Margareth Dalcolmo, pesquisadora sênior da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora da PUC-RJ, é uma voz firme e respeitada no combate ao negacionismo na saúde. Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), ela tem um papel central na disseminação de informações científicas confiáveis, especialmente em tempos de crise sanitária. Criadora do ambulatório do Centro de Referência Professor Hélio Fraga, da Fiocruz, Margareth Dalcolmo dedica sua carreira a proteger o bem-estar social por meio da ciência e da educação, defendendo a saúde pública como um pilar essencial para a democracia.
Em um cenário global marcado pela desinformação, o negacionismo na saúde representa uma grave ameaça ao progresso coletivo. Campanhas contra a vacinação, por exemplo, enfraquecem a confiança nas evidências científicas e comprometem décadas de avanços na prevenção de doenças. Margareth Dalcolmo alerta que o impacto dessas atitudes vai além da saúde física: mina os laços sociais, fragmenta a confiança nas instituições e abre espaço para discursos antiéticos que promovem retrocessos, tanto na ciência quanto na governança democrática.
A ciência, segundo Margareth Dalcolmo, é uma ferramenta indispensável na proteção do bem comum. As vacinas, resultado de rigorosas pesquisas científicas, não apenas previnem doenças como também salvam milhões de vidas anualmente. Contudo, a eficácia dessas ferramentas depende de algo fundamental: a informação. Campanhas de vacinação precisam ser acompanhadas por ações educativas que combatam fake news e promovam o conhecimento acessível à população. Essa é uma das bandeiras da pesquisadora, que acredita que uma sociedade bem informada é menos vulnerável às armadilhas do negacionismo.
O compromisso de Margareth Dalcolmo vai além dos laboratórios e salas de aula. Como divulgadora científica, ela defende a comunicação clara e acessível como um instrumento poderoso para conscientizar a população sobre sua responsabilidade coletiva. Em suas palestras e entrevistas, ela reforça que proteger a ciência é, ao mesmo tempo, proteger a democracia. A disseminação de informações embasadas é essencial para que os cidadãos possam tomar decisões conscientes e seguras, seja no cuidado com sua saúde ou na escolha de seus representantes.
Ao promover o conhecimento e lutar contra o negacionismo, Margareth Dalcolmo exemplifica a importância de unir ciência, educação e ética em defesa do bem-estar social. Seu trabalho é um lembrete de que a saúde pública não é apenas uma questão individual, mas um direito coletivo e um dever de todos. Em tempos de incertezas, sua atuação serve como um farol, mostrando que a ciência e a informação têm o poder de fortalecer não apenas corpos, mas também sociedades inteiras.
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Renato Janine Ribeiro – Tenho agora o grande prazer e a honra de conversar com Margareth Dalcolmo, uma das maiores autoridades da medicina brasileira, figura de destaque na sociedade científica, especialmente na área de pneumologia. Margareth desempenhou um papel fundamental no debate público sobre saúde durante esses anos de obscurantismo. Sua presença constante na imprensa tornou-se uma voz firme contra o negacionismo e a favor de práticas necessárias para salvar vidas. É triste constatar que o Brasil apresenta uma taxa de mortalidade por Covid-19 várias vezes superior à média mundial. Enquanto o número global de mortes foi de cerca de sete milhões, em uma população de oito bilhões — o que equivale a uma taxa de aproximadamente uma morte a cada cem ou duzentas pessoas —, no Brasil, registramos algo entre três e cinco mortes por mil habitantes. Isso representa pelo menos meio milhão de mortes acima do esperado, considerando uma análise estatística simples. Margareth lutou ativamente e certamente ajudou a reduzir esse número. Além disso, é uma pessoa de vasta cultura humanística, com profundo conhecimento sobre grandes cientistas e intelectuais do mundo. Quero lhe perguntar, de forma direta: a que você atribui essa inversão tão radical no cenário global? Tínhamos avanços significativos na saúde pública, com doenças sendo erradicadas e o sucesso das vacinas. O que aconteceu para que, de repente, o discurso da mentira e do ódio ganhasse espaço, trazendo um custo tão alto em vidas humanas?
“A retórica negacionista trouxe consequências graves, resultando em milhares de mortes evitáveis.”
