Nem Heisenberg, nem Schrödinger

O enigma quântico ainda não encontrou a sua solução - o exemplo de Hans Thirring

Resumo

Neste artigo, descrevemos, brevemente, as ideias e opiniões proferidas pelo cientista austríaco Hans Thirring (1888–1976), catedrático de física teórica na Universidade de Viena entre 1921 e 1958, sobre a mecânica quântica. Em particular, mostraremos o seu desconforto com uma teoria, a qual, apesar de ser bem-sucedida do ponto de vista experimental, era praticamente incompreensível do ponto de vista conceitual. Thirring jamais aceitou tal estado da teoria, o que o levou a se recusar a ensinar tal teoria para os seus estudantes.
“Os efeitos desses sucessos tornaram-se tão poderosos a ponto de a maioria dos físicos passarem a aceitar como óbvias as ideias de órbitas quânticas e transições eletrônicas, usando-as de modo desimpedido sem se darem conta, com suficiente clareza, do profundo abismo que se estende entre tais ideais e as concepções subjacentes ao resto da física”.
(Halpern & Thirring, 1932)

 

Introdução

Passados 100 anos desde a publicação em 1925 do artigo seminal de Werner Heisenberg “Über quantentheoretische Umdeutung kinematischer und mechanischer Beziehungen” (“Sobre a reinterpretação teórico-quântica das relações cinemáticas e mecânicas”, em tradução livre), a mecânica quântica, nome usualmente empregado para designar os estudos sobre a interação da matéria com a radiação em escala atômica ou mesmo menores, é percebida pela comunidade física como a teoria mais bem-sucedida entre todas as que compõem a física. Não é incomum encontrarmos formulações grandiosas como aquela proferida por Steven Weinberg, que no Prefácio do seu livro de mecânica quântica (“Lectures on quantum mechanics”, 2013), afirma que esta teoria é o maior avanço ocorrido na física desde Isaac Newton. Para a grande maioria dos físicos e físicas, a mecânica quântica é uma teoria fundamental, permitindo a descrição matemática precisa e acurada de uma enorme quantidade de fenômenos atômicos e subatômicos. O sucesso que ela conseguiu alcançar ao longo destas muitas décadas é tamanho que os cientistas se acostumaram com uma situação, que não deixa de ser curiosa, tal como se pode ler na citação abaixo extraída do verbete quantum mechanics da Wikipedia (acesso em 29/04/2025):

 

“Since its inception, the many counter-intuitive aspects and results of quantum mechanics have provoked strong philosophical debates and many interpretations. The arguments centre on the probabilistic nature of quantum mechanics, the difficulties with wavefunction collapse and the related measurement problem, and quantum nonlocality. Perhaps the only consensus that exists about these issues is that there is no consensus. Richard Feynman once said, “I think I can safely say that nobody understands quantum mechanics.” De acordo com Steven Weinberg, “There is now in my opinion no entirely satisfactory interpretation of quantum mechanics.

 

Se o sentimento de incompreensão, ou insuficiência, estava presente dentre aqueles que viveram nos locais onde os principais resultados da teoria quântica foram desenvolvidos (Europa Central e EUA), o que dizer da recepção destas ideias em terras sul-americanas? Tal sentimento também era compartilhado em solo brasileiro, muitas vezes trazidos por aqueles oriundos das nações germânicas, como é possível perceber pelas palavras do fundador do Instituto de Física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o físico e jesuíta austríaco Francisco Xavier Roser (1904-1967): “…antigamente podíamos explicar muitas coisas e calcular poucas, hoje calculamos muitas, mas não podemos explicar quase nenhuma” (Roser, 1946, p.88-89).

Em outras palavras, que provavelmente devem provocar algum dissabor entre físicos e físicas, a familiaridade com a teoria, conquistada, em geral, de forma árdua, permite o cálculo de processos físicos que não são, pelo menos até os dias de hoje, inteiramente compreendidos. Ou melhor, para os quais os conceitos parecem ser insuficientes. Se hoje em dia a comunidade física parece acostumada, ou resignada, com essa situação, nem sempre foi assim. Muito(a)s, que acompanharam e até mesmo contribuíram para o desenvolvimento da mecânica quântica, principalmente durante as décadas de 1920 e 1930, expressaram publicamente o seu desconforto com essa situação.

 

“Para a grande maioria dos físicos e físicas, a mecânica quântica é uma teoria fundamental, permitindo a descrição matemática precisa e acurada de uma enorme quantidade de fenômenos atômicos e subatômicos.”

