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Sustentabilidade e redução das vulnerabilidades

A necessária construção de pontes entre as ciências e a sociedade

 

A degradação ambiental e seus impactos nos sistemas de suporte à vida estão entre os grandes desafios que a humanidade tem de enfrentar. Nossa criatividade e o desenvolvimento do conhecimento nos levaram a uma situação paradoxal: somos capazes de resolver grandes ameaças à vida (como a produção de vacinas), mas estamos sofrendo as consequências de nosso progresso material e existencial (poluição, aquecimento global, esgotamento de recursos naturais). A verdade é que quanto mais avançamos na produção de conhecimentos e na aplicação destes à busca do bem-estar da humanidade, mais parece que precisamos encontrar soluções para os efeitos do nosso próprio avanço. E, na medida em que os problemas se agravam, fica evidente que as pessoas mais vulneráveis a todos esses problemas são sempre as mesmas: aquelas que estão no polo mais frágil das desigualdades recorrentes em nossa sociedade.

Mas as questões ambientais, as mudanças climáticas e a degradação dos ecossistemas são apenas uma parte dos desafios que o mundo acadêmico tem pela frente. Em comum com outros grandes problemas, como a paz, a redução da pobreza, a educação e a saúde, os temas associados à sustentabilidade demandam abordagens integrativas: entre disciplinas, entre instituições e entre setores da sociedade, em diferentes escalas territoriais, do local ao global. A construção de pontes (interdisciplinaridade e transdisciplinaridade) é, portanto, um importante tema da agenda de prioridades para quem produz conhecimentos e quem formula e executa políticas públicas.[1]

A Universidade, como fonte de conhecimento, tem importante responsabilidade nesse processo, como parte da solução, mas também como parte do problema. Novos campos e procedimentos para lidar com grandes e complexos desafios estão sendo construídos atualmente, em diferentes instituições acadêmicas. Como instituição, a Universidade evoluiu e mudou substancialmente o seu perfil, desde os seus primórdios, há quase um milênio. Mas, em todo o mundo, desde as rebeliões estudantis de 1968 e as reformas que ela inspirou (abrindo-se à sociedade, mas também criando defesas), muito pouco mudou.

A menos que algumas mudanças sejam feitas no modus operandi da estrutura de produção de conhecimentos, a lacuna entre as demandas da sociedade por soluções e a limitada capacidade da Universidade para fornecê-las aumentará. Enquanto isso, parte da pesquisa geralmente realizada por universidades está sendo produzida em instituições não acadêmicas, públicas ou privadas. Essas últimas, ao contrário da Universidade, têm-se mostrado mais flexíveis e adaptáveis às novas e complexas demandas. Por serem orientadas para a solução de problemas (problem-oriented), por definição, e por não possuírem estruturas rígidas e fragmentadas em compartimentos disciplinares, as instituições de pesquisa não acadêmicas costumam funcionar por meio de forças-tarefas, cujos membros, uma vez atingido o objetivo, são redistribuídos em outros projetos. As instituições não acadêmicas estão se mostrando mais responsivas em atender às novas e complexas demandas científicas e tecnológicas,[2] integrando, na prática, conhecimentos e profissionais das ciências básicas e aplicadas.[3]

 

A Interdisciplinaridade como foco do debate

Práticas interdisciplinares têm um papel importante no debate sobre a crise e o futuro da Universidade. Embora não seja uma questão nova[4], é altamente relevante para o presente e o futuro do modus operandi da produção de conhecimentos. Muita coisa mudou desde as primeiras configurações da Universidade, ainda na idade média. Das formações científicas amplas, que cobriam campos como a medicina, a natureza e elementos do que hoje chamamos de humanidades, um longo caminho foi percorrido. Já não se formam mais generalistas, mas principalmente especialistas.

 

“Quanto mais avançamos na produção de conhecimentos e na aplicação destes à busca do bem-estar da humanidade, mais parece que precisamos encontrar soluções para os efeitos do nosso próprio avanço.”

