Confira entrevista com José Vicente Tavares dos Santos, professor da UFRGS e editor do novo número da Ciência & Cultura
A democracia sofreu retrocessos nos últimos anos na América Latina, e hoje são poucos os países que podem ser considerados plenamente democráticos na região. Segundo Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA Internacional), nos últimos 15 anos, a região perdeu nove democracias, que se tornaram regimes autoritários ou híbridos (países cujos governos foram eleitos democraticamente, mas que exibem distorções no exercício do poder). “O que eu vejo é que realmente há uma nova conjuntura política na qual a democracia pode ser ameaçada e também na qual os valores conservadores estão exacerbados”, pontua José Vicente Tavares dos Santos, professor dos Programas de Pós-graduação em Segurança Cidadã, Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e editor deste número da Ciência & Cultura. Para o professor, essa nova configuração da sociedade exige uma nova cultura política, que tem que levar em conta os conflitos sociais. Ele ainda enfatiza a disseminação – e banalização – da violência, que assume outras formas e atinge principalmente os mais vulneráveis. “Trabalhar por uma cultura da paz faz parte da necessidade de uma nova cultura política na sociedade brasileira”, afirma. José Vicente dos Santos também pontua que a integração entre os países da América Latina é essencial para buscar soluções para esses conflitos, fortalecendo as democracias, e para buscar uma maior participação no desenvolvimento global – e nisso, a ciência tem papel fundamental. “Nós precisamos ser ativos partícipes para que possamos realmente não só auxiliar na integração latino-americana, mas também participar de modo soberano nesse mundo de multilateralismo que está se desenhando hoje em dia”.
Leia a entrevista completa:
Ciência & Cultura – Como avalia o atual momento político da América Latina, com o avanço de setores conservadores e de uma direita mais extremista?
José Vicente Tavares dos Santos – Se, por um lado, houve os chamados governos progressistas no início dos anos 2000, com Lula (Brasil), Chávez (Venezuela), Kirchner (Argentina) e outros, o predomínio atual é de governos conservadores e neoliberais. O que a gente percebe agora, e que antes não era muito evidente, é que existe uma parte da sociedade que podemos chamar conservadora, neoliberal, e até mesmo de extrema-direita. Então acredito que o atual momento da América Latina mostra, por um lado, um avanço de governos progressistas, que vão falar diretamente com os trabalhadores, especialmente essa nova categoria, que são os trabalhadores por aplicativos, trabalhadores por plataforma, e que não estão ainda sindicalizados. Esses trabalhadores enfrentam extremas dificuldades de trabalho, com jornadas de 10 a 12 horas. Por outro lado, há toda uma ideologia do neoliberalismo que vai identificar essas pessoas como empreendedores, e não trabalhadores. E essa figura tem muito apelo: “Eu não tenho patrão, eu que organizo a minha jornada de trabalho etc. Mas, na realidade, isso só mascara a precariedade das condições de trabalho. Essas pessoas ficam desiludidas com essa realidade, com a falta de segurança, com a falta de resposta do governo, e acabam abraçando o discurso conservador. Então, temos todo um panorama da sociedade muito mais fragmentado e muito além dos partidos e sindicatos do início dos anos 2000.
“O que esses países violentos na América Latina têm em comum? Um modelo de polícia repressivo, punitivo, racista, discriminatório.”
C&C – Atualmente, quais as maiores ameaças à democracia na América Latina? Por quê?
JVTS – O que eu vejo é que realmente há uma nova conjuntura política na qual a democracia pode ser ameaçada e na qual os valores conservadores estão exacerbados. Toda a discussão sobre os direitos dos homossexuais e das mulheres, a descriminalização do aborto, o respeito aos direitos das terras indígenas, a sustentabilidade, por exemplo, tudo isso entra em questão no contexto da América Latina. Todavia, esse contexto acabou efervescente, ajudando a criar ameaças às democracias. E boa parte da população apoiou atitudes mais extremas. Deste modo, a atual configuração da sociedade exige uma nova cultura política, inclusive das forças progressistas, que tem que levar em conta novos conflitos sociais. Nem sempre a teoria política e sociológica está dando conta disso. A tolerância, a igualdade, a não discriminação, o respeito às diversidades, às orientações sexuais, a sustentabiliade etc., como isso pode entrar na cultura política? Acho que esse é o grande desafio, político e cultural na América Latina.