 

Tal estado de coisas foi considerado incômodo, mesmo inaceitável, por físicos, como Albert Einstein e Erwin Schrödinger, que procuraram compreender o significado físico de estruturas matemáticas usadas na mecânica quântica, ao mesmo tempo em que avaliavam as consequências desta nova e ousada teoria para a visão de mundo subjacente à física como um todo. Entretanto, apesar de hoje em dia tal incômodo ser comumente associado aos grandes nomes da física do século passado, outros físicos “menores” compartilhavam do mesmo sentimento e procuraram oferecer seus diagnósticos e soluções. Em uma formulação direta, sem rodeios, também eles viam a mecânica quântica como algo construído sobre areia movediça.[i] Um século depois, ainda não se possui uma resposta satisfatória à pergunta: “o que a teoria quântica realmente significa”? (Carrol, 2025, p. 31)

 

A recepção à mecânica quântica no período da sua criação: o exemplo de Hans Thirring

Durante os anos de criação da mecânica quântica, a segunda metade da década de 1920 (conforme a historiografia majoritariamente aceita),[ii] uma quantidade expressiva de físicos não entendia o que estava acontecendo, tinha dificuldades em ler os artigos publicados. Neste artigo, vamos descrever as ideias e opiniões expressas pelo catedrático de física teórica em Viena, Hans Thirring. (Figura 1)


Figura 2. Hans Thirring
(Fonte: Arquivo da Universidade de Viena. Reprodução)

 

Desde que tomou posse da cátedra, anteriormente detida por Ludwig Boltzmann (1844-1906), em 1921, até a sua aposentadoria compulsória em 1958 (sempre observando que ele ficou afastado, devido à sua oposição ao regime nazista, deste posto entre 1938 e 1945), Thirring se limitou a ensinar aos seus estudantes rudimentos da mecânica quântica, tal o seu desagrado com a estrutura conceitual desta teoria. De fato, a disciplina mecânica quântica só foi incluída na grade curricular da Universidade de Viena em 1959 (Del Santo; Schwarzhans, 2022; Karlik; Schmidt, 1982; Thirring, 2010). Mesmo o retorno de Schrödinger a Viena em 1956 foi insuficiente para se consolidar o ensino de mecânica quântica na universidade. O físico vienense não apenas não ensinava o assunto, como se recusava a chamar a área de “mecânica quântica”, referindo-se apenas à mecânica ondulatória, em face ao seu descontentamento com os rumos da teoria (Del Santo; Schwarzhans, 2022). Esse desagrado, que era compartilhado por alguns de seus pares vienenses, expressava-se principalmente pelo ônus, que teve de ser pago pela formulação matricial proposta por Heisenberg, Max Born e Pascual Jordan, altamente complexa pela adoção de um abstruso e complexo formalismo matemático:

 

A teoria de Heisenberg representa um esquema de cálculo nu para determinar os níveis de energia do átomo, bem como as frequências e intensidades de suas linhas espectrais. A nudez e a falta de intuitibilidade desse esquema são conscientes e intencionais.

(Thirring, 1926, p. 410, tradução livre)

 

Apesar de reconhecer que a escolha de Heisenberg por um “esquema de cálculo nu” foi consciente e intencional, Thirring demonstra estar insatisfeito com essa decisão. Por mais que reconhecesse os sucessos obtidos por esse novo ramo da física, Thirring pensava que os seus colegas não deveriam se acostumar com essa situação. Para o físico, mesmo que Heisenberg tenha organizado, e bem, a “colcha de retalhos” que era a mecânica quântica até 1925 (cf. Thirring, 1962, p. 18), havia ainda muito a ser feito, ou seja, esclarecido, pois questões de fundamento haviam sido negligenciadas face aos bons resultados da descrição matemática. Ou seja, nem mesmo os surpreendentes resultados experimentais possibilitados pela teoria quântica podiam fazer com que se esquecesse de que havia algo a ser alcançado, ou construído, algo que, para o físico austríaco, era fundamental: um sistema conceitual (Begriffssystem) que atribuísse significado às ideias quânticas. Sobre esta noção, Thirring oferece-nos uma definição em outro trabalho seu, Die Wandlung des Begriffssystemes der Physik (1933) (A transformação do sistema conceitual da física, em tradução livre), a saber:

 

[…] sistema de conceitos usados na física teórica, como força, impulso, velocidade, temperatura, entropia, intensidade de campo, superfície de onda, índice de refração, indução, etc. Somente com a ajuda desses conceitos somos capazes de descrever fenômenos físicos de forma precisa; eles são o vocabulário da linguagem científica do físico e são tão indispensáveis quanto as palavras comuns da nossa linguagem cotidiana para descrever qualquer fato da vida diária.

