panfleto destacada

A voz das ruas no processo de independência

Em panfletos e pasquins que circularam no Brasil oitocentista homens letrados e iletrados, negros e mulheres escreveram uma história da separação de Portugal ainda pouco conhecida pelos brasileiros

A informação circulava com velocidade, de mão em mão, de boca em boca e em vários formatos. Ora com linguagem erudita, ora em formato mais popular, em verso, em prosa, curtos ou longos, ora adotando um tom laudatório, ora difamatório, com textos assinados ou anônimos. Assim eram os panfletos e pasquins que circularam intensamente no Brasil oitocentista, se constituindo em um gênero de literatura política. Estudos recentes sobre este material ajudam a explicar que a independência do Brasil foi um processo bem mais longo e complexo que envolveu atores mais variados do que alguns homens ao largo de um riacho em São Paulo pode supor. Homens letrados e iletrados, negros e mulheres que buscaram participar deste processo por meio de um punhado de folhetos distribuídos entre o século XVIII e o século XIX escreveram uma história ainda pouco conhecida pelos brasileiros.

Os “papelinhos”, “folhas volantes” ou “papeis incendiários”, como eram chamados, eram folhas soltas colocadas nas paredes e postes de locais públicos. Também eram lidos ou memorizados e declamados nos espaços das cidades. “Eles tiravam a política do estreito espaço de poder onde se movimentavam as autoridades régias, fazendo dela um assunto público”, explicam a historiadora Heloisa Starling e o senador Randolfe Rodrigues, no prefácio do livro “Vozes do Brasil: a linguagem política na independência”, lançado no fim do ano passado pela editora do Senado e que reúne 21 panfletos políticos, publicados no Brasil e em Portugal entre 1821 e 1824.

Os textos abrangem eventos que animaram o debate público antes e depois da Independência, em lugares como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Maranhão e Grão-Pará. Segundo a historiadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcela Telles Elian de Lima, os panfletos expõem os projetos em disputa no “calor da hora”. Por exemplo, na petição redigida por Joaquim Gonçalvez Ledo dirigida a D. Pedro em junho de 1822. “Ao insistir na urgência em se convocar uma assembleia geral de representantes das províncias do Brasil, o texto dá conta de um projeto centralizado no Rio de Janeiro, em torno do Príncipe Regente ainda que considerasse a participação de deputados eleitos pelas províncias na elaboração de um conjunto de leis que contemplasse seus interesses”, aponta Lima, que também é uma das organizadoras do livro Vozes do Brasil.

Outro exemplo é o panfleto de autoria do negociante português João Rodrigues de Miranda, publicado no Maranhão, em 1822, no qual ele defende a manutenção da união entre Brasil e Portugal: “Fujamos das pérfidas sugestões da corrompida Côrte do Rio de Janeiro; mas reconheçamos outra Authoridade do que, a do Soberano no Congresso das Côrtes, e d´ElRei o Senhor D. João VI. Constitucional; respeitemos os seus sábios Decretos; juremos-lhe de novo a mais firme adesão”.

A profusão dos panfletos mostram ao mesmo tempo que as pessoas dos mais variados estratos sociais ansiavam por informação e também que queriam participar de alguma forma das discussões e das decisões sobre os rumos do país naquele momento. Eles eram um tipo de comunicação direta, simples e barata. “Com um panfleto na mão, qualquer pessoa, mesmo ainda mal iniciada na participação política, ingressava rapidamente em um novo espaço de debate que transbordava dos círculos letrados para o ambiente das ruas, e se envolvia em longas discussões sobre os rumos de um Brasil ainda em formação”, afirmaram Rodrigues e Starling.

