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Educação e pesquisa para superar os grandes problemas do país

É preciso estruturar um plano estratégico que contemple a plena utilização das oportunidades oferecidas pelas características do território nacional, pela capacidade instalada e pela estrutura de apoio à educação superior, à ciência e à inovação

 

Uma agenda para o futuro

A ciência e a educação superior foram duramente atingidos nos últimos anos, seja por sucessivos cortes orçamentários e contingenciamento de recursos, afetando também a indústria de transformação e intensificando o processo de desindustrialização, seja pela negação da evidência científica, que levou ao agravamento da crise sanitária gerada pela pandemia da covid-19.

O governo eleito em 2022, por outro lado, promete reverter essa situação, o que está sendo confirmado por providências recentes, aumentando o valor das bolsas de estudo e de pesquisa, liberando recursos para as universidades federais e para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), e corrigindo os juros cobrados pela Finep para recursos reembolsáveis, tornando-os mais atraentes para a indústria.

Diante desse cenário, é importante elencar os desafios atuais que devem ser enfrentados pela pesquisa, pela educação e pelas atividades inovadoras no país, visando a estruturação de um plano estratégico que contemple a plena utilização das oportunidades oferecidas pelas características do território nacional, pela capacidade instalada e pela estrutura de apoio à educação superior, à ciência e à inovação (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, Financiadora de Estudos e Projetos – Finep, Fundações de Amparo à Pesquisa – FAPs), construída ao longo de muitas décadas.

Neste momento, duas tarefas se impõem para o desenvolvimento da ciência e da inovação no país: a de reconstrução de um parque científico e tecnológico devastado e a de produzir e seguir uma agenda para o futuro, que seja ousada, ambiciosa e multifacetada, voltada, ao mesmo tempo, para os desafios internos e para o aumento do protagonismo internacional na ciência e na inovação.

 

Desafios e oportunidades para a educação, a pesquisa e a inovação

Pensar sobre o futuro da educação, da ciência e da inovação no Brasil envolve estar sintonizado não apenas com as necessidades do país, mas também com os avanços em outros países. Essa atitude deve permear não só o planejamento governamental, mas também a educação em todos os níveis e, em particular, a pós-graduação.

É necessário mudar o perfil da economia, que tem inibido investimentos, prospectar as tecnologias emergentes e buscar um planejamento estratégico de longo prazo, que contribua para o desenvolvimento sustentável do país, nos âmbitos econômico, social e ambiental. Esse planejamento deve considerar a agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Os vários itens dessa agenda estão diretamente ligados a questões fundamentais do Brasil: erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável, boa saúde, energia acessível e limpa, combate às alterações climáticas, educação de qualidade, igualdade de gênero, água limpa e saneamento, vida terrestre – incluindo, no Brasil, a importante questão de preservação dos biomas – etc. Cada um desses itens corresponde a um desafio para o Brasil e vai necessitar de ciência, tecnologia e inovação para ser enfrentado. Essa agenda abraça todo o espectro da ciência desenvolvida em nossas universidades, envolvendo engenharias, humanidades, saúde, ciências naturais e sociais, em uma perspectiva multidisciplinar. Envolve pesquisa nas fronteiras do conhecimento, incluindo temas que, embora não tenham aplicações imediatas em vista, ajudam a compor uma sólida base científica, indispensável para futuras inovações disruptivas.

 

“É necessário mudar o perfil da economia, que tem inibido investimentos, prospectar as tecnologias emergentes e buscar um planejamento estratégico de longo prazo, que contribua para o desenvolvimento sustentável do país, nos âmbitos econômico, social e ambiental.”

 

A Agenda 2030 representa um elenco de oportunidades de desenvolvimento sustentável e inclusivo para o Brasil, resumidas a seguir. Vale notar que o Livro Azul da 4ª. Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Sustentável (CNCTI), publicado em 2010, e diversas publicações da Academia Brasileira de Ciências (ABC), contêm uma lista mais extensa e detalhada dessas iniciativas.

