O processo evolutivo que culminou no surgimento da espécie Homo sapiens trouxe consigo o aperfeiçoamento de uma das características intrínsecas mais fascinantes dos seres vivos, que é a curiosidade. Nascemos curiosos, e desenvolvemos a curiosidade durante todo o período que nos mantemos vivos. A ciência, palavra de origem latina (Scientia) que significa conhecimento, é fruto dessa curiosidade perenal, lapidada pela inteligência que nos foi presenteada pela evolução. Quando o ser humano começou a fazer perguntas, elaborar hipóteses, testar experimentos e equacionar as respostas encontradas, ou seja, quando o método científico passou a fazer parte da rotina dos nossos ancestrais, a vida começou a melhorar. Não coincidentemente, foi o período em que nossos antepassados começaram sutilmente a se organizar em sociedades. O domínio da ciência para conseguir produzir fogo, para forjar ferramentas, para construir habitações, para preparar vestimentas, para produzir alimentos, distingue a espécie humana das dos outros animais e garantiu (e garante) sua sobrevivência e ascendência sobre todas as outras espécies, permitindo seu reinado absoluto sobre o planeta Terra. O conhecimento científico que possibilitou manipular os diferentes materiais foi tão importante que definiu as diferentes eras da pré-história e do início da civilização: Idade da Pedra Lascada, quando se conseguiu dominar pedras para criar ferramentas de proteção e de caça; Idade da Pedra Polida, quando o domínio e conhecimento científico permitiu desgastar de forma planejada determinados tipos de minerais para providenciar propriedades como o corte; Idade do Cobre, Idade do Bronze e Idade do Ferro, com o domínio da fundição de minério para produção de metais e ligas.
Decorridos alguns milhares de anos desses períodos históricos, a presença da ciência e da tecnologia (que é a aplicação prática do conhecimento científico) no nosso cotidiano está intimamente ligada a todas as atividades simples que praticamos diariamente. E de tão enraizada em nossas vidas, a dependência absoluta que possuímos pela ciência passa despercebida pela maioria da população, como se tudo isso sempre tivesse existido, ou tivesse simplesmente chegado por encomenda, sem o cabedal científico que lhe sustenta. Todas as atividades humanas no Século XXI, do instante em que se acorda ao instante em que se vai dormir, incluindo o período de sono, dependem de algum conhecimento trazido pela ciência e incorporado aos padrões da sociedade dessa época. Eletricidade, água tratada e potável, produtos de higiene, fármacos, materiais para vestimenta e proteção, produtos para a construção de casas e edifícios, transporte, comunicações, alta produção de alimentos, diversão, entretenimento… absolutamente tudo o que nos cerca e que melhora a qualidade de vida, a saúde e o bem-estar, é fruto direto da ciência gerada em algum momento que alguém perguntou: por quê?
O impacto da ciência na qualidade de vida da população pode ser mensurado de várias maneiras, mas nada é tão evidente quanto a comparação na expectativa de vida. No início do século XX a expectativa de vida média de um cidadão comum variava entre 35 a 45 anos (de acordo com o país). A ciência trouxe os antibióticos, as vacinas, o saneamento básico, os equipamentos de proteção, a melhor compreensão do funcionamento dos organismos, o desenvolvimento de novos fármacos, aparelhos para identificação de doenças, a compreensão das relações entre hábitos (como o tabagismo e o sedentarismo) e a incidência de enfermidades específicas, e o resultado desse grande desenvolvimento científico foi um aumento da expectativa média de vida que nos dias atuais fica ao redor dos 80 anos.
“Todas as atividades humanas no Século XXI, do instante em que se acorda ao instante em que se vai dormir, incluindo o período de sono, dependem de algum conhecimento trazido pela ciência e incorporado aos padrões da sociedade dessa época.”
Um aspecto fascinante da relação inequívoca entre o desenvolvimento da ciência e a melhoria na vida da população é o fato de que muitas das conquistas científicas que fazem parte do nosso cotidiano foram obtidas a partir de conhecimento gerado para outros fins. Por exemplo, uma das maiores revoluções científicas da história da humanidade se deu no início do século XX, a chamada mecânica quântica. A mecânica quântica desafiou o senso comum e estipulou novos paradigmas. Novas leis foram propostas para compreender a natureza, em contraponto às muito bem estabelecidas pela Física clássica. Essa teoria, criada para compreender e explicar a estrutura básica da matéria, estava (e está) na base do advento de toda a tecnologia de informação e comunicação do mundo atual: internet, transmissão e armazenamento de dados, telecomunicações, etc. Se alguém dissesse a Max Plank, Niels Bohr, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg, entre outros grandes cientistas responsáveis pela mecânica quântica, que o estudo que estavam conduzindo nos 30 primeiros anos do século XX seria responsável pela revolução tecnológica que se viu no final do século, eles certamente o considerariam um lunático. Mas graças ao conhecimento existente, e à evolução natural sobre ele, toda essa realidade se tornou possível.