Margareth Dalcolmo – Na verdade, acredito que isso não foi um fenômeno restrito ao Brasil. O mundo foi pego de surpresa com uma epidemia que rapidamente se transformou em pandemia. Primeiramente, algo assim não pode mais acontecer. Nunca mais. Apesar disso, ainda observamos despreparo, desmemória e negações que me preocupam muito, pois persistem. Algumas pessoas se referem ao tempo da pandemia como se falassem da gripe espanhola, que ocorreu há mais de cem anos. O mundo precisa estar preparado para futuras epidemias e pandemias — não é uma questão de se vai acontecer, mas de quando. Já enfrentamos o risco de uma nova epidemia causada por um vírus respiratório do tipo HN, que, como muitas outras pandemias, provavelmente terá origem zoonótica, atravessando a barreira entre o mundo animal e o humano. No Brasil, fomos apanhados completamente despreparados. Não havia organização, planejamento, insumos básicos — nada. Ficamos à mercê do mercado internacional, especialmente chinês, de onde vem a maior parte dos produtos consumidos na área da saúde no Brasil. Esse cenário de caos logístico foi agravado por uma retórica governamental não apenas equivocada, mas deliberadamente prejudicial, que encontrou eco em uma população despreparada e amedrontada. Métodos eficazes de controle, como o distanciamento social, enfrentaram resistência cultural. Nossa sociedade latina, naturalmente gregária, sentiu profundamente medidas como separar avós de netos ou evitar reuniões familiares. Apesar disso, muitos respeitaram as recomendações. Na minha primeira entrevista pública sobre a pandemia, em 14 de março de 2020, destaquei que nossas principais armas seriam o SUS e o distanciamento físico. Infelizmente, o governo rapidamente deslegitimou essas medidas, minimizando sua importância. Manaus é um exemplo trágico. A cidade foi o epicentro do primeiro pico epidêmico no Brasil, em abril de 2020, mas ignorou recomendações como fechar escolas e adotar o distanciamento social. O discurso da “imunidade de rebanho” — um equívoco científico — foi amplamente propagado. Sem vacina, isso era impossível. O resultado foi devastador. Sete meses depois, Manaus ainda não tinha alcançado imunidade coletiva, mas havia despertado a variante gama, cujo genoma foi sequenciado por Felipe Naveca, pesquisador da Fiocruz. A retórica negacionista trouxe consequências graves, resultando em milhares de mortes evitáveis. Outro ponto que considero alarmante é a queda na adesão à cultura vacinal. Desde a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), há 50 anos, o Brasil se orgulhava de sua ampla cobertura vacinal. No entanto, o discurso antivacina contaminou até médicos, enfraquecendo a confiança da população. Em 2020, antes da vacina contra a Covid-19, muitas pessoas se vacinaram contra a gripe acreditando, equivocadamente, que isso poderia oferecer alguma proteção. Hoje, a adesão às vacinas contra a gripe é a mais baixa em décadas, apesar de termos imunizantes gratuitos e de alta qualidade no SUS. Isso reflete o impacto de uma retórica que explorou o medo e a falta de informação crítica da população, desestimulando práticas que poderiam salvar vidas. Considero tudo isso passível de responsabilização. Não podemos aceitar que discursos nocivos comprometam a saúde pública e ampliem o sofrimento coletivo. É nosso dever aprender com essa tragédia e garantir que nunca mais enfrentemos tamanha desorganização e desinformação. (Figura 1)
Figura 1. Negacionismo e desinformação levaram a situação catastrófica durante pandemia de Covid-19 em Manaus
(Legenda: Alex Pazuello/ Prefeitura de Manaus. Reprodução)
RJR – Como humanista, como você interpreta o fato de que a profissão médica, que faz o juramento de Hipócrates e cuja essência é salvar vidas, aliviar dores e combater doenças, acabou gerando, em alguns casos, práticas negacionistas que contrariam a própria história da medicina?