“Os panfletos oferecem informações acerca da conjuntura histórica e da sociedade da época – seus temas e preocupações mais imediatos”, explica Lima. “Quando são estruturados no formato abaixo-assinado ou manifesto, por exemplo, o objetivo principal é a mobilização, ou seja, reunir diferentes setores da população em torno de uma demanda comum. Com o Manifesto do Epaminondas Americano, ao Soberano, e Independente Congresso Nacional em Cortes Gerais, o advogado português, Manuel Paixão dos Santos Zacheo – sob pseudônimo – expôs sua posição contrária a extinção do Convento de Nossa Senhora das Mercês, como determinado pela Junta Provincial. Mas, por trás desse fato, estava o combate ferrenho ao governador do Maranhão, Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca (1818-1822) e seu sucessor e aliado o bispo dom Frei Joaquim de Nossa Senhora do Nazaré, responsável pela decisão, considerada arbitrária”, descreve.

É importante lembrar que se trata aqui de um país onde uma parcela muito pequena da população era alfabetizada. “A comunicação se efetivou por meio da oralidade. Era muito comum a leitura desses panfletos ser feita nas ruas e nas praças. A escrita dos panfletos era muito voltada para o oral”, conta Lucia Bastos Pereira das Neves, historiadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Esses matérias adquiriam formatos diversos: diálogos, discursos, catecismos ou até fazendo paródias de orações da Igreja Católica. “Assim era mais fácil chegar ao povo iletrado que repetia algumas informações com uma compreensão própria. Outra característica dos panfletos era seu caráter didático, com uma linguagem mais simples. Pode-se afirmar que havia uma pedagogia cívica nos panfletos”, afirma.

Múltiplas independências

Esta pedagogia buscava discutir e convencer as pessoas sobre diferentes projetos de emancipação do Brasil e mesmo sobre a manutenção da ligação com Portugal. Manifestações autonomistas brotavam por todo lado, em todas as províncias, e os panfletos retrataram isso. Eles ajudam a contar a história da separação de Portugal a partir de outros pontos de vista que não o do Rio de Janeiro, revelando múltiplas independências. À época, o Brasil não era uma unidade homogênea de Norte a Sul, pelo contrário. Havia disputas entre as províncias. Muitas questionavam a autoridade de Portugal, mas também a centralização do poder no Rio. Daí que antes e depois da Proclamação da Independência por D. Pedro, em São Paulo, houve diversas lutas e guerras de independência.

“Em verdade, não havia Brasil, mas Brasis. A independência, inicialmente, era do centro-sul contra Portugal. Os próprios deputados portugueses assim comentavam. O Pará, Maranhão, Piauí e Bahia mantiveram-se unidos às ideias das Cortes de Lisboa de 1821 a 1822. Acreditavam que o Rio de Janeiro se transformara em uma nova metrópole. E que D. Pedro, ao desobedecer a algumas medidas das Cortes agia de forma autoritária, em confronto com a proposta liberal e constitucional das Cortes de Lisboa”, conta Neves. “Essas regiões só foram integradas ao Império do Brasil ao longo de 1823, depois de muitas guerras civis. Há ainda o caso de Pernambuco que por algum tempo procurou se manter autônomo, sem se ligar a Portugal ou ao Brasil. E ainda há a questão da Cisplatina, em que encontramos uma corrente favorável à Independência do Brasil, outra ligada às Cortes de Lisboa e outra que queria a autonomia da Província”, complementa.

Figura 1. Trecho da Carta com as notícias de Pernambuco endereçada aos leitores em Lisboa, de autor anônimo. Escrita em 1º de fevereiro de 1822, a correspondência apresenta o cenário desolador causado pelos violentos acontecimentos diários ocorridos na cidade após o dia 20 de janeiro, no contexto das lutas pela emancipação do Brasil.
(“Carta Pernambuco”. Vozes do Brasil. Reprodução)

Com fortes relações comerciais com Portugal, a Bahia – Salvador em especial – tinha posição estratégica tanto para Lisboa quanto para o Rio de Janeiro. A disputa entre ambos pela província produziu um capítulo à parte no processo de Independência do Brasil, conforme descrevem Lima e Valquíria Ferreira da Silva em um dos capítulos do livro “Vozes do Brasil”. “Militares, magistrados, mas principalmente os comerciantes portugueses viam na relação com as Cortes a oportunidade em retomar a importância da capitania no interior do Império, após Salvador ter sido preterida pelo Rio de Janeiro como sede da Corte”, afirmaram as pesquisadoras. E estas disputas eram tema constante dos panfletos afixados nos lugares de grande circulação na capital baiana e também no Rio de Janeiro e em Lisboa. Elas se desenrolavam em manifestações feitas em formatos diversos, em réplicas e tréplicas que ocupavam redatores, jornais e que agitavam a vida dessas cidades.

