Ano Internacional da Ciência e Tecnologias Quânticas. Podemos comemorar?

Cem anos após a formulação das equações de Heisenberg e de Schrödinger, o mundo celebra a ciência quântica enquanto disputas geopolíticas e desafios acadêmicos moldam o futuro da tecnologia.

Resumo

O ano de 2025 foi declarado pela Unesco como o Ano Internacional da Ciência e Tecnologias Quânticas, celebrando os 100 anos da proposta revolucionária de Louis de Broglie, que inspirou as formulações de Heisenberg e de Schrödinger da Mecânica Quântica. Apesar dos avanços, o sistema acadêmico brasileiro ainda desincentiva projetos de alto risco. Enquanto isso, os EUA se mobilizam estrategicamente para liderar as tecnologias quânticas, levantando preocupações geopolíticas e científicas.

O ano de 2025 foi declarado pela Unesco o Ano Internacional da Ciência e Tecnologias Quânticas. O ano foi escolhido porque há 100 anos, em 1925, foi concebida, pelos físicos Werner Heisenberg, alemão, e Erwin Schroedinger, austríaco, as equações fundamentais que levam os respectivos nomes e que estruturaram matematicamente a Mecânica Quântica. Na verdade, o artigo de Schroedinger, “An ondulatory theory of the Mechanics of Atoms and Molecules, foi publicado no volume 28 do Physical Review, em dezembro de 1926 (Figura 1). Portanto, a publicação histórica completa 100 anos apenas em 2026.


Figura 1. Artigo de Erwin Schroedinger publicado em 1926 no Physical Review. Neste artigo o autor formaliza matematicamente a Mecânica Quântica.
(Fonte: Reprodução)

 

Heisenberg e Schroedinger estavam sobre os “ombros de gigantes” quando escreveram suas equações. A inspiração foi a tese de doutorado do nobre francês Louis de Broglie, publicada em 1925, que foi quem teve a ideia revolucionária de que a matéria possui uma natureza ondulatória. Todos os fenômenos estranhos e não intuitivos dos sistemas quânticos derivam desta propriedade. (Figura 2)


Figura 2. Theodoro Ramos foi o engenheiro e matemático da USP que, em 1923, publicou o primeiro trabalho brasileiro sobre a teoria quântica
(Fonte: Studart et al. [1]).

 

Surpreendentemente, o registro do primeiro trabalho científico sobre sistemas quânticos no Brasil é de 1923, portanto anterior ao trabalho de Schroedinger. Seu autor, um jovem engenheiro e matemático da USP chamado Theodoro Ramos.[1] Vê-se que a minúscula comunidade científica brasileira da época estava antenada nos acontecimentos na física europeia que iriam revolucionar o conhecimento, a ciência e a tecnologia nos anos seguintes. (Figura 3)


Figura 3. Réplica do primeiro microscópio eletrônico de transmissão inventado por Ruska e Knoll em exposição em um museu de Munique.
(Fonte: Reprodução)

 

Quase uma década antes do trabalho de Schroedinger, Albert Einstein, em 1917, concebeu a existência do laser. O primeiro laser produzido em laboratório ocorreu somente em 1960 e, já em 1969, a impressão a laser foi inventada na Xerox. Hoje, estima-se que o mercado mundial das aplicações tecnológicas do laser seja da ordem de U$ 20 bilhões.

Ainda sobre Einstein, em 1905 ele usou as recém-publicadas ideias de Max Planck sobre o quantum para explicar o efeito fotoelétrico, trabalho que lhe rendeu o Nobel de Física de 1921. Hoje, o efeito fotoelétrico é utilizado em vários segmentos da indústria, como sensores de iluminação, portas automáticas, câmeras fotográficas digitais etc. Estima-se em U$ 4 bi o mercado mundial de dispositivos que utilizam o efeito fotoelétrico.

Em 1931, apenas sete anos após o postulado de de Broglie, os alemães Ernst Ruska e Max Knoll construíram o primeiro microscópio eletrônico de transmissão. Este equipamento é uma aplicação direta do postulado de de Broglie: elétrons acelerados são utilizados para gerar imagens de altíssima resolução, de forma análoga ao que ocorre em um microscópio comum. Pela invenção eles ganharam o Nobel de Física de 1986.