MD – O juramento de Hipócrates ensina que, se não é possível salvar, ao menos não se deve causar mal. Esse princípio ainda é central no que fazemos hoje. Ele permeia discussões contemporâneas, como a questão da morte digna. Quando não há possibilidade terapêutica, o objetivo deve ser proporcionar um fim de vida digno. É inacreditável como o negacionismo se estabeleceu em alguns nichos da profissão médica. Isso tem muito dolo envolvido. Um médico minimamente informado não poderia se deixar levar por esse tipo de discurso. É muito triste ver profissionais que, inclusive, lucraram com práticas negacionistas, promovendo terapias sem base científica. Se houvesse uma fiscalização rigorosa, isso não seria permitido. Exemplos como ozonioterapia, práticas ortomoleculares, fórmulas sem fundamento e discursos antivacinas são absurdos. O Brasil, que nunca teve movimentos antivacinas significativos, hoje enfrenta a disseminação desses grupos, que são extremamente prejudiciais. Isso reflete uma prática médica que não tem nada de humanista ou bem-intencionada. Infelizmente, há colegas que aproveitam a falta de conhecimento crítico da sociedade para lucrar. Em uma sociedade mais educada, o cenário seria diferente. Hoje, frequentemente sou questionada por pacientes ou familiares: “Doutora, devo dar esta vacina ao meu filho?”. Sempre respondo com paciência e humor: “Você se preocupou com os componentes da vacina hexavalente que seu bebê recebeu aos seis meses? Por que agora está preocupado com a vacina da Covid-19?”. Discurso sobre mudança de DNA, por exemplo, é uma tolice. Para isso, o antígeno precisaria entrar no núcleo da célula, e nenhuma vacina faz isso, nem mesmo as de RNA mensageiro. O negacionismo prosperou especialmente durante a pandemia, no período mais crítico. Naquele momento, nós, que éramos as vozes técnicas, fomos frequentemente consultados. Aqui, faço um parêntese para reconhecer o papel ético da imprensa brasileira. A maioria dos veículos escolheu o caminho certo: ouviu especialistas e ajudou a desmascarar práticas prejudiciais. No início, havia dificuldade em separar o joio do trigo, mas, com o tempo, conseguimos passar informações verídicas, mesmo que fossem duras, sempre buscando trazer esperança quando possível. Lembro-me do Natal de 2020, quando um jornalista me perguntou: “É verdade que a senhora vai recomendar que não se comemore o Natal?”. E eu respondi: “Sim, vou dizer que não pode. No maior país católico do mundo, não pode ter Natal”. Não havia vacina, e estávamos perdendo 2.000 pessoas por dia. Era gravíssimo. Já em 2021, com parte significativa da população vacinada, pude dizer: “Este ano pode ter Natal – ainda pequeno, mas pode”.
RJR – Nossa imprensa teve, de fato, um papel importante. Lembro-me especialmente do momento em que o governo da época parou de divulgar o número de mortos a tempo de ser noticiado no Jornal Nacional. Os veículos de imprensa assumiram a tarefa de coletar e divulgar esses dados, cumprindo o papel de informar e de orientar a população sobre as medidas necessárias. Agora, gostaria que você explicasse para o público leigo essa inovação nas vacinas. Nós enfrentamos a Covid-19 tanto com vacinas tradicionais quanto com novas plataformas. Pode falar sobre as vacinas de RNA mensageiro e como elas se diferem das vacinas tradicionais?
MD – Classificamos as vacinas por plataformas tecnológicas. Existem vários tipos: vacinas genéticas, polissacarídicas, conjugadas, adjuvantes (que aumentam a imunogenicidade) e, entre elas, as vacinas de RNA mensageiro. Embora a plataforma de RNA mensageiro pareça nova, ela já existia e havia sido testada em outras doenças. Embora não tenha funcionado para Ebola ou Chikungunya, foi extremamente eficaz contra a Covid-19, o que justificou o Prêmio Nobel dado a Katalin Karikó e Drew Weissman. O trabalho obstinado de Karikó, que acreditou na sua viabilidade por 30 anos, provou estar correto. A partir de agora, essa tecnologia não será usada apenas para vacinas, mas também para medicamentos, especialmente na oncologia. No Brasil, vacinas de RNA mensageiro foram amplamente testadas, como a da Pfizer. Aplicamos cerca de 600 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 e identificamos apenas 59 ou 60 eventos adversos graves comprovadamente ligados à imunização – uma taxa baixíssima. É importante destacar que, com a autorização da Organização Mundial da Saúde, a Fiocruz já começou a investir nessa tecnologia. Em poucos anos, esperamos produzir vacinas de RNA mensageiro no Brasil, não apenas para Covid-19, mas para diversas doenças.
“Não podemos aceitar que discursos nocivos comprometam a saúde pública e ampliem o sofrimento coletivo.”
RJR – Isso significa que, no caso de uma nova pandemia, poderíamos conseguir vacinas ainda mais rapidamente do que nesta ocasião, talvez. Apesar de, desta vez, o processo ter sido ágil: entre as primeiras pesquisas e a aplicação da primeira vacina no Reino Unido, não chegou a se passar um ano.