 

A especialização moldou o mundo acadêmico principalmente ao longo do último século, produzindo uma formidável gama de disciplinas[5] em um número crescente de campos isolados e autocentrados. Esse processo tem sido respaldado pela proliferação de periódicos especializados e, também, pela estrutura institucional montada para o credenciamento, a avaliação e o financiamento de projetos de pesquisa e de cursos.

O século XX foi palco de um verdadeiro big bang disciplinar. Novos campos científicos e demandas tecnológicas levaram ao surgimento de novas disciplinas, como é o caso da engenharia aeroespacial e da informática. Há também um processo de subdivisão de antigos campos de estudos, como a fragmentação da formação em história natural em duas áreas acadêmicas: a biologia e a geologia. E há, também, agregação de disciplinas antes separadas, formando novos campos, como a biofísica e as neurociências.

A história recente das ciências nos mostra que algumas interseções de disciplinas surgiram como instrumentos necessários para a solução de questões como a bioética. Esse novo campo é consequência da evolução das ciências da vida (particularmente da engenharia genética) e das questões epistemológicas e éticas levantadas por cientistas de diferentes áreas.

A Figura 1 apresenta, de modo esquemático, a situação de diferentes tipos de foco de pesquisa, do particular (muito sobre pouco) ao integrador (pouco sobre muito). A amplitude da visão de quem está muito próximo do objeto é, naturalmente, menor. No entanto, permite a percepção de detalhes. Já quem está mais afastado consegue ver o problema com maior abrangência (ainda que com menos detalhe) e integrar conhecimentos especializados.


Figura 1. Modelo ilustrativo dos diferentes focos de pesquisa, que caracterizam abordagens especialistas e integradoras diante de objetos complexos.
(Fonte: elaborado pelos autores)

 

A integração, como requisito ao enfrentamento de desafios complexos, está na ordem do dia. Isso não significa negar a relevância da especialização, mas apenas a necessária construção de pontes para a colaboração entre diferentes ciências. Já há, inclusive, propostas de organização de modos de integração sob a forma de uma disciplina em si, como é o caso da Integration and Implementation Science – I2S.[6]

 

Riscos e alertas como motores da necessária integração

O fato de termos chegado a novos patamares quanto às possibilidades de intervir sobre os diferentes modos de vida renova o desencanto e o alerta lançado por Jacob Bronowski (1978) [7] sobre as implicações da capacidade humana de destruir o seu próprio habitat, como ficou evidente após diversos desastres ambientais, entre eles, os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki (1945). Outros eventos posteriores também servem de advertência, dentre eles a explosão de um reator da usina nuclear de Chernobyl (1986), vazamentos de navios petroleiros em diferentes locais no mundo e, também no Brasil, como o que ocorreu na Baía de Guanabara (2000) e na Bacia de Campos (2011), bem como os rompimentos das barragens de rejeitos de mineração ocorridos nas últimas duas décadas em Nova Lima (2001), Miraí (2007), Itabirito (2014), Mariana (2015) e Brumadinho (2019).

O debate sobre os riscos de um cataclismo planetário decorrente da ação humana foi tema importante nos fóruns científicos da década de 1970, após a crise do petróleo, a disseminação do uso da energia nuclear e o surgimento da “questão ambiental”. As implicações do avanço das técnicas aplicadas aos sistemas de vida também é uma preocupação central, que levou à formulação do princípio da precaução, uma preocupação ética e filosófica que deve muito ao princípio da responsabilidade de Hans Jonas (1984).[8]

 

“A Universidade pode desempenhar um papel estruturante, ao criar espaços de interação e diálogo, não somente entre os diversos campos disciplinares (interdisciplinaridade) que formam sua organização departamental, como também reunindo atores de fora do mundo acadêmico (governo, organizações da sociedade e empresas): transdisciplinaridade.”