O exemplo da mecânica quântica e seus desdobramentos trás consigo a resposta para uma pergunta frequente, que pode estar carregada de ingenuidade ou má-fé: qual ciência se deve fazer? A resposta é: todas. Basta haver perguntas sem respostas. Não há conhecimento inútil. Muitas vezes não se tem uma aplicação direta de algo que se está pesquisando, mas em algum momento o conhecimento gerado será importante para algo relevante. Cada nova resposta a alguma pergunta é um tijolo, que sozinho muitas vezes não tem serventia, mas que nas mãos de pessoas corretas, e na presença de muitos outros tijolos, pode ser o bloco de construção de algo novo. E fundamentalmente, o conhecimento gerado pode ser aproveitado em muitas outras áreas, diferentes daquela que foi originalmente planejado. É importante, portanto, não se deixar levar pelo anacronismo do falso embate entre ciência básica e ciência aplicada, entre uma ciência que serve e outra que não serve, entre uma ciência que pode gerar produtos e outra que não produz tecnologia. A aplicação do conteúdo científico, e a quem ele será destinado, muitas vezes só se percebe quando esse conhecimento já existe.
O falso dilema sobre qual ciência se deve fazer se torna extremamente relevante quando o assunto é financiamento científico. A imagem do cientista maluco, barbado e com cabelo despenteado, com jaleco sujo e amassado e trabalhando no laboratório no fundo de sua casa, é poética para livros de história e filmes de Hollywood, mas não tem nenhum paralelo com a realidade. Ciência se faz em Instituições respeitadas e robustas de pesquisa e ensino, e necessita de muito investimento em pessoas, equipamentos, infraestrutura, material de consumo, etc. Por ser um bem precioso cujos resultados devem servir à população, tais investimentos devem majoritariamente ser oriundos de recursos públicos, como ocorre em absolutamente todos os países do mundo. E esse investimento deve ser garantido para todas as áreas do conhecimento: Ciências Exatas, Ciências da Terra, Ciências Biológicas, Engenharias, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Linguística, Letras, Artes, Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas. Isso não significa que não se deva induzir ou priorizar áreas estratégicas, ou áreas de competência local, ou áreas que respondam rapidamente a demandas emergenciais. O planejamento estratégico é um desafio fundamental na implementação de políticas científicas, deve sempre ser realizado, e depende de um conhecimento global das competências (existentes ou a se fomentar) e das demandas do país. As ações não são e não devem ser excludentes.
Figura 1. A evolução dos telefones celulares: ciência possibilitou o avanço dos grandes aparelhos com a função exclusiva de telefone aos ultrafinos que são verdadeiros computadores.
(Reprodução)
A ciência melhora a vida, e produz uma sociedade melhor através de diferentes mecanismos. Inicialmente, possibilitando a criação de algo que não existia, e cujo advento impactará positivamente na vida do indivíduo e na organização da sociedade. Antibióticos e vacinas, como descrito anteriormente, são exemplos desse tipo de ação. Outro exemplo é a chegada dos aparelhos televisores (que nos lares das famílias brasileiras se deu a partir de 1950), e dos telefones celulares a partir da década de 1990, sendo dois eventos que ilustram com maestria o impacto da ciência nos hábitos e costumes da população.
Após nos mostrar algo novo, a ciência melhora aquilo que já existe. Mantendo o exemplo dos televisores, a evolução do conhecimento científico permitiu a transição das TVs em preto e branco para a TV colorida, das TVs à válvula para as TVs com transístores; das TVs de tubo para as TVs de tela plana com telas de LEDs. E hoje o mercado possui televisores com nanotecnologia, possibilitando tamanhos de tela, resolução e intensidade de cores jamais imaginadas há alguns anos. Cada uma dessas evoluções é fruto de novo conhecimento científico gerado, incorporado e adaptado à tecnologia já existente.
A evolução dos telefones celulares é ainda mais impressionante e muito mais célere. Dos chamados “tijolões” que tinham a função exclusiva de telefone e cujas baterias duravam menos de três horas, aos aparelhos ultrafinos que são verdadeiros computadores, respondem exclusivamente pelo toque na tela (tecnologia touch screen) e têm baterias que conseguem dar suporte a todas as funções simultâneas com grande durabilidade. A ciência envolvida nos diferentes componentes de aparelhos de telefone celular é complexa e multifuncional, e apesar dos avanços surpreendentes, ainda há inúmeros desafios científicos a serem alcançados, e que certamente serão encontrados, resultando em ofertas de produtos melhores e que facilitarão ainda mais a vida da população. Para ilustrar, tomemos somente o exemplo das baterias, que é o componente mais importante de um telefone celular. As baterias de íons lítio foram (e são) as responsáveis pela existência dos dispositivos portáteis, como celulares, tablets e ipads. Seu funcionamento se baseia na combinação de diferentes materiais, que têm a capacidade de intercalar reversivelmente íons lítio em sua estrutura, sendo que os processos de intercalação e desintercalação em diferentes polos da bateria acontecem nos ciclos de carga e descarga, consumindo energia quando está sendo carregada e fornecendo energia durante a descarga. Além disso, um material que separa os dois polos (eletrólito), tem a função de carregar os íons lítio de um polo para outro durante esses processos. Esses eletrólitos nas baterias atuais são tóxicos e inflamáveis. Os desafios científicos na área envolvem aumentar a capacidade das baterias (quantidade de carga que pode armazenar) e seu tempo de duração; substituir os íons lítio por outro íon, como sódio e potássio, mais baratos, mais abundantes e geopoliticamente distribuídos de forma mais homogênea; substituir o eletrólito tóxico e inflamável por eletrólitos à base de água; preparar baterias flexíveis que possam ser dobradas e esticadas sem perder capacidade e sem ser danificada; preparar baterias transparentes, que possam ser usadas acopladas a dispositivos geradores de energia, como células solares; dentre outros. São inúmeras hipóteses, teorias, proposições, planejamento e realização de experimentos, envolvendo diferentes materiais, sistemas, configurações, para se tentar descobrir soluções científicas para cada um desses desafios. (Figura 1)
“Ciência se faz em Instituições respeitadas e robustas de pesquisa e ensino, e necessita de muito investimento em pessoas, equipamentos, infraestrutura, material de consumo, etc.”
