Confira entrevista com Luma Nogueira de Andrade, diretora do Instituto de Humanidades e Letras da UNILAB
Luma Nogueira de Andrade, a primeira travesti a obter o título de doutora no Brasil, acende um foco sobre a realidade enfrentada por minorias no campo da educação. Embora sua nomeação tenha sido um marco, a pesquisadora expressa uma mistura de alegria e preocupação com a situação educacional de travestis e outras minorias. Ela destaca que muitos travestis sequer conseguem concluir o ensino fundamental, expondo uma realidade que atinge qualquer pessoa que não se enquadre nos padrões culturais hegemônicos da sociedade. “Apesar de toda a voz que nós temos tido nos últimos anos, ainda existe muita resistência em aceitar a diversidade, em especial de uma pessoa travesti e transexual, dentro da universidade”, afirma a professora e diretora do no Instituto de Humanidades e nos Programas de Pós-Graduação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Nesse contexto, Luma Andrade critica a cultura patriarcal e a rigidez dos padrões de gênero. Ela aponta que a escola, como uma instituição da sociedade disciplinar, muitas vezes reproduz essa lógica, resultando em violência contra travestis, homossexuais, lésbicas, gays, negros, índios e outros que não se enquadram nos padrões. Para ela, é urgente que se compreenda o sexo e o gênero como construções sociais e não como determinações biológicas, destacando o papel fundamental da escola nessa transformação. “Nós precisamos humanizar nossa prática e obter as informações necessárias, mas também agir para modificar aquela realidade, que é cruel”, afirma.
Confira a entrevista!
Ciência & Cultura – Por que ainda hoje, em pleno ano 2023, a academia permanece dominada por cientistas brancos, homens, héteros, cis?
Luma Nogueira de Andrade – Por conta do contexto histórico de uma sociedade que passou por um processo de colonização, o que traz em seu arcabouço a questão do machismo, do racismo e de todo esse preconceito com determinadas populações. Dentro desse contexto da história do Brasil, esses ideais são reproduzidos de geração em geração. Obviamente isso já tem se modificado um pouco no decorrer do tempo, mas ainda temos resquícios muito fortes desse histórico. Temos dificuldade de chegar nesses espaços, tanto a população negra e os povos tradicionais, como a população LGBTQIA+, as pessoas com deficiência e outros. Enfim, isso foi algo construído e usado como um processo de exclusão desses povos. O que observamos é que todo o fazer da sociedade está atrelado a determinados corpos privilegiados, que são os corpos do homem branco com determinadas condições financeiras que determina o que pode e o que não pode dentro sociedade. Então, dentro do contexto da história do Brasil, quem detém o poder são essas pessoas com um determinado estereótipo e uma determinada condição financeira, que estabelecem as regras do jogo, que são obviamente regras para eles permanecerem no topo e excluir tudo aquilo que não faz parte da sua existência.
C&C – Como mudar esse cenário para dar mais visibilidade (e mais lugar) a outros grupos?
LNA– A necessidade de entrar nesses contextos de tomada de decisão e de poder é exatamente para poder levar um outro olhar, uma outra epistemologia, que é completamente diferente. Então entrar nesse sistema, inclusive na produção de conhecimento na ciência, é fundamental para levar exatamente esse novo olhar, criando possibilidades de cidadania para essas resistências que são diferentes. Aí não é uma questão de privilégio, mas é uma questão de reparação histórica. Obviamente tem que ser pessoas com consciência, porque não basta só ter a singularidade: tem que ter a consciência política do lugar histórico dos seus povos para poder agir de forma que modifique o fazer dentro desse sistema e produzir a inclusão dessas pessoas dentro de um olhar de cidadania, de respeito, e de garantia de direitos.
“Eu sabia que o meu sucesso era necessário para abrir portas para outras pessoas travestis e transexuais que também tinham a capacidade de poder ocupar esses espaços e mudar a ótica do sistema, produzindo novas epistemologias.”
C&C – Por que é importante a presença dessa diversidade (que inclui povos originários, negros, população LGBTQIA+) na universidade? Como essa diversidade pode influenciar o fazer científico?
LNA – Nós estamos avançando dentro deste olhar com a entrada desses povos dentro da universidade. Isso tem produzido saberes utilizados para poder modificar o sistema. As produções feitas por pessoas negras, pela população LGBTQIA+, etc. produz uma quebra de paradigma dentro da sociedade e vai ser utilizado como elementos para produção de ações que vão promover a inserção dessas pessoas. Um exemplo é a criação do nome social para pessoas trans. Eu fui uma das convidadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) para fazer a defesa e a fundamentação utilizada foi exatamente a produção que fiz dentro da academia. Então é importante essas pessoas estarem nesses espaços para poder fazer suas produções, mas também é necessário existir uma possibilidade da existência desses corpos dentro das universidades. O próprio estado criou uma sistemática para impedir essas pessoas de terem acesso ao ensino superior. Isso aconteceu com as mulheres, com os negros e negras, e inclusive com a população LGBTQIA+. Inclusive existiram decretos que impossibilitava presença desses corpos homossexuais e transexuais dentro da universidade. O Estado criou estratégias para impossibilitar a existência dessas populações dentro da universidade porque essas universidades foram pensadas para a elite, que estava criando as normas e obviamente não agiriam para poder incluir. Agora, com o contexto do avanço da sociedade, o processo de diálogo e as produções das novas epistemologias se percebe a necessidade dessa mudança.