 

Alertas também foram incluídos nos escritos dos “autores rebeldes” que reagiram contra o estilo de vida que emergiu do industrialismo, particularmente nas três décadas do ciclo de crescimento econômico que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Consumismo, desperdício de energia e de matérias-primas, geração de montanhas de lixo, exclusão social de um número crescente de pessoas em todo o mundo, degradação ambiental, necessidade de destruir o capital – por meio de guerras – como condição para o crescimento econômico e a crescente obsolescência de conhecimentos, técnicas e bens, entre outros aspectos, provocou uma onda de reações contra o papel e a dinâmica da evolução da tecnociência. Um desses rebeldes, Ivan Illich (1973),[9] chamou a atenção para a inutilidade de acumular conhecimento desnecessário por meio da educação formal e para a importância do conhecimento que não é ensinado nas escolas.

Evocando o que chamou de economia budista, Ernst Schumacher (1973)[10] dirigiu sua análise para o fato de que a ciência e a tecnologia (C&T) seguiam uma via em que a humanidade passava a adotar soluções cada vez mais complexas para problemas muitas vezes simples, destruindo ou desprezando o acervo de conhecimentos tradicionais. O ambiente da Universidade foi palco desse tipo de debate durante a década de 1970 e parte da década de 1980. O conceito de tecnologia apropriada tornou-se uma questão que seduziu pesquisadores de diversas áreas. A noção de ecodesenvolvimento foi resultado tanto desse processo quanto da importante Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972.[11]

Edgar Morin deu uma importante contribuição ao debate, ao apresentar sua visão da complexidade. Sua prolífica produção acadêmica, em especial a série O Método, busca lançar novas bases epistemológicas para que a ciência possa restaurar sua capacidade de lidar com problemas complexos, de forma integrada, promovendo o diálogo entre as disciplinas[12]. O autor pontifica que tal processo deve ser precedido por uma reforma no sistema educacional.

Embora muitos autores rebeldes ou reformistas tenham vindo das ciências humanas, o debate não se restringiu a seus campos de ciência. Importantes ingredientes desse debate foram produzidos no âmbito das ciências exatas, da vida e da natureza.

Edward Wilson (1998)[13] evoca o conceito de consilience como uma forma de agregar e/ou integrar conhecimentos, ao vincular fatos e teorias relacionados, desenvolvidos em disciplinas, para produzir uma base comum de explicação de fenômenos. A obra lança uma sugestão de como (re)organizar as ciências da vida, com a biologia no centro. O desafio para a Universidade, entretanto, é muito mais amplo e exige outras centralidades.

Ilya Prigogine foi agraciado com o Prêmio Nobel de Química, em 1977, por sua contribuição no campo da termodinâmica. Mas foi além da sua zona de conforto disciplinar, ao publicar (com Isabelle Stengers) uma obra que postula a relevância de se transpor as barreiras disciplinares para a efetiva solução dos grandes desafios da humanidade.[14]

Os autores acima citados são apenas uma amostra do quanto a interdisciplinaridade é relevante para um novo arranjo da organização das ciências, em sintonia com as grandes demandas da sociedade, sem deixar de lado o papel da imaginação e da especialização. Interdisciplinaridade pode, então, ser definida como mais do que a mera interação. É, principalmente, o diálogo, a integração e a síntese de conhecimentos disciplinares. Isso demanda mais do que vontade. É preciso também métodos, arranjos institucionais, critérios de avaliação, mecanismos de apoio e recompensa, dentre outros.

 

“Muitas experiências recentes têm mostrado que o diálogo e a integração de especialistas de diferentes formações são possíveis; e são, também, cruciais para a resolução de problemas complexos.”

 

Na prática, muitas universidades já contam com espaços interdisciplinares de formação, pesquisa científica e desenvolvimento de tecnologias, onde convivem docentes de diferentes formações. Mas são casos isolados e há ainda muito a ser feito.

 

Interação com o mundo real (transdisciplinaridade)

Um dos efeitos da trajetória de especialização da Universidade em departamentos disciplinares é também a existência, ainda, de poucos espaços de interação com o chamado “mundo real”, ou seja, com o que acontece fora dos campi e para além dos setores naturais de interlocução com cada disciplina.

