Em junho de 1925, o físico alemão Werner Karl Heisenberg, com 23 anos, acometido por forte alergia, isola-se em Helgoland, uma ilha no Mar do Norte, em busca de aliviar o incômodo, graças à vegetação escassa da ilha. Lá, encontra a tranquilidade necessária para refletir sobre a física dos átomos e elétrons. E encontra a solução para um problema que o atormentava, escrevendo um artigo que mudaria radicalmente a física do século 20, celebrado neste ano de 2025, eleito pela ONU o “Ano Internacional da Ciência e da Tecnologia Quântica”.
O início da revolução quântica: as hipóteses ousadas de Planck e Einstein
Desde o início do século 20, o estranho comportamento do mundo de átomos e elétrons contradizia a física clássica e desafiava os cientistas. No final do século 19, fenômenos observados em laboratórios contradiziam as teorias existentes.
A física clássica não conseguia explicar a distribuição de energia irradiada por um corpo (idealmente um corpo negro, que absorve toda a radiação que incide sobre ele) em função da frequência da radiação e da temperatura. Um corpo aquecido emite luz com um espectro de cores que tende para o azul à medida que a temperatura aumenta. Esse fenômeno, observado em fornos metalúrgicos e testado em laboratórios, impacta a luz emitida por estrelas, que varia da cor azul para o vermelho, dependendo da temperatura das estrelas. A expressão clássica para o espectro de cores (lei de Wien) não concordava com os dados experimentais para frequências altas. Em 1900, o físico alemão Max Planck propõe uma expressão matemática que concorda com os dados experimentais para todas as frequências.[1] Para justificar fisicamente sua fórmula, Planck levanta a hipótese de que a energia é emitida pelo corpo aquecido em pacotes discretos (quanta), em vez de continuamente, e que a energia de cada quantum é diretamente proporcional à sua frequência. Esse foi o ato inaugural da física quântica.
“A compreensão do fenômeno do emaranhamento evolui do assombramento para sua utilização nas novas tecnologias quânticas que aparecem no século 21.”
Em 1905, Albert Einstein propõe uma explicação ousada para o efeito fotoelétrico: luz incidindo sobre a superfície de certos metais leva à emissão de elétrons, cuja energia independe da intensidade da luz e aumenta com a frequência.[2] A teoria clássica do eletromagnetismo, por outro lado, previa que a energia do elétron deveria aumentar com a intensidade da luz. Einstein propõe que a emissão de um elétron deva-se à absorção de um corpúsculo da luz, com energia proporcional à frequência, implicando que a energia do elétron emitido variaria linearmente com a frequência. Segundo Einstein, a luz comportava-se como se fosse constituída de partículas. Não se tratava mais de uma propriedade do corpo aquecido, mas da constituição da luz. O “como se” reflete a prudência de Einstein diante da evidência de que a luz tem um comportamento ondulatório, conforme demonstrado pelo físico inglês Thomas Young em 1801 (Figura 1). Esses “corpúsculos da luz” foram posteriormente denominados de fótons pelo químico Gilbert N. Lewis, em 1926.[3]

Figura 1: (a) Ondas produzidas em um tanque de água por um pino oscilante; (b) Ondas produzidas no mesmo tanque por dois pinos oscilantes: as raiais são um efeito de interferência, em que o máximo das ondas produzidas por um dos pinos superpõe-se ao mínimo das ondas produzidas pelo outro pino; (c) Experiência de Young: o feixe de luz passa pelo anteparo com duas fendas, produzindo em um segundo anteparo uma série de franjas claras e escuras.
(Reprodução)
O modelo atômico apresentado pelo físico dinamarquês Niels Bohr em 1913 postula que os elétrons orbitam em torno do núcleo atômico, com energias que não podem ter qualquer valor, mas são múltiplos de uma quantidade fundamental. Essas órbitas específicas são chamadas de “estados estacionários”. Postula ainda que os elétrons podem saltar de uma órbita a outra, absorvendo ou emitindo energia. A órbita de energia mais baixa é estável, contrariando a teoria clássica, que previa que um elétron em órbita circular em torno do núcleo deveria perder sua energia, pois emitiria radiação em virtude de estar acelerado.