 

Biodiversidade

Já na 4ª. CNCTI era apontada a viabilidade do Brasil ser um protagonista internacional na área de bioeconomia, enfrentando com ciência e inovação o desafio de preservar os biomas nacionais, terrestres e marinhos, através da exploração sustentável de sua biodiversidade e da promoção de serviços ambientais, com a participação da população local. Entre os biomas, destaca-se a Amazônia, que ocupa 59% do território nacional, tem grande influência sobre o clima e é fonte de imensas riquezas. Por exemplo, só a cultura e a produção da pasta do açaí, exportada para vários países, traz para a região mais de um bilhão de dólares por ano. A biodiversidade da Amazônia e dos outros biomas nacionais é fonte também de insumos para medicamentos que podem trazer para o país um retorno muito maior que a extração de ouro e madeira. (Figura 1)


Figura 1. A cultura e a produção da pasta do açaí, exportada para vários países, traz para a região mais de um bilhão de dólares por ano.
(Foto: Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR. Reprodução)

 

 

Biotecnologia

Tanto para a preservação dos biomas, como para a produção de biocombustíveis e novos medicamentos, o incentivo a pesquisas na fronteira da biotecnologia deve ter um papel fundamental na agenda nacional de CT&I. Este é o tempo da grande revolução da engenharia genética e o Brasil não pode ficar alheio aos desenvolvimentos nessa área. A consolidação de um complexo econômico-industrial da saúde, envolvendo indústrias inovadoras, estimulando em particular inovações disruptivas na indústria farmacêutica e envolvendo o Sistema Único de Saúde (SUS), é prioritária para o país.

 

Agropecuária

A agricultura e a pecuária têm um papel extremamente importante na economia do país e, em especial, na balança comercial. No entanto, aparecem em vários países empresas que produzem proteína animal cultivada em laboratório, ou seja, carne produzida a partir de células do animal, sem afetar a sua vida. Várias dessas empresas estão no Vale do Silício, nos Estados Unidos. Em 2017, a China investiu 300 milhões de dólares na tecnologia da produção de carne de laboratório em Israel. Há várias motivações para isso: a redução da poluição e da dependência de carne importada e a redução da dependência da soja, usada para alimentar os animais. O Brasil não pode ficar alheio a esses desenvolvimentos.

 

“Pensar a educação, a pesquisa e a inovação no Brasil requer também identificar os obstáculos que atravancam o desenvolvimento nacional.”

 

A agricultura também precisa ser repensada. O solo da África meridional já foi verificado como favorável à cultura da soja, e a área plantada para esse fim tem um crescimento acentuado. Em 2020, a China fez um acordo com a Tanzânia para comprar a soja produzida pela mesma, talvez por razões políticas, visando evitar restrições políticas por parte de países exportadores, e também por razões econômicas, pois o frete é mais barato, devido à proximidade maior com a China em relação ao Brasil. Além disso, a China firmou um acordo com a Rússia para produção de soja. Alternativas à pecuária extensiva, a diversificação dos produtos agrícolas, o incentivo às cooperativas e à agricultura familiar, desenvolvendo novas tecnologias que atendam às necessidades específicas das pequenas propriedades, em estreita parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), são medidas importantes para a segurança alimentar da população e para a agregação de valor às exportações. Devem fazer parte da agenda de futuro do país.

 

Energias renováveis

Outra área importante para o país é a das energias renováveis. O Brasil ocupa lugar de destaque no mundo com mais de 83% da capacidade da matriz elétrica baseada em fontes renováveis. Novas tecnologias são necessárias, no entanto, para que o país alcance a meta da neutralidade de emissões de gases de efeito estufa até 2050, como prevê o Acordo de Paris. Esse deve ser um ponto importante na agenda de futuro do país, e está intimamente associado à preservação dos biomas. Segundo o relatório final do “Programa de Transição Energética”, lançado oficialmente em 13 de fevereiro de 2023, eliminar o desmatamento ilegal significa evitar o lançamento na atmosfera de 21 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa até 2050.[1] (Figura 2)


Figura 2. O Brasil ocupa lugar de destaque no mundo com mais de 83% da capacidade da matriz elétrica baseada em fontes renováveis
(Foto: Ministério de Minas e Energia – MME. Reprodução)

 

Tecnologias digitais, tecnologias portadoras de futuro

Permeando esses temas desafiantes, estão as novas tecnologias digitais, que revolucionam a economia e o quotidiano das pessoas, com perspectivas intrigantes de desenvolvimento da inteligência artificial, que precisam também pautar a agenda de futuro do país. De olho no futuro, devem estar presentes nessa agenda a nanotecnologia, novos materiais, tecnologias quânticas, tecnologias nuclear e espaciais.