Vale assinalar que o mesmo processo de compartimentalização dos conhecimentos se reproduz no seio das estruturas de tomada de decisão pública, o que representa um desafio ao enfrentamento de demandas sociais complexas. A organização do aparelho de estado em setores temáticos, que se traduz em ministérios e instituições com responsabilidades também temáticas, acaba reproduzindo o mesmo tipo de isolamento (e muitas vezes até de conflitos) entre as missões de cada organismo. Assim, por exemplo, é frequente a constatação de que uma ação visando a promoção da agricultura ou a construção de uma infraestrutura exponha um conflito de missões com a também responsabilidade pública de proteger o meio ambiente. Em princípio, organismos de governo devem seguir prioridades e diretrizes de planejamento definidas em planos de ação integrada, mas o fato de que cada um opera segundo suas lógicas disciplinares dificulta tal coordenação.

Um departamento de Universidade pode desenvolver um conhecimento que, se aplicado (no sistema produtivo ou em ação governamental), tende a gerar a necessidade da produção de algum “antídoto científico” no âmbito de outro departamento. Analogamente, o ministério pode adotar uma política que implicará a necessidade de ação corretiva por outro ministério. São jogos de soma negativa, que conspiram contra o bom senso e a racionalidade. Nada mais razoável do que evitar ou reverter este tipo de prática. Nesse aspecto, a Universidade pode desempenhar um papel estruturante, ao criar espaços de interação e diálogo, não somente entre os diversos campos disciplinares (interdisciplinaridade) que formam sua organização departamental, como também reunindo atores de fora do mundo acadêmico (governo, organizações da sociedade e empresas): transdisciplinaridade. Trata-se, aqui, de portais que podem devolver à Universidade um protagonismo relevante na sociedade. Isso significa ampliar o ethos acadêmico, com a inclusão do compromisso com resultados e a responsabilidade com os efeitos do uso dos conhecimentos gerados. Vale assinalar que várias universidades já dispõem de estruturas institucionais de apoio à formação de empresas e ações voltadas a comunidades, na forma de incubadoras de projetos e de empresas, envolvendo iniciativas de estudantes e pesquisadores.

A Figura 2 mostra um esquema de organização da Universidade, com seus departamentos disciplinares, um espaço interdisciplinar (hub integrador), uma incubadora de projetos e de empresas e um portal de interface com o “mundo real” (pesquisas e ações transdisciplinares).


Figura 2. Modelo esquemático de organização da Universidade, com departamentos disciplinares, um centro integrador (hub interdisciplinar) e o portal para o mundo externo (transdisciplinaridade).
(Fonte: adaptado de Bursztyn e Drummond, 2013)[15]

 

A coconstrução de conhecimento…

O encadeamento da pesquisa básica com a aplicada, em sintonia com as demandas da sociedade, pressupõe um conjunto de procedimentos. Métodos, métricas, conceitos e metalinguagens precisam ser devidamente inteligíveis não apenas entre pesquisadores das diferentes disciplinas, mas também pelos demandadores/usuários do conhecimento gerado. Esse último grupo, na verdade, pode/deve ser também protagonista do processo de construção dos saberes.

A história das políticas públicas é rica em exemplos de “boas ideias” que fracassaram, pelo simples fato de que foram produzidas de cima para baixo (top down), sem a consideração da sua viabilidade e/ou aceitabilidade no “mundo real”. Frustrações nas ciências aplicadas, em experimentos de transferência de conhecimentos básicos a decisões executivas, têm levado à adoção do conceito de coconstrução.[16] Trata-se, aqui, de práticas em que saberes e expectativas de atores não acadêmicos (tanto representantes das populações, quanto tomadores de decisões públicas e privadas) são integrados em todas as etapas da produção científica: desde a identificação do problema, até a implementação das fórmulas de enfrentamento, no “mundo real”.

