquisa de ponta à realidade do agronegócio, com foco em produtividade, sustentabilidade e soberania científica. E mostra que o investimento em ciência, feito com visão estratégica e colaboração entre instituições públicas e privadas, pode gerar frutos concretos — ou melhor, colmos mais fortes, verdes e valiosos.
“Fomos o primeiro país a decifrar o genoma de um patógeno vegetal.”
Se o século 21 começou com o sequenciamento de genomas, a nova fase é a da transformação desses dados em soluções práticas. E a cana transgênica BtRR talvez seja um dos exemplos mais simbólicos de como a biotecnologia brasileira está começando, de fato, a florescer no campo.