Em 1916, Einstein envia uma carta a seu amigo Michele Angelo Besso, um engenheiro suíço-italiano que conhecera durante os anos no Instituto Federal de Tecnologia de Zurique e depois no escritório de patentes em Berna, mencionando que “uma esplêndida luz surgiu para mim sobre a absorção e emissão de radiação”. Einstein demonstra então, em artigo publicado em 1916,[4] baseando-se no modelo corpuscular da radiação eletromagnética, que há três processos possíveis na interação de um átomo com a luz: (i) o átomo pode absorver o corpúsculo (fóton), saltando do estado inicial para um de maior energia; (ii) o átomo pode emitir um fóton, saltando para um estado de menor energia (“emissão espontânea”); (iii) um fóton incidente pode estimular a emissão de outro fóton, que tem mesma frequência e direção do fóton incidente, o átomo saltando para um estado com menor energia (“emissão estimulada”). O terceiro processo, com o efeito de multiplicar o número de fótons, levaria, muitos anos depois, à invenção do laser. A partir desses processos, Einstein deduz a fórmula de Planck.
Por outro lado, a emissão espontânea coloca questões importantes para Einstein: a direção e o instante da emissão do fóton não podem ser previstos. Einstein menciona seu desconforto no artigo de 1917: “É uma fraqueza da teoria…que deixa o tempo e a direção dos processos elementares ao acaso… As propriedades dos processos elementares… fazem parecer quase inevitável formular uma teoria verdadeiramente quantizada da radiação”. Dez anos depois dessa previsão, em 1927, é publicado o artigo seminal de Paul Dirac, com a quantização do campo eletromagnético.[5]
Em 1924, Einstein publica um artigo no diário alemão Berliner Tageblatt, no qual afirma que “… agora existem duas teorias da luz, ambas indispensáveis e, como é preciso admitir hoje, apesar de vinte anos de tremendo esforço por parte dos físicos teóricos, sem qualquer conexão lógica”.
A “conexão lógica” entre a teoria corpuscular e as ondulatórias apareceria nos dois anos seguintes.
Surge a mecânica quântica
Em 9 de julho, Heisenberg escreve a Pauli que “todos os meus miseráveis esforços são dedicados a matar completamente o conceito de órbitas — que não podem ser observadas de qualquer maneira”. Em 29 de julho, o artigo de Heisenberg sobre uma nova teoria quântica, que envolve somente quantidades observáveis, é recebido pela revista Zeitschrift für Physik.[6] Esta foi a ruptura decisiva com a mecânica clássica.
Um pouco antes, em maio de 1925, Einstein visita a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e outras instituições no Rio de Janeiro. Segundo a ata da sessão da Academia, “O professor Einstein, agradecendo às homenagens que lhe são prestadas, ao invés de um discurso, diz ele, mostra o seu reconhecimento e o seu apreço à Academia fazendo uma rápida comunicação sobre os resultados que, na Alemanha, estão sendo obtidos nos estudos realizados sobre a natureza da luz, comparando a teoria ondulatória e a dos quanta”.
“Diversas startups baseadas em mecânica quântica têm aparecido no Brasil, produzindo algoritmos para indústrias e computadores quânticos para fins educacionais.”
Em dezembro do mesmo ano, o físico austríaco Erwin Schrödinger envia um artigo para a revista Annalen der Physik, propondo uma teoria ondulatória da matéria.[7] O artigo, publicado em janeiro de 1926, consolida proposta feita por Louis de Broglie em duas comunicações à Academia Francesa de Ciências [8]e em sua tese de doutorado de 1924, postulando que toda a matéria tem comportamento ondulatório. É seguido por um segundo artigo, no qual Schrödinger aplica a teoria ondulatória para o átomo de hidrogênio. Schrödinger demonstra que sua teoria e a de Heisenberg levam aos mesmos resultados. A equivalência matemática entre as duas teorias só é estabelecida, no entanto, em 1929, por John von Neumann, cujo livro seminal “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, publicado em 1932, estabelece a estrutura matemática da mecânica quântica. Os artigos de Schrödinger são recebidos com entusiasmo por Einstein. Em carta a Michele Besso, datada de 1 de maio de 1926, escreve que “Schrödinger publicou dois artigos maravilhosos sobre as regras quânticas”.
Restava, no entanto, entender o significado físico das ondas propostas por Louis de Broglie. Em junho de 1926, Max Born observa que o módulo ao quadrado da função de onda de Schrödinger deve ser interpretado como uma densidade de probabilidade.[9] O abandono da ideia de causalidade clássica, decorrente dessa interpretação, leva Einstein a escrever para Born, em dezembro de 1926, que “a mecânica quântica é muito impressionante. Mas uma voz interna me diz que ela não é ainda a última palavra (the real thing). A teoria produz muitos resultados, mas não nos traz mais perto do segredo do Velho. Estou de qualquer forma convencido de que Ele não joga dado”.