(Thirring, 1933, p. 16, tradução livre)

 

Em outras palavras, era como se a matemática construída por Heisenberg fosse uma “língua” conhecida e dominada por pouquíssimos falantes, com um vocabulário por demais restrito e complexo, de maneira que a compreensão e comunicação desta nova “língua” ficaria inapelavelmente restrita a um grupo seleto de “iniciados”, aqueles que gravitavam em torno de pessoas como Niels Bohr, Paul Dirac, Wolfgang Pauli, Born e alguns poucos outros, já encarados como os líderes dessa nova teoria.

Antes de prosseguirmos com a exposição das ideias de Thirring, é necessário insistir que o seu sentimento de desconforto e insatisfação não era algo apenas “seu”. Outros físicos, alguns deles com contribuições fundamentais, dadas naquela altura, para a formulação daquilo que hoje é conhecido como mecânica quântica, também sentiam praticamente o mesmo que o catedrático vienense. Entre esses nomes, merece destaque a figura do co-descobridor do spin do elétron.

 

“Um século depois, ainda não se possui uma resposta satisfatória à pergunta: ‘o que a teoria quântica realmente significa?’.”

 

O físico holandês Samuel Goudsmit (1902-1978), que em parceria com George Uhlenbeck (1900-1988), propôs o conceito de spin em 1925, narra [iii] em palestra oferecida para a Dutch Physical Society, em 1971, o papel desempenhado pela sorte e pelo acaso no cotidiano da pesquisa em física (cf. Caruso; Oguri, 2025, p. 3). Ao falar de seus estudos sobre as linhas espectrais, Goudsmit conta que encontrou:

 

[…] uma fórmula para os dubletos nos espectros, alegando que era exatamente a mesma fórmula usada por Sommerfeld para os dubletos de raios X. E eu contei isso para Ehrenfest. Nessa altura estava tudo errado, mas o Ehrenfest nunca desanimava alguém e disse: “Que legal, vamos publicar”. E havia uma breve notinha em Naturwissenschaften e um artigo muito extenso em Archives Néerlandaises des Sciences exactes et naturelles, que foi publicado na Holanda em francês para garantir que ninguém leria. É claro que, sendo um jovem estudante, eu tinha muito orgulho disso. Agora, o que aconteceu? Dois anos e meio depois foi feito exatamente o mesmo trabalho, precisamente a mesma fórmula, por Millikan, na América, e Koster deu um seminário sobre isso em Leiden. Claro que ele não sabia que eu já tinha feito isso. […] Eu simplesmente adivinhei, enquanto Millikan, quando obteve a fórmula, tinha novo material experimental que demonstrava sua correção.

(Caruso; Oguri, 2025, p. 4)

 

Não se deve, a partir do relato de Goudsmit, concluir que ele detinha forte intuição matemática, típica da mente de grandes “gênios”; nada mais distante da realidade. Vejamos como ele prossegue o seu relato, que não deixa de ser curioso:

 

Era preciso adivinhar essas pequenas fórmulas; desenvolveu-se uma intuição para elas. É o mesmo que acontece com a veterinária e a medicina humana. […] É muito curioso …. era uma espécie de numerologia, e um milagre que chegamos às expressões corretas que mais tarde puderam ser derivadas pela Mecânica Quântica

(Caruso; Oguri, 2025, p. 4)

 