 

Indústria de transformação

Ao mesmo tempo em que aumentou a presença de commodities nas exportações brasileiras (soja, petróleo, minério de ferro, carne bovina e de frango), setores mais tecnológicos perderam espaço ao longo dos últimos anos. De 2018 a 2021, a participação da indústria de média-alta tecnologia nas exportações brasileiras recuou de 15,8% para 11,9%, e a do setor de alta tecnologia diminuiu de 4,7% para 2,2%, de acordo com um mapeamento realizado pela Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex). Se em 1994 o Brasil contribuiu com 2,69% do valor adicionado da indústria de transformação mundial, essa participação caiu para 1,19% em 2019.[2] A reindustrialização do país, em novas bases, pautada por uma agenda de desenvolvimento sustentável e em sintonia com os avanços internacionais da ciência e da inovação, é prioritária para o Brasil. Uma política econômica que enfatize a importância de investimentos em ciência e inovação é essencial para a consecução desse objetivo.

 

Ciências humanas e sociais

A transformação do Brasil em país moderno, competitivo no âmbito internacional e socialmente inclusivo, não pode prescindir do apoio às ciências humanas e sociais, que permitam analisar a complexidade de um país que, definitivamente, não é para principiantes, apontando direções de desenvolvimento e reforçando a cultura nacional.

 

O Brasil precisa de uma revolução na educação

Esse foi o título de um dos capítulos do Livro Azul e continua atual. O desenvolvimento sustentável do país, conforme a agenda 2030, necessariamente exige essa revolução, em todos os níveis.

Em outros países, uma função importante da educação básica é eliminar a diferença entre os alunos oriunda do berço em que nasceram. Isso não ocorre no Brasil. A melhoria da qualidade da educação básica é urgente, com a valorização dos professores e a adoção de técnicas exitosas em outros países, como a “mão na massa”, estimulando a curiosidade das crianças e adolescentes. Essas técnicas devem estar presentes nos cursos de licenciatura e nas escolas.

 

“O Brasil precisa de um projeto nacional de desenvolvimento sustentável que seja inclusivo, beneficiando a população e promovendo o protagonismo internacional do país.”

 

Atualmente, cerca de 75% das matrículas no ensino superior estão em instituições privadas, das quais uma parcela significativa tem qualidade precária. O aumento da qualidade do ensino superior requer uma política que contraponha a esse perfil a diversificação das instituições públicas de ensino superior, além das universidades e institutos federais de educação, ciência e tecnologia (IFETs), com ciclos de formação, colégios universitários associados a universidades e currículos motivados por temas regionais. Os grandes desafios da sociedade contemporânea requerem uma educação interdisciplinar, os cursos de graduação devem ser conectados aos programas de pós-graduação, promovendo iniciação científica e estágios em empresas inovadoras, oficinas e seminários que apresentem temas ligados às fronteiras do conhecimento e aos grandes problemas do país, prática docente de mestrandos e doutorandos e mais ampla interação entre agendas de pesquisa e currículos de graduação.[3] Um projeto nacional de desenvolvimento requer uma reavaliação sistemática dos modelos de graduação e pós-graduação vigentes no Brasil, com ênfase em seleção e acesso, estrutura dos programas, formatos de qualificação e avaliação de egressos.

 

Obstáculos ao desenvolvimento nacional

Pensar a educação, a pesquisa e a inovação no Brasil requer também identificar os obstáculos que atravancam o desenvolvimento nacional, alguns já mencionados anteriormente. Destacam-se, entre eles, a pobreza e uma imensa desigualdade social e regional, que reduz o contingente populacional capaz de contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, desperdiçando enorme quantidade de talentos; a precária escolaridade da população e uma educação básica deficiente, que impacta negativamente a economia e o processo de inclusão social; a reduzida penetração na população do conhecimento científico, facilitando a propagação de ideologias negacionistas e de fake news; a contínua queda de produtos de maior conteúdo tecnológico no ­­­­parque industrial e na pauta de exportações do país, dominada por um conjunto limitado de commodities; a burocracia extrema, associada à frequente judicialização de iniciativas científicas, educacionais e empresariais, desencorajando decisões necessárias na execução de projetos e prejudicando o sistema de avaliação e a implementação de programas inovadores; a avaliação deficiente do retorno dos recursos empregados, que enfatiza mais os meios que os resultados.