A interpretação probabilística permite finalmente conciliar a teoria ondulatória de Maxwell com a noção de que a luz é constituída de corpúsculos. Na experiência de Young, a onda associada aos corpúsculos descreve a probabilidade de eles chegarem nas diversas regiões do anteparo onde se produzem as franjas claras e escuras. As regiões de sombra correspondem a valores nulos da distribuição de probabilidades, ou seja, é nula a probabilidade de um fóton ser observado nas regiões de sombra.
Outras surpresas estavam por vir.
Obsessão e assombramento de jovens pesquisadores muda o mundo
Em 1935, um artigo de Einstein, Podolsky e Rosen,[10] seguido de três artigos de Schrödinger,[11] apontam uma consequência sutil da mecânica quântica, o fenômeno do emaranhamento, descrito por Schrödinger de forma dramática: “Eu não diria que o emaranhamento é um, mas o traço característico da mecânica quântica, aquele que leva ao abandono completo do pensamento clássico… Esta é a razão pela qual a informação sobre os sistemas individuais pode ser extremamente reduzida, ou mesmo nula, enquanto a informação sobre o sistema combinado permanece máxima. A melhor informação possível do todo não inclui a melhor informação possível sobre suas partes — e isso é que vem constantemente nos assombrar”.
A compreensão do fenômeno do emaranhamento evolui do assombramento para sua utilização nas novas tecnologias quânticas que aparecem no século 21.
Cientistas como Planck, Einstein, Heisenberg, Schrödinger, Born, Dirac e muitos outros eram motivados pela curiosidade, pela obsessão de entender o funcionamento da Natureza no mundo microscópio. Não tinham a menor ideia de possíveis aplicações de suas descobertas. Não obstante, a nova física mudou o mundo, com as invenções do laser, da tomografia por ressonância magnética nuclear, dos transistores que se multiplicam nos computadores, de magnetômetros ultrassensíveis, dos relógios atômicos ultra-precisos (com variação de menos de um segundo em um tempo equivalente à idade do Universo) que tornam possível o GPS.
Mas a história da evolução da mecânica quântica não termina aí. Ideias surpreendentes continuam aparecendo.
A segunda revolução quântica
No final do século 20, laboratórios em diversas instituições demonstram o controle de átomos e fótons individuais. A interação de um único átomo com um único fóton, preso entre dois espelhos, é demonstrada no laboratório de Serge Haroche na Ecole Normale Supérieure em Paris, ensejando forte colaboração com nosso grupo de óptica quântica no Rio de Janeiro.[12] Armadilhas eletromagnéticas de íons, no laboratório de David Wineland no National Institute of Science and Technology em Boulder, Colorado, controlam as interações entre os íons, permitindo a transferência de informação quântica de um íon para outro, sugerindo um possível mecanismo para computadores quânticos.
Surge uma nova física quântica, que lida com átomos e fótons individuais e com o fenômeno do emaranhamento, que motiva novas tecnologias, no que chamou de “segunda revolução quântica”. A Figura 2 ilustra os componentes fundamentais dessas novas tecnologias quânticas.
Figura 2. Componentes fundamentais das novas tecnologias quânticas. Os quatro grandes temas, representados pelas quatro colunas, sustentam-se em uma forte base científica, e são perpassados por engenharia e controle, software e desenvolvimentos teóricos, educação e treinamento para a formação adequada de pessoal.
(Fonte: Antonio Acin et al., New J. of Phys. 20, 080201 – 2018)
Computadores quânticos são construídos por diversas empresas, nos Estados Unidos, na Europa, na China. Com potência de cálculo crescente, mas ainda não apresentando resultados úteis para aplicações importantes que demandam intensos recursos computacionais. Comunicação quântica, usando detectores de fótons únicos, protege a privacidade das mensagens transmitidas. Simulações quânticas, consideradas pelo físico Richard Feynman em artigo publicado no International Journal of Theoretical Physics em 1981, simulam em laboratórios interações em materiais, permitindo a descoberta de novos fenômenos e novos materiais.
“Iniciativas como essas são fundamentais para fortalecer o protagonismo do Brasil em ciência e tecnologias quânticas, acrescentando à pesquisa básica de excelente nível.”
Sensores ultrassensíveis permitem a medida de campos magnéticos da ordem de 10-11 vezes mais fracos que o valor na superfície da Terra, levando a magneto-encefalogramas de grande precisão, que permitem diagnósticos de funções cerebrais através da detecção dos campos magnéticos gerados pelas correntes elétricas no cérebro. Gravímetros com precisão de 10-9 g, onde g é a aceleração da gravidade na superfície da Terra, permitem descobrir lençóis subterrâneos de água e óleo, ou mesmo vestígios de civilizações antigas, por meio da alteração que provocam no campo gravitacional na superfície do planeta.