Há que se ter em conta, ao abordar o tema da coconstrução de conhecimento, que o sistema tradicional de validação e de recompensas pela produção científica ainda não está devidamente ajustado a práticas que fogem ao julgamento pelos pares e ao escrutínio de periódicos especializados. Publicar uma cartilha, com a divulgação dos conhecimentos científicos em linguagem acessível a não especialistas, não conta muito entre os critérios de avaliação das agências de fomento ou na pontuação para a progressão funcional no meio acadêmico. Mas pode contribuir bastante para a difusão de conhecimentos junto à população em geral. É nesse sentido que a transdisciplinaridade, praticada por meio de processos de coconstrução de conhecimentos, traz à tona o debate sobre ampliação dos mecanismos de julgamento por pares, introduzindo também critérios que considerem a “avaliação pelos ímpares”, ou seja, por atores de fora do mundo acadêmico.

 

Um exemplo de hub (interdisciplinar) e portal (transdisciplinar) possível

As evidências de que muitos dos grandes problemas atuais não se restringem às fronteiras nacionais tem levado a esforços no sentido de se definir agendas globais. Assim foi na construção da Agenda 21, assinada por 179 países, em 1992, no Rio de Janeiro. Foi, também, o foco dos 8 Objetivos do Milênio para 2015, da ONU, em 2000; e, mais recentemente, dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) para 2030. Enfrentar tais desafios requer unir esforços entre nações, entre setores das sociedades e entre especialistas.

Hubs acadêmicos têm surgido nas universidades, principalmente desde os anos 1990, com a criação de cursos interdisciplinares, que passaram (no caso do Brasil) a ser objeto de tratamento específico no sistema de credenciamento e avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a partir de 1999.[17] São espaços onde temas complexos, que envolvem a convergência de conhecimentos de vários campos científicos, são estudados e onde profissionais são formados. Mais recentemente, na Universidade, tem surgido experiências pioneiras de portais abertos ao mundo exterior. Não se trata, necessariamente, de estruturas físicas restritas a um determinado campus. Podem ser redes de pesquisadores de diversas instituições, com interfaces com atores envolvidos em ações executivas e aplicadas no mundo real.[18]

Um exemplo é a Rede Clima (Rede Brasileira de Estudos sobre Mudanças Climáticas Globais), estabelecida em 2007, que reúne profissionais de uma ampla gama de instituições, em diferentes localidades. Por meio de 15 sub-redes temáticas, a Rede Clima tem atuado em apoio à elaboração de estudos e documentos de referência do governo brasileiro, tanto ao nível nacional quanto internacional. Um deles foi a 4.ª Comunicação Nacional à Convenção Quadro das Nações Unidades sobre Mudanças Climáticas (4ª CN/UNFCCC), concluída em 2020. Ali, grandes temas, como os destacados nos 17 ODS da ONU, e que tem interface com as mudanças climáticas, foram tratados segundo um procedimento metodológico integrador, desenvolvido pela própria Rede Clima: a abordagem Nexus+.[19, 20] Apoiado sobre quatro grandes eixos de segurança (hídrica, energética, alimentar e socioecológica), o Nexus+ permitiu a elaboração da 4ª CN/UNFCCC a partir de uma abordagem que fugiu à cultura anterior e recorrente, de fragmentação das análises segundo as especialidades dos seus autores. O resultado foi uma sintonia fina com o universo de políticas públicas afins, abrindo portas para enfrentamentos mais efetivos dos problemas tratados. A Figura 3 apresenta os 17 ODS, em suas correspondências às quatro seguranças da abordagem Nexus+ e as contribuições das 15 sub-redes temáticas que compõem a Rede Clima.


Figura 3. Esquema que ilustra as relações entre os 17 ODS, os quatro eixos da abordagem Nexus+ e as sub-redes temáticas da Rede Clima.
(Fonte: elaborado pelos autores)

 

Conclusão

Mais do que o já complexo problema da fragmentação em disciplinas, que às vezes opõe os universos das ciências básicas e aplicadas, é preciso também enfrentar o fosso que separa “o mundo das ciências” do “mundo real”. Há notáveis experiências em curso pelo mundo afora.[21] É preciso abrir espaços para o diálogo entre as disciplinas e da academia com a sociedade. Sair da zona de conforto de falar apenas para os pares, abrindo-se também às demandas e ao escrutínio dos ímpares, é um desafio.