Outra maneira da ciência transformar a sociedade é fornecendo respostas a situações inesperadas, e indicando caminhos para revertê-las ou contorná-las. Por exemplo, em 2015 se observou um número significativo de crianças nascendo com microcefalia, principalmente em alguns estados da região Nordeste do Brasil. A ciência brasileira, especialmente de pesquisadores da Fiocruz, deu uma resposta rápida e contundente ao fenômeno, associando-o à prévia infecção pelo Zika vírus. Foi a primeira vez que essa associação foi relatada na literatura científica, e permitiu que se providenciassem ações de controle e combate ao mosquito transmissor do vírus, que se planejassem cuidados paliativos a mulheres grávidas com relação à exposição ao mosquito, e se desenvolvessem políticas públicas adequadas para minimizar tais ocorrências.
Finalmente, uma das maneiras pela qual a ciência tem um forte impacto social é a partir do seu papel central no desenvolvimento e soberania do país, no desenvolvimento econômico e na geração de empregos e riqueza, fatores importantes no caminho necessário para a diminuição de desigualdades sociais. A ciência transforma matéria-prima ou commodities em tecnologia, aumentando sobremaneira seu valor agregado, e gerando empresas competitivas, robustas e independentes de flutuações de humores do sistema financeiro global. Relatório da Comunidade Europeia mostra que o investimento público em ciência e tecnologia tem um retorno equivalente a três a oito vezes o valor aplicado, em curto período de tempo,[1] e que entre 20% a 75% das inovações presentes no mercado não poderiam ter sido desenvolvidas sem a contribuição da pesquisa realizada com financiamento público. Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), indicam não haver desenvolvimento de tecnologias inovadoras, em todos os países do mundo, sem os investimentos públicos realizados em ciência e tecnologia.[2] Em outras palavras, a ciência também é um excelente negócio, e os lucros se fazem sentir por toda a sociedade.
Figura 2. A ciência foi (e continua sendo) fundamental para a identificação, o enfrentamento e o tratamento da pandemia de covid-19.
(CDC. Reprodução)
Um exemplo didático e atual de um evento onde a ciência teve um papel de absoluto destaque, melhorando a qualidade de vida da população e fazendo uma sociedade melhor, em todas as estratégias citadas anteriormente, e de forma absolutamente interdisciplinar, diz respeito à identificação e enfrentamento da pandemia de covid-19. A ciência identificou o vírus; a ciência entendeu o mecanismo de ação do vírus (e ainda continua fazendo novas e novas descobertas); a ciência previu e compreendeu a forma de transmissão e disseminação do vírus; a ciência identificou variantes do vírus; a ciência desenvolveu vacinas (no plural) contra o vírus; a ciência desenvolveu materiais corretos para máscaras e a composição/formulação correta do álcool em gel para a prevenção do vírus; a ciência desenvolveu respiradores mecânicos e materiais específicos para pessoas internalizadas pelo contágio com o vírus; a ciência identificou a ineficiência de medicamentos fantasiosos que se tentou usar na prevenção contra o vírus, e encontrou tratamentos adequados para situações específicas; a ciência está compreendendo os efeitos colaterais (físicos e emocionais) do isolamento decorrente da presença do vírus; a ciência possibilitou a aproximação de pessoas isoladas através de vídeo-chamadas, e permitiu trabalho em casa (home office) e aulas online; a ciência ensinou com a experiência do passado de outras pandemias. (Figura 2)
“A ciência melhora a vida e produz uma sociedade melhor através de diferentes mecanismos. Inicialmente, possibilitando a criação de algo que não existia, e cujo advento impactará positivamente na vida do indivíduo e na organização da sociedade.”
A ciência é um dos motores que transformam a sociedade. Em uma época onde se obtém excesso de informação (nem sempre confiável) em um toque das mãos, o conhecimento adquire uma importância ainda mais relevante. A ciência é um instrumento poderoso, que surgiu para satisfazer a curiosidade natural do ser humano, e que só faz sentido se for usada em prol do próprio ser humano. A ciência produz um mundo melhor.