Apesar de ter desenvolvido o formalismo matemático, o qual o próprio Goudsmit denominou como numerologia, o físico neerlandês conta que não tinha ideia do que estava fazendo, nem o que esse formalismo significava. No entanto, Uhlenbeck — que de acordo com Goudsmit “[…] não sabia nada sobre a nova física, mas ainda assim fez uma coisa importante para a Física Moderna” (Caruso; Oguri, 2025, p. 5), percebeu que o formalismo matemático significava que o elétron possui um quarto grau de liberdade, o que significa que ele gira, ou seja, tem spin. “E foi isso: dessa maneira, o spin foi descoberto”, narra Goudsmit (Caruso; Oguri, 2025, p. 6). Em mais uma descrição que se assemelha a uma anedota, Goudsmit narra um encontro que teve com Pauli quando tentou explicar ao físico austríaco o conceito de spin, mas não conseguiu, pois, além do físico austríaco se recusar a aceitar essa nova e radical propriedade, o próprio Goudsmit narra que foi incapaz de explicar o conceito de spin adequadamente; algo tragicômico, pois dava a entender que o criador não entendia o conceito por ele mesmo proposto (cf. Caruso; Oguri, 2025, p. 6). Mesmo que vista como anedótica, essa breve narrativa autobiográfica sobre a descoberta (por acaso) do spin serve para exemplificar como o primeiro conceito quântico foi construído pela parceria entre alguém que não tinha ideia do que sua matemática significava e que se sentia fazendo numerologia (Goudsmit) com alguém que não sabia nada de mecânica quântica (Uhlenbeck).

Thirring preservou esse sentimento de insatisfação com a teoria quântica por toda a sua vida, mesmo após ter se aposentado, como pode ser observado em seu texto “Der Weg der theoretischen Physik von Newton bis Schrödinger” (“O caminho da física teórica de Newton a Schrödinger”), redigido e publicado em homenagem àquele que foi uma importante amizade ao longo de sua vida: Erwin Schrödinger (1887-1961).

Publicado um ano após o falecimento do responsável pela formulação da equação de onda para sistema quantum-mecânicos não relativísticos, Thirring repete e expande algumas de suas críticas, já apresentadas em textos de introdução [iv] à mecânica quântica, publicados entre a segunda metade da década de 1920 e o início da década seguinte. No artigo em homenagem ao amigo, Thirring distinguia a história da mecânica quântica em duas fases: i) primeira, denominada por ele como crítico-revolucionária e anárquica, iniciada com a proposta de quantum de energia por Planck em 1900, e continuada (em certa medida, aprofundada), por Bohr em 1913. Sobre essa segunda metade da primeira fase (iniciada por Bohr), ele afirma:

 

Nada do que se possa criticar metodologicamente em relação às contradições da teoria quântica da época altera o fato de que o período de 1913 a 1925 (apesar da Primeira Guerra Mundial, que ocorreu nessa época) foi um dos mais brilhantes e ricos em descobertas na história da física e, especialmente, da teoria em geral. Foi como se as escamas caíssem dos olhos dos físicos quando eles começaram a entender uma série de fenômenos a partir da estrutura dos átomos e das forças que atuam entre eles.

(Thirring, 1962, p. 14, tradução livre)

 

Mesmo com uma série de dificuldades e com a inclusão de hipóteses ad hoc, como os postulados de Bohr (1913), reconhecia-se o caráter arbitrário das concessões feitas para que fosse possível a elaboração de uma representação do átomo (o modelo Rutherford-Bohr), bem como de suas características “extra mecânicas”, para utilizar o vocabulário do físico dinamarquês. Ou seja, apesar dos problemas percebidos no modelo atômico proposto por Bohr, buscava-se ainda explicar a natureza da matéria, ou seja, produzir uma representação e associá-la, mesmo que com muitas remodelações, à física clássica e ao eletromagnetismo. Thirring chega a mencionar Uhlenbeck e Goudsmit e como eles ainda representavam o espírito dessa primeira fase. Estes compondo, junto a Pauli, o encerramento dessa primeira fase da história da mecânica quântica:

 

No início dos anos 1920, Uhlenbeck e Goudsmit propuseram a hipótese do spin do elétron para explicar certas nuances dos espectros, que mais tarde foi estendida aos núcleos e seus componentes: a rotação das partículas carregadas confere a elas tanto um momento angular mecânico (spin) quanto um momento magnético, o que levou a conclusões frutíferas para uma série de fenômenos e, em particular, para a teoria do magnetismo em geral. A coroação da primeira fase foi finalmente a lei estabelecida por Wolfgang Pauli, segundo a qual dentro de um átomo ou molécula nunca podem ocorrer dois ou mais componentes em estados que coincidam em todos os quatro números quânticos. Essa “proibição de Pauli” mostrou-se um excelente guia para a compreensão de muitos fenômenos, especialmente da condutividade térmica e elétrica dos metais e, posteriormente, dos semicondutores.