Muitas experiências recentes têm mostrado que o diálogo e a integração de especialistas de diferentes formações são possíveis; e são, também, cruciais para a resolução de problemas complexos. O descompasso entre a urgência da resolução dos grandes desafios da sociedade e, por outro lado, o relativamente lento processo de produção de conhecimentos básicos na fronteira da ciência é um aspecto a ser levado em conta. Mas há um acervo considerável de saberes disponíveis, que podem ser aplicados em prazos relativamente curtos. A produção de vacinas contra o covid-19 é um exemplo eloquente das possibilidades de encurtamento do gap entre os timings do mundo real e do mundo científico.

Universidades de ponta no panorama internacional já perceberam a relevância da criação de hubs interdisciplinares e portais transdisciplinares e isso tem produzido importantes resultados. No Brasil, esse tipo de prática e os necessários arranjos institucionais têm avançado, mas ainda encontram resistência em alguns ambientes marcadamente dominados pela cultura e pelas estruturas de decisão baseadas na disciplinaridade. É hora de repensar isso.


Referências
[1] Bursztyn, M. and Purushothaman, S. Interdisciplinary and transdisciplinary scholarship for a civilisation in distress: Questions for and from the Global South. Global Social Challenges Journal, Vol. 1, pp. 94-114, 2022. https://bristoluniversitypressdigital.com/gsc/view/journals/gscj/1/1/article-p94.xml
[2] NAS. Facilitating Interdisciplinary Research. Committee on Facilitating Interdisciplinary Research, National Academy of Sciences, National Academy of Engineering, Institute of Medicine, 1–332. 2004. http://www.nap.edu/catalog/11153.html
[3] Kates, R. W. (Editor). Readings in Sustainability Science and Technology. Harvard CID Working Paper No. 213, 2010.
http://www.hks.harvard.edu/centers/cid/publications/faculty-working-papers/cid-working-paper-no.-213
[4] Klein, J. T. Interdisciplinarity: History, Theory & Practice. Wayne State University Press. Detroit 1990.
[5] Max-Neef, M. A. Foundations of transdisciplinarity. Ecological Economics, num. 53, pp. 5-16, 2005. www.elsevier.com/locate/ecolecon
[6] Bammer, G. Disciplining Interdisciplinarity Integration and Implementation Sciences for Researching Complex Real-World Problems. Australian National University Press, Canberra, 2013. https://library.oapen.org/viewer/web/viewer.html?file=/bitstream/handle/20.500.12657/33556/459901.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[7] Bronowski, Jacob. The common sense of science, Harvard University Press, Cambridge – MA, 1978.
[8] Jonas, H. The Imperative of Responsibility: In Search of Ethics for the Technological Age. University of Chicago Press, Chicago, 1984.
[9] Illich, I. Celebration of awareness: a call for institutional revolution. Penguin Education, Harmondsworth, UK, 1973.
[10] Schumacher, E.F. Small is beautiful: economics as if people mattered. Harper & Row, New York, 1973.
[11] Sachs, I. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. Vértice. São Paulo, 1986.
[12] Morin, E. O Método – Vida da Vida. Ed. Europa-América, Cintra – Portugal, 1980.
[13] Wilson, E. O. Consilience: the unity of knowledge. Knopf, New York, 1998.
[14] Prigogine, I.; Stengers, I. O Fim das Certezas – Tempo, Caos e as Leis da Natureza. Ed. UNESP, São Paulo, 1996.
[15] Bursztyn, M.; Drummond, J. Sustainability science and the university: pitfalls and bridges to interdisciplinarity. Environmental Education Research, v. 20, p. 1-20, 2013. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13504622.2013.780587
[16] Djenontin, I. N. S.; Meadow, A. M. The art of co-production of knowledge in environmental sciences and management: lessons from international practice. Environmental Management, 61(6), 885–903, 2018. https://doi.org/10.1007/s00267-018-1028-3
[17] Litre, G., Lindoso, D. and Bursztyn, M. A long and winding road towards institutionalizing interdisciplinarity: lessons from environmental and sustainability science programs in Brazil, in B. Vienni Baptista and J.T. Klein (eds) Institutionalizing Interdisciplinarity and Transdisciplinarity: Collaboration Across Cultures and Communities, Abingdon: Routledge, pp 57–71, 2022.
[18] Mertens, F., Távora, R., Santandreu, A., Luján, A., Arroyo, R., & Saint-Charles, J. (2022). Participação e transdisciplinaridade em Ecosaúde: a perspectiva da análise de redes sociais. Saúde e Sociedade, 31(3), 1–12. https://doi.org/10.1590/s0104-12902022190903en
[19] Araujo, M. ; Ometto, J.; Rodrigues-Filho, S.; Bursztyn, M. ; Lindoso, D.; Litre, G.; Gaivizzo, L. ; Ferreira, J. ; Reis, R. ; Assad, E. . The socio-ecological Nexus+ approach used by the Brazilian Research Network on Global Climate Change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v. 39, p. 62-70, 2019.
[20] Viggiani Coutinho, S. M.; Santos, D. V; Bursztyn, M.; Marengo, J. A.; Rodrigues-Filho, S.a; Lucena, A. F. P. ; Rodriguez, D. A.; MAIA, S. M. F.. The Nexus+ approach applied to studies of Impacts, vulnerability and adaptation to climate change in Brazil. Sustainability in Debate, v. 11, num. 3, pp. 24-56, 2020. doi:10.18472/SustDeb.v11n3.2020.33514
[21] Bammer, G., Browne, C.A., Ballard, C. et al. Setting parameters for developing undergraduate expertise in transdisciplinary problem solving at a university-wide scale: a case study. Humanit Soc Sci Commun, vol. 10 – 208, 2023. https://doi.org/10.1057/s41599-023-01709-8