MD – Foi aproximadamente um ano. Desde os primeiros casos, registrados em dezembro de 2019, na China, com a cepa ancestral, que hoje nem existe mais – restam apenas variantes, como as da Ômicron, que são cobertas pela vacina que atualmente aplicamos no Brasil: a chamada vacina monovalente. As vacinas antigas já cumpriram seu papel. Muitas pessoas me perguntam: “Tomei só duas doses, preciso tomar de novo?” Agora, não importa se foram duas, três ou quatro doses. É necessário tomar a vacina monovalente. No Brasil, ela é distribuída pelo SUS e, comercialmente, é da Moderna, adquirida na última licitação. Existem outras marcas, mas essa vacina é altamente eficaz. Essas vacinas são muito imunogênicas, ou seja, têm grande capacidade de proteção, mas, por isso, também são bastante reatogênicas. Algumas pessoas podem sentir dor no local da aplicação ou efeitos colaterais leves, como febre ou cansaço. Outros não sentem nada, mas isso varia de pessoa para pessoa. O importante é que não há eventos adversos graves associados à vacina monovalente, algo que monitoramos de perto. Infelizmente, a adesão a essa nova vacina está muito abaixo do ideal. Isso se deve, em grande parte, à desinformação. É crucial que as pessoas saibam que a vacina é segura e eficaz. Nos Estados Unidos, a mesma vacina está sendo utilizada. Não é verdade que ela cause qualquer alteração no DNA; para isso, ela precisaria penetrar no núcleo celular, o que não ocorre. (Figura 2)
Figura 2. Margareth Dalcolmo foi uma das primeiras a tomar a vacina contra a Covid-19.
(Foto: Peter Ilicciev. Reprodução)
RJR – Indo para a conclusão, gostaria de ouvir sua reflexão sobre como o negacionismo ameaça a democracia e os laços sociais. Sempre que o negacionismo avança, os vínculos sociais sofrem. Qual é sua visão sobre isso, especialmente em um mundo que, nos últimos dez anos, desde o Brexit e a eleição de Trump, parece ter tomado um rumo de retrocesso?
MD – Eu costumo dizer que já vivíamos uma pandemia – não só de negacionismo, que, aliás, é histórico. Ao longo da história, o negacionismo esteve presente em várias pandemias. Mas o que vimos recentemente contaminou nosso tecido social de maneira grave, assim como outras questões também contaminam. Promessas ilusórias ou informações falsas, como prometer o paraíso, têm grande capacidade de persuasão, o que é muito deprimente. Considero isso uma pandemia social muito séria. Além disso, o crescimento de certas seitas ou religiões contribui para confundir a população, atentando contra os princípios democráticos. Um exemplo é o discurso de que pais têm o direito de não vacinar seus filhos. Isso não faz sentido, pois crianças são incapazes de escolher e, no futuro, podem questionar essa decisão. Recentemente, soubemos de uma criança que morreu de difteria em uma seita na Amazônia. Como alguém deixa de vacinar contra difteria? Esse pai e essa mãe precisam ser responsabilizados. Não havia difteria no Brasil há anos, graças a vacinas extremamente eficazes. Esse mesmo discurso, infelizmente, é reproduzido por algumas representações, incluindo o Conselho Federal de Medicina (CFM). A ideia de “autonomia médica” também é usada de forma perigosa, atentando contra a democracia. Médicos não podem prescrever medicamentos sem evidências científicas sólidas. Não é aceitável receitar algo como a talidomida, sabendo que é teratogênica, apenas por “autonomia”. É preciso um limite ético. Infelizmente, há médicos que continuam prescrevendo cloroquina, mesmo após o inventor dessa abordagem, Didier Raoult, ter perdido sua licença na França por fraude científica. Esse tipo de atitude, que perpetua desinformação e desconfiança, é um atentado contra a ciência e a democracia.
“Existe todo um esquema montado para lucrar com desinformação – um verdadeiro ‘algoritmo do mal’.”
RJR – Por fim, fiquei surpreso com a nomeação do ministro da Ciência e do Ensino Superior da França – um país que é referência em ciência. Ele defendeu a cloroquina e se opôs à vacinação. É preocupante ver um país como a França, berço do Iluminismo, confiar essa posição a alguém que ignorou evidências científicas.
MD – Sem dúvida, é preocupante. Estamos falando da França de Pasteur, que enfrentou adversidades para validar suas descobertas científicas, incluindo as vacinas, que transformaram o mundo. A saída da ministra anterior também foi lamentável. As pessoas precisam entender que decisões como essas têm motivações financeiras. Existe todo um esquema montado para lucrar com desinformação – um verdadeiro “algoritmo do mal”. Em vez de contribuir para o bem, esses algoritmos visam prejudicar e enriquecer poucos.