Investimentos crescentes em novas tecnologias quânticas ocorrem em vários países (Figura 3). A China lidera os investimentos por larga margem, com 15 bilhões de dólares de investimento público. A Europa ocupa o segundo lugar, com 10 bilhões de dólares de investimentos públicos, que incluem a iniciativa “Quantum Flagship” e as contribuições do setor público por Estados Membros individuais. O investimento alemão corresponde a 60% do investimento coletivo europeu. Somente nos Estados Unidos e no Canadá, o investimento privado é maior que o público. Os Estados Unidos lideram o investimento privado, que corresponde a 44% do financiamento global.
Figura 3. Investimento total público e privado (anunciado) em tecnologia quântica para países e regiões selecionados, até 2024 (bilhões de dólares americanos). Somente países e regiões com investimentos totais superiores a US$ 1 bilhão são exibidos.
(Fonte: European Centre for International Political Economy (ECIPE) Quantum Database)
Restrições a exportações de componentes para tecnologias quânticas começam a aparecer. Em setembro de 2024, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos publicou um documento que autoriza exportações nessa área apenas a “países parceiros”, designação que não contempla nenhum país da América Latina.
A Figura 4 mostra a quantidade e qualidade de publicações acadêmicas por subtema de tecnologias quânticas para os dez principais países, de 2019 a 2023, como percentual do total de publicações. A qualidade é medida em termos da parcela de publicações nos periódicos de maior impacto (topo 10% dos periódicos). É interessante observar que, enquanto os Estados Unidos privilegiam a computação quântica em suas publicações nas revistas com maior impacto (“top 10%”), a China lidera as publicações em comunicação quântica e sensores quânticos (Figura 4).

Figura 4. Quantidade e qualidade de publicações acadêmicas por subtema de tecnologias quânticas para os dez principais países, de 2019 a 2023 (percentual do total de publicações).
(Fonte: European Centre for International Political Economy (ECIPE) Quantum Database)
Ciência e tecnologias quânticas no Brasil
A comunidade científica brasileira tem publicado artigos científicos nos melhores periódicos internacionais. A cooperação entre os diversos grupos do país foi estimulada por programas como o Instituto do Milênio de Informação Quântica, apoiado pelo CNPq, inaugurado em 2001, com uma segunda edição em 2006, seguido pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica (INCT-IQ), iniciado em 2009 e vigente até este ano de 2025, tendo sido apoiado pelo CNPq, pela FAPERJ e pela FAPESP. Esse Instituto reúne atualmente 120 pesquisadores principais, 26 instituições públicas de ensino superior e um centro de pesquisa do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (CBPF). Está presente em 12 estados em quatro regiões do Brasil.
O INCT-IQ teve um papel muito relevante na formação de novos pesquisadores; mais de 700 teses e dissertações foram concluídas e publicações nas melhores revistas científicas (como Science, Nature, Physical Review Letters, entre outras) tiveram destaque internacional.
Diversas startups baseadas em mecânica quântica têm aparecido no Brasil, produzindo algoritmos para indústrias e computadores quânticos para fins educacionais. Equipamentos voltados para a saúde e a agricultura, baseados em lasers, foram desenvolvidos (Figura 5).
(A) (B)

Figura 5. Tecnologias quânticas, baseadas no laser, para saúde e agricultura: (a) Terapia fotodinâmica, desenvolvida na USP-São Carlos, para tratamento de câncer de pele, disponível no Sistema Único de Saúde (SUS); (b) Equipamento desenvolvido pela Embrapa e a startup Agrorobótica, para análise do solo.
(Reprodução)
A comunidade científica que trabalha nessa área no Brasil é muito ativa, embora com recursos muito aquém daqueles exibidos na Figura 3. Em maio de 2024, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação instituiu um Grupo de Trabalho para debater e propor as bases e diretrizes para estabelecer uma Iniciativa Brasileira para Tecnologias Quânticas. Em dezembro de 2024, a FAPESP lançou um programa em Tecnologias Quânticas — QuTIa (acrônimo em inglês de “Quantum Technologies Initiative”). Iniciativas como essas são fundamentais para fortalecer o protagonismo do Brasil em ciência e tecnologias quânticas, acrescentando à pesquisa básica de excelente nível, existente em várias instituições nacionais, o desenvolvimento de inovação que leve a novos dispositivos quânticos, fortalecendo a economia e beneficiando a sociedade. Um esforço necessário e urgente, tendo em vista as restrições crescentes às exportações nessa área.