Capa. Construção de pontes entre ciência e sociedade é fundamental para redução das desigualdades e manutenção do meio ambiente.
(Foto por Marcel Bursztyn)

BURSZTYN, Marcel  e  TAVORA, Renata. Sustentabilidade e redução das vulnerabilidades: a necessária construção de pontes entre as ciências e a sociedade. Cienc. Cult. [online]. 2023, vol.75, n.2 [citado  2023-10-16], pp.01-08. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252023000200014&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0009-6725.  http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230030.

 

Marcel Bursztyn

Marcel Bursztyn

Marcel Bursztyn é socioeconomista, professor titular (aposentado) no Centro de Desenvolvimento sustentável da Universidade de Brasília (UnB). Foi presidente da Capes e da FAP-DF. Coordena o INCT – Observatório das Dinâmicas Socioambientais.
Marcel Bursztyn é socioeconomista, professor titular (aposentado) no Centro de Desenvolvimento sustentável da Universidade de Brasília (UnB). Foi presidente da Capes e da FAP-DF. Coordena o INCT – Observatório das Dinâmicas Socioambientais.
Renata Távora é bióloga, doutora em Desenvolvimento Sustentável. É pesquisadora colaboradora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) e coordena o componente de pesquisa “Governança e Políticas Públicas” do INCT – Observatório das Dinâmicas Socioambientais.
2 comments
  1. Parabéns por esse excelente artigo, claro e de leitura amigável, que confirma que não podemos solucionar problemas complexos com soluções simplistas ou disciplinares. Como o Prof. Bursztyn e a Dra. Távora o explicam, a interdisciplinaridade (diálogo entre diferentes disciplinas) e a transdisciplinaridade (diálogo entre saberes acadêmicos e não acadêmicos) são abordagens vitais para enfrentar os desafios do complexo sistema das mudanças socioambientais globais. E requerem humildade e apertura de espíritu da parte de todas as partes envolvidas.

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