Adicione-se a esses itens o apoio instável e escasso à atividade científica e à inovação: ainda que os recursos do FNDCT fossem empregados na íntegra em P&D, corresponderiam a apenas 0,1% do PIB nacional! O investimento federal em CT&I, corrigido pela inflação, caiu 60% entre 2014 e 2022. Em 2022, representou apenas 0,2% do orçamento executado (Figura 3).


Figura 3. Orçamento executado (pago) em 2022. O investimento em ciência e tecnologia representou apenas 0,2029% do total. Os gastos com juros e amortizações da dívida representam quase 50% do orçamento.
(Fonte: Auditoria da Dívida Pública)

 

A escolaridade dos brasileiros é precária: apenas 20% da população entre 25 e 64 anos possui ensino superior. No entanto, o investimento em educação tem sido reduzido em todos os níveis, em relação ao orçamento de investimentos da União: de 19% do total em 2012 (valores empenhados), passou a 8% na Lei Orçamentária Anual de 2022. A reduzida escolaridade e o baixo investimento em CT&I prejudicam a pesquisa e a inovação: o Brasil tem cerca de 900 pesquisadores por milhão de habitantes, enquanto países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) têm em média cerca de 4.000 pesquisadores por milhão de habitantes e alguns deles, como Israel e Coreia do Sul, têm cerca de 8.000 pesquisadores por milhão de habitantes.[4]

 

Conclusão

O Brasil precisa de um projeto nacional de desenvolvimento sustentável, que seja inclusivo, beneficiando a população e promovendo o protagonismo internacional do país. As instituições de ensino superior devem contribuir para a construção desse projeto, que envolve necessariamente todas as áreas de conhecimento, na direção apontada pela Agenda 2030 da ONU.

As conquistas da ciência nacional, da indústria e das instituições do sistema nacional de CT&I, e as propostas já existentes para o desenvolvimento da CT&I, formuladas pela comunidade acadêmica e empresarial, notavelmente por documentos da 4ª. Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), constituem fortes motivações para que se proceda, no governo federal iniciado em janeiro de 2023, a uma mudança de orientação política, privilegiando os objetivos do desenvolvimento sustentável, aproveitando e preservando as vantagens naturais do país, combatendo a desigualdade social e evoluindo resolutamente para uma sociedade do conhecimento. Essa mudança deve ser acompanhada de um esforço da comunidade acadêmica para reformar as instituições de educação superior, reavaliando os modelos de graduação, pós-graduação e pesquisa vigentes, ajudando assim a superar os grandes problemas do país.


Notas
[1] https://cebri.org/br/doc/309/neutralidade-de-carbono-ate-2050-cenarios-para-uma-transicao-eficiente-no-brasil
[2] https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/exportacao-e-comercio-exterior/
[3] http://www.abc.org.br/publicacao/repensar-a-educacao-superior-no-brasil-analise-subsidios-e-propostas/
[4] https://data.worldbank.org/indicator/SP.POP.SCIE.RD.P6.

Capa. O incentivo a pesquisas na fronteira da biotecnologia deve ter um papel fundamental na agenda nacional de CT&I, tanto para preservar os biomas, como para produzir biocombustíveis e novos medicamentos.
(Foto: Bernardo Oliveira/ Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Reprodução)
Luiz Davidovich

Luiz Davidovich

Luiz Davidovich é físico e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), a qual presidiu em 2016-2019 e 2019-2022, da Academia Mundial de Ciências (TWAS), da qual foi secretário geral em 2019-2022, e membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA, da Academia Europeia de Ciências e da Academia de Ciências da China.
Luiz Davidovich é físico e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), a qual presidiu em 2016-2019 e 2019-2022, da Academia Mundial de Ciências (TWAS), da qual foi secretário geral em 2019-2022, e membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA, da Academia Europeia de Ciências e da Academia de Ciências da China.
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