O microscópio eletrônico de transmissão, junto com várias outras inovações que utilizam fenômenos quânticos, como a litografia de feixe de elétrons e o microscópio de tunelamento, formam o que se conhece como nanotecnologia e movimentam um mercado global estimado em U$ 120 bilhões.

 

“Há em curso uma corrida mundial acirrada em torno das tecnologias quânticas de segunda geração.”

 

O avanço dos modelos quânticos teóricos da física da matéria condensada, ao lado do desenvolvimento destas (e outras) técnicas experimentais, fizeram avançar a indústria dos semicondutores, que movimenta quase U$ 1 trilhão no mercado mundial. Os telefones celulares e a Internet não existiriam se não fossem estes desenvolvimentos.

O conjunto de técnicas e equipamentos mencionados acima são exemplos do que se passou chamar tecnologias quânticas de primeira geração. O que se comemora este ano, no entanto, são as tecnologias quânticas de segunda geração. Estas tecnologias se ramificam essencialmente em três segmentos: os sensores quânticos, a comunicação quântica e a computação quântica. O que elas têm em comum, e o que as diferenciam daquelas tecnologias de primeira geração, é o controle fino da coerência de estado quântico para produzir vantagens de sensoriamento, de comunicação e de computação. É a manipulação de estados quânticos coerentes o que permite redes de comunicação à prova de invasores, sensores capazes de detectar o sinal magnético de 1 único elétron e computadores capazes de resolver em minutos ou segundos problemas que levariam milhões ou bilhões de anos para serem resolvidos em computadores usuais. (Figura 4)


Figura 4. O Willow (esquerda) da Google e o Heron, da IBM, são chips quânticos que utilizam a tecnologia de supercondutores.
(Fonte: Reprodução)

 

Há em curso uma corrida mundial acirrada em torno das tecnologias quânticas de segunda geração. Segundo o site Qureca,[2] que acompanha os investimentos globais nesta corrida, já são U$ 44,5 bilhões investidos até 2025, com destaque para a China que, sozinha, já investiu cerca de U$ 15 bi. Naquele país já existem redes de comunicação quântica que conectam várias cidades por meio de satélites. Sensores quânticos já estão sendo utilizados em sistemas de defesa em aviões e submarinos de países desenvolvidos. Empresas de computação quântica começam a anunciar que atingiram a chamada supremacia quântica, termo que se refere a solução de algum problema em um computador quântico que seria impossível, mesmo para o mais sofisticado supercomputador clássico da atualidade. Algumas estimativas preveem que em 10 anos o mercado global das tecnologias quânticas de segunda geração atinja a estonteante cifra de U$ 1 tri.

            Ou seja, a Mecânica Quântica é uma máquina de fazer dinheiro!

No Brasil, no início dos anos 2000 foi criado o primeiro Instituto do Milênio em Informação Quântica, que depois se transformou no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), uma iniciativa de grande sucesso. Nestes pouco mais de 20 anos, dezenas de novos mestres e doutores foram formados, laboratórios foram criados e centenas de artigos científicos publicados. A área se espalhou por virtualmente todas as instituições de ensino e pesquisa no Brasil e colocou a física brasileira no clube seleto das nações com uma atividade acadêmica robusta e de qualidade na área da Informação Quântica.

Este histórico de sucesso certamente nos autoriza reivindicar a participação nas comemorações do ano internacional da ciência e tecnologia quânticas. Mas há, por outro lado, aspectos estruturais muito preocupantes que podem ser resumidos na seguinte pergunta: de todos aqueles muitos bilhões de dólares mencionados acima, qual a participação no PIB brasileiro de qualquer uma daquelas tecnologias mencionadas, seja de primeira ou segunda geração? Resposta: virtualmente nenhuma.

 

“A Mecânica Quântica é uma máquina de fazer dinheiro.”

 

A física brasileira precisa urgentemente adotar estratégias para agregar valor à sua já excelente qualidade acadêmica, se quisermos dar um passo além do ciclo vicioso artigo-tese-bolsa-artigo e transformarmos todo este conhecimento que produzimos em riqueza.