C&C – Também vemos um aumento da violência – e o surgimento de um novo tipo de violência, através de ataques por meio das mídias sociais. Por que isso se dá no atual cenário?
JVTS – Os atos antidemocráticos foram violentos. Vemos violências de membros das polícias diariamente. Vemos violência online, nas diversas plataformas. Há muitos anos, eu escrevi um artigo chamado “A cidadania dilacerada”, utilizando a palavra dilacerado do latim que significa “cortar a carne”. Infelizmente isso é de uma atualidade brutal. Nós estamos em um dos países mais violentos do mundo. O Brasil detém o terceiro maior índice de homicídios na América do Sul, atrás da Venezuela e da Colômbia, segundo um relatório da Agência da ONU para Drogas e Crime. E o que esses países violentos na América Latina têm em comum? Um modelo de polícia repressivo, punitivo, racista, discriminatório. Além da presença das organizações criminais e das milicias ou paramilitares. Mas há outras formas de violência que estão presentes, como o abuso contra as crianças, a violência contra os idosos, a escravidão dissimulada, o racismo, a violência contra as mulheres. O patamar de casos de estupro no Brasil é da ordem de 822 mil casos anuais, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esses dados são assustadores. Isso mostra realmente a brutalidade da violência interpessoal e no grupo doméstico. As estatísticas demonstram que a maior parte da violência acontece no ambiente doméstico. Ou seja, a violência é uma norma social: ela não é mais algo anormal, passa a ser vista como algo normal. Essa disseminação de violência na sociedade exige um trabalho, por um lado, evidentemente, de investigação criminal; por outro, mostra a necessidade de um trabalho cultural contra a violência e pela cultura da paz. Trabalhar por uma cultura da paz faz parte da necessidade de uma nova cultura política na sociedade latino-americana.
“O multilateralismo latino-americano é fundamental para que a gente possa integrar as economias e depois, inclusive, fazer acordos mundiais.”
C&C – No seu ponto de vista, acredita que união da América Latina contribuiria para a solução dessas questões?
JVTS – O processo de integração ainda é um processo difícil, por vários fatores, econômicos e culturais. Temos várias iniciativas e parceiros dos quais somos mais próximos, mas ainda há muito a ser feito. Precisamos avançar porque o multilateralismo latino-americano é fundamental para que se possa integrar as economias e depois, inclusive, fazer acordos mundiais. E pela ciência também temos muito a colaborar. Basta o exemplo da Amazônia, que é compartilhada por vários países (Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname). A união desses países levaria a um avanço significativo nas pesquisas e na preservação da região – e isso teria um impacto global. Essa integração ainda está a ser feita, e as universidades e os cientistas têm um papel fundamental. A cooperação entre associações científicas é fundamental, daí o papel da SBPC. Se conseguíssemos essa maior integração, teríamos um maior impacto mundial.
C&C – Quão perto estamos dessa integração e quais seriam seus impactos – para a região e para o mundo?
JVTS – Entre os vários desafios está o fato de a América Latina não permanecer apenas na situação de um polo exportador, seja de produtos agrícolas, seja de minérios. Isso é importante porque faz parte da economia de vários países. Porém, é preciso entrar na chamada quarta revolução industrial (que engloba algumas tecnologias para automação e troca de dados, utiliza conceitos de sistemas ciber-físicos, internet das coisas e computação em nuvem). Não só para criar empregos, mas para poder participar efetivamente dessa revolução. Essa indústria digital, ou indústria 4.0, é fundamental para não ficarmos numa posição de dependência. É preciso digitalizar inclusive a educação, não apenas tendo acesso nas escolas, mas abrindo para essa discussão essas possibilidades. Inclusive como modo de não ficar à mercê de fake news, à mercê da difusão de falsas informações ou informações distorcidas, que o mundo digital propicia. Eu acho que esse é um grande desafio. Nós precisamos ser ativos partícipes para podermos realmente não só auxiliar na integração latino-americana, mas também participar de modo soberano nesse mundo de multilateralismo que está se desenhando hoje em dia. Isso é fundamental para podermos participar da grande transformação do mundo contemporâneo e possamos, com a nova era da indústria digital, propor uma nova cultura política baseada na tolerância, no respeito à diversidade, no respeito à igualdade de gênero, na sustentabilidade. Enfim, pensar num mundo de paz para todos e todas.