Não é de hoje que a rã kambô — um pequeno anfíbio amazônico — é alvo de disputa internacional. A secreção da pele do animal é rica em ingredientes ativos, como deltorfina e eledoisina — substâncias opioides que aliviam a dor e produzem uma sensação de bem-estar. Seus fins medicinais podem atrair interesses comerciais, e foi exatamente o que aconteceu. Um estudo recente encontrou 11 registros de patentes internacionais usando secreção do sapo kambô.
Publicada na revista Direito GV, o estudo pesquisou um banco de dados internacional em busca de evidências dos registros. Encontrou 11 patentes registradas, todas concedidas a países desenvolvidos como Estados Unidos, Canadá, França e Japão. A única exceção na lista é o México.
Segundo o autor da pesquisa, Marcos Vinício Feres, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), a análise sugere uma forma moderna de colonialismo, presente nas relações internacionais estabelecidas entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Para que a patente seja concedida deve haver inovação, novidade e aplicação industrial. O estudo, no entanto, discute se é legítimo patentear uma inovação feita com substâncias extraídas de animais e plantas que já são utilizadas por pessoas em seus países de origem. O primeiro registro etnográfico com relatos do uso da secreção data de 1925, conforme a pesquisa.
Desta forma, as regulamentações internacionais sobre patentes e biodiversidade podem estar facilitando a apropriação do conhecimento dos povos tradicionais. Nesse sentido, a cultura da oralidade dos povos tradicionais não é respeitada pelo ordenamento jurídico, que exige documentação no momento do pedido de registro.
Biopirataria
O estudo também analisou criticamente duas normas internacionais que compõem o ordenamento jurídico de patentes: o acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, em inglês) de 1994, da Organização Mundial do Comércio, e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) de 1992.
A situação relatada no artigo já se repetiu em outros países da América Latina devido à rica biodiversidade da região. No Peru, por exemplo, até agora foram identificados 243 casos de patentes estrangeiras utilizando recursos genéticos do país, e 76 foram resolvidos em favor dos povos originários, segundo dados da Comissão Nacional contra a Biopirataria, órgão vinculado ao Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e Proteção da Propriedade Intelectual (INDECOPI).
Duas possíveis formas de deter a biopirataria passam pela elaboração de uma legislação nacional que defenda a biodiversidade local e os interesses dos povos indígenas, bem como um catálogo que registre o conhecimento dos povos tradicionais associados aos recursos biológicos.
No Peru, existe a Lei 27.811 de 2002, uma das primeiras do mundo a tentar proteger o conhecimento indígena sobre os recursos biológicos, e a Lei 29.785, que garante o direito à consulta prévia dos povos quando houver medidas que afetem diretamente. Outros países da região possuem legislação para proteger o conhecimento tradicional de seus povos em matéria de biodiversidade, como a Comunidade Andina — bloco formado por Peru, Colômbia, Equador e Bolívia — com as decisões 391 e 486, e Costa Rica, com a Lei 7.788. O Brasil, por exemplo, possui a Lei 13.123 de 2015, mas não possui catálogo.
* Com informações de SciDev.Net