(Thirring, 1962, p. 15)

 

Entretanto, a partir de 1925 tem início a segunda fase:

 

A segunda fase no desenvolvimento da teoria quântica, compreendida no período de 1925 a 1930, trouxe de volta regularidade e consistência no lugar da anarquia e do trabalho remendado. Não apenas as contradições internas foram resolvidas, mas também certas contradições com a experiência que ainda persistiam na teoria mais antiga. Novas conexões, anteriormente ocultas, entre fenômenos atômicos foram descobertas, a existência de novas partículas foi prevista e, finalmente, por meio de um maior desenvolvimento, a eletrodinâmica quântica surgiu como um sistema de leis que fornece uma descrição consistente e completa dos processos atômicos que ocorrem fora do núcleo atômico. No que diz respeito aos processos dentro dos próprios núcleos atômicos, no entanto, ainda estamos longe de um entendimento completo, porque sabemos muito pouco sobre a natureza e as leis das forças nucleares — que nem mesmo são incluídas nas equações de Schrödinger, Heisenberg, Dirac, etc.

(Thirring, 1962, p. 18)

 

Apesar da organização possibilitada por essa segunda fase, concretizada nas novas conexões entre os diferentes fenômenos e previsão de novas partículas, há aqui alguns aspectos no mínimo curiosos: os resultados dessa segunda fase baseiam-se muito nos desenvolvimentos da primeira, de nomes como Planck, Bohr, Einstein e até mesmo Uhlenbeck e Goudsmit. Tais resultados foram obtidos a partir de manipulações do formalismo que, conscientemente, excluíram questões sobre a natureza da matéria. Passados quase 50 anos desde a proposição do átomo de Bohr, Thirring não alterou a sua avaliação da teoria quântica:

 

O preço que a física de hoje tem que pagar pelo progresso alcançado é, no entanto, considerável. Consiste, por um lado, na complexidade matemática do desenvolvimento posterior da teoria após Schrödinger. […] Os sucessores e finalizadores de sua teoria fizeram ainda mais para tornar o sistema de leis matematicamente bastante complicado e abstrato. A consequência disso é que, hoje mais do que há cinquenta anos, a compreensão da física teórica contemporânea apresenta grandes dificuldades para muitos físicos experimentais e representantes de disciplinas científicas naturais vizinhas.

(Thirring, 1962, p. 18, tradução livre)

 

Pela avaliação do antigo catedrático vienense, a física no início da década de 1960 preservava características já conhecidas nos anos 1920, ao menos no que diz respeito ao seu silêncio com relação às discussões de fundamento. Além disso, a matemática, que já era por demais complexa e abstrata na década de 1920, tornou-se ainda mais exotérica, contribuindo para agravar o problema, gerando a exclusão daquele(a)s que não são iniciado(a)s nos “mistérios” da matemática empregada na descrição dos sistemas quânticos.

 

Conclusão

Podemos, então, resgatar agora a pergunta publicada na revista Nature, parafraseada no início deste artigo: “o que a teoria quântica realmente significa” (Carrol, 2025, p. 31). Segundo o seu autor, a mecânica quântica é “a beautiful castle, and it would be nice to be reassured that it is not built on sand” (Carrol, 2025, p. 31). Se indagados, os personagens que se fazem presentes neste texto, poderiam até concordar com relação à beleza do edifício, no entanto, seriam cautelosos com respeito à conclusão de Carrol. Ao menos aqueles mais distantes do círculo de Bohr.

 

“Por fim, passados 100 anos desde a construção da mecânica quântica e 63 anos desde a citação acima, cabe-nos refletir sobre os rumos que a teoria quântica tomou nesse período.”

 

Contudo, e ainda colocando lado a lado Thirring e Carrol, cremos que o primeiro se mostraria mais reservado com relação a uma outra conclusão deste último. Apesar do físico do norte-americano exibir certa surpresa com a rapidez com que a mecânica quântica foi aceita pela comunidade física “… in retrospect, it is impressive how quickly some physicists were able to accept this shift” (Carrol, 2025, p. 32) – processo que não foi tão rápido assim, como expusemos brevemente [v] – o desvio de um domínio considerado como sólido (a física clássica) em direção a outro, que tem se apresentado como movediço e sinuoso (a mecânica quântica), com o que provavelmente concordaria Thirring, ainda assim, ele exprimiria sua concordância em tom de lamento. Já que não se tinha perdido a sensação de que aquele bonito castelo tinha sido conduzido como que às cegas, ou por tentativa e erro, como “[…] uma espécie de numerologia, e um milagre que chegamos às expressões corretas que mais tarde puderam ser derivadas pela Mecânica Quântica” (Goudsmit In Caruso; Oguri, 2025, p. 4).