 

“Não houve, portanto, um processo de emancipação amplo e unificado, por meio de um acordo amigável entre colônia e metrópole.”

 

Não houve, portanto, um processo de emancipação amplo e unificado, por meio de um acordo amigável entre colônia e metrópole. Os vários projetos de separação que competiam entre si adiaram a constituição do novo Império do Brasil. “A Independência do Brasil não se resume ao 7de setembro, mas envolve um processo iniciado com o movimentos constitucional de 1820, que pode ser considerado, em parte, finalizado em 1825 com o Tratado de Reconhecimento por parte de Portugal do novo Império”, escreveu a historiadora em artigo em que propõe uma outra abordagem da história da Independência do Brasil, para além das grandes personagens conhecidas pela historiografia, que possibilite trazer à tona os indivíduos muitas vezes esquecidos desse processo.

Múltiplos atores

Um exemplo de atores geralmente esquecidos quando se fala na independência do Brasil são os pretos e pardos. Animados pelos panfletos e pasquins que defendiam a separação do Brasil de Portugal, e acreditando que isso significaria também a sua liberdade, eles se organizaram em grupos para reivindicar a independência. “Para além do que já foi estudado pelo historiador João José Reis, o papel atribuído a um ‘partido negro’ no movimento da Independência, conforme relato de um informante francês, escrito provavelmente depois de 1823, era que este ‘partido dos negros e das pessoas de cor’ constituía-se como o mais perigoso, ‘pois trata[va]-se do mais forte numericamente falando’. Sem dúvida, em províncias com forte presença de escravos, seu comportamento frente à situação de conflito era contrário aos portugueses, que monopolizavam a venda de produtos básicos de subsistência, manipulando seus preços de acordo com seus interesses. Claro que muitos também se opunham à elite branca nascida no Brasil”, explica Lucia Neves.

Ainda segundo ela, nos folhetos não há muitas menções a escravos, mas notícias em jornais, cartas e documentos oficiais mostram que eles tentaram obter um papel político mais claro na vitória dos favoráveis à “causa brasileira”, como na Bahia. Maria Bárbara Garcez Pinto, importante dama baiana, dona de engenhos na Bahia, casada com Luís Paulino d’Oliveira Pinto da França, deputado pela província da Bahia nas Cortes de Lisboa, ao lhe escrever, informava que: “a crioulada da Cachoeira fez requerimentos para serem livres”, acreditando que de forma ordeira, podiam ter uma intervenção maior na cena pública.

De outro lado, ao longo das guerras de independência, especialmente na Bahia, diversos escravos fugiram para se engajar nas forças brasileiras. “Acreditavam que, ao lutar pela liberdade do Brasil, podiam lutar também por sua própria liberdade. Vislumbravam um novo ‘horizonte de expectativa’. Inclusive, mais tarde, o governo imperial procurou recompensar esses homens, recomendando que seus senhores dessem sua alforria por meio de um pagamento justo com recursos da Junta Provincial da Fazenda”, complementa. Para ela, há muito ainda por descobrir por detrás desses rostos anônimos, embora alguns avanços foram realizados por estudos, como o já citado de João José Reis. Professor na Universidade Federal da Bahia, Reis é considerado uma referência mundial para o estudo da história e da escravidão no século XIX.

Os mesmos panfletos que animaram os escravos a se engajar nas lutas pela emancipação brasileira expressaram uma linguagem figurada que associava escravidão e a independência. Conforme explica Neves, o Brasil era visto como escravo de Portugal. “Nesse caso, a ideia fomentada inúmeras vezes por adeptos da causa portuguesa era a da possibilidade de uma revolução no Brasil nos moldes do Haiti, caso se configurasse a sua separação da antiga metrópole”, conta. Em 1804, uma revolta de escravizados conseguiu expulsar os franceses de uma de suas possessões mais rentáveis, decretar a Independência do Haiti e proclamar o liberto Jean-Jacques Dessalines “imperador”.