Para dar um exemplo didático: o dispositivo básico em um chip quântico supercondutor (como o da IBM ou da Google) é chamado junção Josephson. A primeira demonstração em laboratório de uma junção Josephson em funcionamento data de 1963 e é assinado por P. W. Anderson e J.M. Rowel (Figura 5). Mas até hoje no Brasil nenhum grupo experimental produz de forma regular e controlada junções Josephson, e muito menos desenvolve suas inúmeras aplicações tecnológicas. Isto a despeito de termos uma comunidade significativa e muito qualificada atuando na área da supercondutividade, e de termos vários laboratórios com os equipamentos que podem ser utilizados na fabricação destes dispositivos. Por quê? Em boa parte por causa do ciclo artigo-tese-bolsa-artigo, que se tornou o paradigma motivador da nossa física.


Figura 5. Artigo publicado em 1963 com a primeira observação do comportamento quântico de uma junção Josephson.
(Fonte: Reprodução)

 

Para romper esse ciclo, precisamos incentivar projetos de grande risco e grande retorno. Em particular, tais projetos deveriam visar sobretudo jovens pesquisadores que apresentem boas ideias. Talvez o lado mais prejudicial do ciclo artigo-tese-bolsa-artigo seja o de inibir o impulso criativo e a ousadia, naturalmente presentes nos jovens talentos. O nosso sistema sinaliza para os jovens que o auge das suas carreiras ocorrerá quando eles forem bolsistas 1A do CNPq. E isso somente acontecerá se eles construírem bons indicadores dentro do ciclo artigo-tese-bolsa-artigo e, para isso, não podem correr risco. Nas avaliações de projetos, é comum encontrarmos como objetivo da pesquisa proposta a promessa de publicação de “pelo menos X artigos”.

Linhas de financiamento deveriam considerar o grau disruptivo dos projetos e os resultados intermediários que foram alcançados, bem como os indicadores de se o projeto poderá crescer e alcançar seus objetivos finais com novos financiamentos. Esta avaliação não pode ser feita apenas com base no número de artigos publicados, índice de impacto das revistas, número de citações, teses defendidas, palestras convidadas, fator H e nível da bolsa do pesquisador. Projetos de alto risco e alto retorno não costumam gerar indicadores desse tipo a curto prazo.

 

“A física brasileira precisa urgentemente adotar estratégias para agregar valor à sua já excelente qualidade acadêmica.”

 

Projetos de alto risco e alto retorno deveriam ser incentivados pelos programas de pós-graduação e valorizados na avaliação da Capes. Ninguém duvida que o processo de avaliação da nossa pós-graduação levou a um desenvolvimento notável do ensino, da pesquisa e produção acadêmica por todo o país. Mas a influência do ciclo artigo-tese-bolsa-artigo está claramente presente na avaliação, o que inibe iniciativas de projetos disruptivos nos programas de pós-graduação das instituições.

O resultado dos INCTs de 2025 desarticulou dezenas de grupos de pesquisa brasileiros atuando em conjunto na área da Informação Quântica, o que vinha acontecendo há mais de duas décadas.

Em janeiro de 2025 o Center for Strategic and International Studies (CSIS), órgão americano para estudos estratégicos, produziu um relatório [3] com várias recomendações para o governo dos Estados Unidos não perderem a corrida das tecnologias quânticas e sofrerem um novo episódio Sputnik. As recomendações se resumem a três pontos principais: garantir o fluxo de matéria prima necessária para a fabricação de dispositivos quânticos; controlar/cercear a comercialização de dispositivos de tecnologias quânticas aos países “adversários” dos EUA (o Brasil é um deles); e facilitar a migração de jovens talentos de outros países trabalhando na área, para os EUA.

Temos motivo para comemorar?

 

Capa. Refrigerador de Diluição, que produz 7 mK para resfriar o chip quântico.
(Fonte: Ana Gouveia | NCS/CBPF)
[1] Nelson Studart, Rogério C.T. da Costa e Ildeu de Castro Moreira. Notas da História da Física no Brasil: Theodoro Ramos e os primórdios da física moderna no Brasil. Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004.
[2] https://www.qureca.com/quantum-initiatives-worldwide/
[3] https://www.csis.org/analysis/csis-commission-us-quantum-leadership
Ivan S. Oliveira é Líder do Grupo de Processamento da Informação Quântica por RMN e pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).

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