Se ao longo da década de 1920 e início dos anos 1930 Thirring, apesar do incômodo com os rumos da teoria quântica, ainda demonstrava esperança de que seria possível a física retornar aos termos clássicos, ou, mais especificamente, aos moldes do que ele chama de “física de campos”; passados quase 30 anos desde a publicação de seu livro “Die Grundgedanken der neueren Quantentheorie” (1926), essa esperança parece ter se esvaído em 1962:

 

É difícil fazer previsões sobre o desenvolvimento futuro da física teórica. Mas, até onde se pode ver, o sistema conceitual criado inicialmente por Schrödinger e, posteriormente, desenvolvido por outros no contexto da mecânica ondulatória também será aplicado à teoria dos processos dentro do núcleo. É pouco provável que ocorra uma contrarrevolução que poderia levar a uma física de campo no sentido clássico, aplicável mesmo em regiões intra-atômicas.

(Thirring, 1962, p. 35, tradução livre)

 

Por fim, passados 100 anos desde a construção da mecânica quântica e 63 anos desde a citação acima, cabe-nos refletir sobre os rumos que a teoria quântica tomou nesse período. Parafraseando, novamente, Carrol, se questionarmos ‘o que a teoria quântica realmente significa?’, que respostas obteremos? Ainda faz sentido esse tipo de questionamento? Ou, como o próprio físico norte-americano afirma em seu artigo, devemos nos contentar, pois, mesmo com todas as lacunas da teoria quântica, ela “[…] continue to find application in an increasing number of relatively down-to-Earth technologies” (Carrol, 2025, p. 34)? Apesar deste posicionamento parecer encontrar certo lastro na comunidade física atual, em especial na norte-americana, figuras como Goudsmit, Einstein, Schrödinger e o próprio Thirring, mesmo com os bons resultados técnicos obtidos pela teoria quântica, demonstraram-se incomodados com ausência daquilo que, para eles, era fundamental em uma teoria física; a saber: um significado.

Breve cronologia da vida e carreira de Thirring

  • 1888 – Nasce em Viena, Áustria
  • 1906 – 1910 – Estuda matemática e física na Universidade de Viena
  • 1910 – Torna-se professor assistente na Universidade de Viena
  • 1911 – Obtém o título de doutor
  • 1915 – É promovido a professor associado
  • 1921 – Torna-se catedrático de física teórica, posto que permanece até à anexação da Áustria pela Alemanha nazista, em 1938
  • 1938 – Aposentado compulsoriamente pelo regime nazista
  • 1945 – Reintegrado como professor da Universidade de Viena
  • 1946 – Assume o cargo de reitor da Faculdade de Filosofia
  • 1947 – 1949 – Torna-se vice-reitor da Faculdade de Filosofia
  • 1957 – 1964 – Exerce a função de parlamentar, eleito pelo Partido Socialista Austríaco (SPÖ), atualmente Partido Social Democrata da Áustria
  • 1976 – Falece em Viena, aos 88 anos de idade

 

 

Capa. Representação artística do spin do elétron
(Fonte: Gerada por inteligência artificial)
Notas
[i] Cf. Kojevnikov, 2020.
[ii] Para mais informações sobre a construção e as discussões sobre mecânica quântica na década de 1920, Cf. Howard, 2002; Beller, 1999; Forman, 1971; Camilleri, 2009; Chevalley, 1995.
[iii] A tradução da preleção foi feita por Francisco Caruso (CBPF) e Vitor Oguri (UERJ) e encontra-se publicada na revista Ciência e Sociedade (CBPF). Cf. Caruso; Oguri, 2025, p. 1-8.
[iv] Alguns dos trabalhos publicados nessas épocas são: Die Grundgedanken der neueren Quantentheorie (1926), The elements of the new quantum mechanics (1932), este em parceria com o também físico austríaco Otto Halpern, e Die Wandlung des Begriffssystemes der Physik (1933). O trabalho de 1926 é um livro considerado um dos primeiros a organizar, de maneira sistemática, os desenvolvimentos da então “nova física”, a mecânica quântica.
[v] Para mais informações sobre esse processo de aceitação, ou, para sermos mais precisos, de adequação à agenda de pesquisa em física estabelecida e críticas de sua insuficiência teórica, Cf. Kojevnikov, 2020; Balsas; Videira, 2013; Freire Jr., 2015; Chibeni, 1991. Carson; Kojevnikov; Trischler, 2011.