Anônimos da independência

Nos debates e discussões que os 200 anos da independência do Brasil suscitam, os panfletos, pasquins e seus redatores, anônimos ou não, revelam atores e processos originais no processo de separação de Portugal. Eles ajudam a contestar as narrativas que têm como foco grandes heróis como José Bonifácio, Diogo Feijó, a Imperatriz Leopoldina e, sem dúvida, D. Pedro.

Figura 2. Foto publicada no jornal Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, n.206, 7 set. 1922, p. 3. Nas comemorações do centenário da independência ainda prevaleceu uma narrativa baseada em grandes heróis.
(Acervo Biblioteca Nacional. Reprodução)

Conforme explica Lucia Neves, essa narrativa vem do contexto da historiografia do século XIX, em que a figura do herói assume um papel fundamental nos relatos históricos. “Era o tempo das biografias em que o papel do indivíduo se sobressaía em proveito de abstrações ou de coletividades anônimas, em relatos, muitas vezes, minuciosos, mas lineares”, aponta. A historiadora destaca alguns trabalhos dentro desta linha interpretativa, o de Pereira da Silva, História da fundação do império brasileiro, o de Francisco Adolfo Varnhagen, História da Independência, publicado após sua morte, em 1916 e outros livros que continuam com essa visão no século XX: A vida de Pedro I, de Octávio Tarquínio de Sousa (1952), ou A vida de D. Pedro I: o rei cavaleiro, de Pedro Calmon (1943). “Apesar de consagrados na historiografia, apresentam perspectivas mais lineares e de exaltação ao herói nacional. Talvez, o primeiro trabalho que começou a modificar um pouco essa abordagem foi o de Manuel de Oliveira Lima, O movimento da independência (1922). A ruptura acontece com os novos trabalhos oriundos da pós-graduação dos anos 90 do século XX”, esclarece.

 

“Registradas nos panfletos, a voz das ruas mostra que o processo de independência do Brasil foi mais complexo e longo do que o grito de independência às margens do Riacho Ipiranga pode fazer supor.”

 

Registradas nos panfletos, a voz das ruas mostra que o processo de independência do Brasil foi mais complexo e longo do que o grito de independência às margens do Riacho Ipiranga pode fazer supor. “Da participação de vários segmentos no processo de independência, devemos pensar que uma sociedade política só pode ser formada e organizada com a participação efetiva e consciente de cada cidadão. Acredito que esse aspecto deva ser levado em conta nas próximas eleições em 2022. Há 100 anos deixamos de ficar sujeitos a uma metrópole. Agora, devemos não estar sujeitos a notícias falsas e a visões providencialistas. Devemos pensar criticamente o presente e votar de acordo com nossa consciência cidadã”, finaliza Lucia Neves.

 

Imagem de capa: Panfletos retratam um tempo de agitação política e batalhas no Brasil.
(“Ex-libris de Oliveira Lima”. Reprodução)

MARIUZZO, Patrícia. A voz das ruas no processo de independência. Em panfletos e pasquins que circularam no Brasil oitocentista homens letrados e iletrados, negros e mulheres escreveram uma história da separação de Portugal ainda pouco conhecida pelos brasileiros. Cienc. Cult. [online]. 2022, vol.74, n.1 [citado  2023-09-07], pp.1-6. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252022000100011&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220011.
Patricia Mariuzzo

Patricia Mariuzzo

Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
Patrícia Mariuzzo é divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável).
1 comment
  1. Olá! sou Vice Reitora da Universidade Católica em Washington DC onde fica a Biblioteca Oliveira Lima. Os panfletos da independência (e muito mais) agora estão disponíveis no portal digital. Convido a visitar. oliveiralimalibrary.catholic.edu e entre no Portal Digital. São 1 milhão de páginas.

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