Referências Bibliográficas
[1] Balsas, Álvaro; Videira, A. Luciano L. Truth by fiat: the Copenhagen Interpretation of Quantum Mechanics. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 6, n. 2. Rio de Janeiro: 2013, p. 248-266.
[2] Beller, Mara. Quantum dialogue: the making of a revolution. Chicago: University of Chicago Press, 1999.
[3] Bohr, Niels. On the constitution of atoms and molecules. Philosophical Magazine, v. 151, n. 26, 1913, p. 1-25.
[4] Camilleri, Kristian. Constructing the Myth of the Copenhagen Interpretation. Perspectives on Science, v. 17, 2009, p. 26 – 57.
[5] Carson, C; Kojevnikov, A.; Trischler, H. Weimar culture and quantum mechanics: selected papers by Paul Forman and contemporary perspectives on the Forman thesis. Londres: Imperial College Press, 2011.
[6] Caruso, Francisco; Oguri, Vitor. Por que ler “A descoberta do spin do elétron”, de Samuel Abraham Goudsmit?. Ciência e Sociedade, CBPF, v. 11, n. 1, 2025, p. 1-8.
[7] Chevalley, Catherine. Philosophy and the Birth of Quantum Theory. In: Gavroglu, K.; Stachel; J.; Wartofsky, M.W (org.). Physics, Philosophy, and the Scientific Community. Boston Studies in the Philosophy of Science, v. 163. Dordrecht: Springer, 1995, p. 11-37
[8] Chibeni, Silvio Seno. A incompletude da mecânica quântica. O Que nos Faz Pensar, Rio de Janeiro, v. 5, n.5, 1991, p. 89-113.
[9] Del Santo, F.; Schwarzhans, E. “Philosophysics” at the University of Vienna: The (pre-) history of foundations of quantum physics in the Viennese cultural context. Phys. Perspect, v. 24, 2022, p. 125 – 153.
[10] Forman, Paul. Weimar Culture, Causality, and Quantum Theory, 1918 – 1927: Adaptation by German Physicists and Mathematicians to a Hostile Intellectual Environment. HSPS 3, 1971, p. 1-115.
[11] Freire Jr., Olival. The Quantum Dissidents: Rebuilding the Foundations of Quantum Mechanics (1950-1990). Heidelberg: Springer, 2015.
[12] Halpern, Otto; Thirring, Hans. The elements of the new quantum mechanics. Tradução: Henry L. Brose. Londres: Methuen & CO. LTD, 1932
[13] Howard, Don. Who Invented the “Copenhagen Interpretation”? A Study in Mythology. Philosophy of Science, v. 71, n. 5. Dezembro: University of Chicago Press, 2002, p. 669 – 682.
[14] Karlik, B.; Schmid, E. Franz S. Exner und sein Kreis. Viena: Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften, 1982.
[15] Kojevnikov, A. The Copenhagen Network The Birth of Quantum Mechanics from a Postdoctoral Perspective. Cham: Springer, 2020.
[16] Roser, Francisco Xavier. Física e filosofia natural. Coleção Brasileira de Divulgação. Série V – Filosofia. Rio de Janeiro: S.D. do M.E.S, 1946.
[17] Thirring, Hans. Der Weg der theoretischen Physik von Newton bis Schrödinger. Viena: Springer, 1962.
[18] Thirring, Hans. Die Grundgedanken der neueren Quantentheorie. Viena: Zentralbibliothek für Physik in Wien, 1926.
[19] Thirring, Hans. Die Wandlung des Begriffssystemes der Physik IN Krise und Neuaufbau in den exakten Wissenschaften. Viena/Lepzig: Deuticke, 1933, pp. 15-40.
[20] Thirring, Walter. The Joy of Discovery: Great Encounters Along the Way by Walter Thirring. Nova Jersey: World Scientific Publishing Co. Pte. Ltd., 2011.
[21] Weinberg, Steven. Lectures on quantum mechanics. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
Antonio Augusto Passos Videira é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), além de professor no Programa de Ensino e História da Matemática (UFRJ), professor convidado no Instituo de Biofísica (UFRJ) e pesquisador colaborador no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).
Rafael Velloso é licenciado em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre e doutor em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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