C&C – O acesso à educação de pessoas pertencentes à comunidade LGBTQIA+ ainda é muito difícil no Brasil. Como as políticas de ação afirmativa contribuem para melhorar esse cenário – e como poderiam contribuir ainda mais?
LNA – Os próprios movimentos se organizaram para lutar por esse espaço dentro dessa universidade e dessa sociedade. E o que alcançamos é resultado dessa luta, que não é dada por nenhum gestor. É uma luta de todos os movimentos que abriu a possibilidade da questão das cotas para o acesso à universidade para esses corpos, que inclusive têm um grande potencial de produzir epistemologias que fortaleçam a existência de suas singularidades nas universidades e na sociedade como um todo. Então esses corpos chegam à universidade, e chegam através das políticas afirmativas. E isso é muito criticado por uma ala conservadora que pensa que a universidade não é para esses corpos, o que é uma forma de manter o sistema da forma tradicional. Porém, as lutas dos movimentos produziram aberturas para a possibilidade do acesso através das cotas e essa população, quando entra nas universidades, mostra que tem capacidade – ao contrário de um discurso que tenta recuar os direitos conquistados com a ideia de que essa diversidade dentro dos espaços universitários diminuiria a qualidade dessas instituições. Isso não é verídico. Nós temos dados de estudos que trazem justamente o contrário: os resultados produzidos por pessoas que entram através do sistema de cotas são excelentes e não deixam nada a desejar. E aí vem outra luta, pois não basta só o acesso. Tem que ter política para essas pessoas se manterem tanto na graduação quanto na pós-graduação. E para isso são necessários recursos, porque essas pessoas necessitam de habitação, necessitam de alimentação, necessitam de aquisição de materiais para estudos para poder conseguir concluir o seu curso com sucesso.
“Nós iniciamos uma história de quebra de tabus que começa a dialogar sobre essa singularidade e a importância da inclusão dessa diversidade e a contribuição dessa diversidade para universidade.”
C&C – Como a sua presença como professora trans em uma universidade pode contribuir para que outras mulheres trans trilhem o mesmo caminho?
Não é nada fácil ser a primeira. Eu sou a primeira doutora travesti do país e não foi nada fácil chegar ao doutorado. Para chegar ao doutorado, o primeiro obstáculo que tive (estamos falando de outra época) foi exatamente que a minha proposta de pesquisa, que era estudar os travestis nas escolas, fosse vista como algo científico. Muitos doutores sêniores não compreendiam que essa pesquisa era algo importante e científico. Eles desclassificavam como algo que fosse de militância – como se separar as nossas vidas de uma militância fosse possível, porque todos nós somos militância de algo que acreditamos, produzimos e fazemos nas relações sociais. Enfim, não foi nada fácil ultrapassar essa barreira e mostrar a importância do estudo e que era um estudo científico. Foi um momento muito difícil porque foi a primeira produção sobre travestis nas escolas que chegava em uma universidade, então não teve muito acolhimento. Mas na resistência nós abrimos espaços. Eu sabia que o meu sucesso era necessário para abrir portas para outras pessoas travestis e transexuais que também tinham a capacidade de poder ocupar esses espaços e mudar a ótica do sistema, produzindo novas epistemologias. A obra realmente entrou nessa seara de muita batalha para poder se afirmar, mas conseguiu o sucesso desejado que era exatamente discutir as condições de uma pessoa travesti dentro do espaço da escola. E isso faz parte, sim, de uma produção científica das ciências humanas, porque são seres humanos que estavam sendo renegados pela sociedade e pelo sistema educacional. Quando produzimos esse material que traz essa nova epistemologia, ensinamos às travestis que estão vivendo só na prostituição, que estão tentando sobreviver dentro da escola, que elas podem ocupar outros espaços. Minha obra sequer foi indicada para o prêmio Capes de teses porque não era considerada uma produção científica. Mas depois se configurou um clássico fundamental para dar esse olhar e contribuir com políticas públicas. Então é uma mudança de paradigma.
C&C – Agora, falando um pouco sobre sua pesquisa, porque a presença LGBTQIA+ na escola ainda é um campo de batalha? Quais são os maiores desafios para a educação ser mais inclusiva para essas pessoas?
LNA – Já realizei várias pesquisas focadas na questão das pessoas travestis e transexuais e população LGBTQIA+. Tem uma certa pressão para eu realizar estudos desse tipo. No meu pós-doutorado, que foi feito agora em 2020, estudei justamente as travestis que saíram do Brasil para morar em Portugal. E isso foi bem na época da pandemia. Eu encontrei essas travestis da África, de Portugal e do Brasil e acabei tendo essa esse contato com elas na rua. Muitas delas estava morando nas ruas e com minha atuação como como pesquisadora passaram para abrigos. Então isso mostra a importância de uma pesquisa-ação. Porque não basta apenas pesquisar os copos e depois ir embora. Nós pesquisadores e pesquisadores não podemos utilizar as pessoas como objetos em busca de informações e de saberes e largar essas pessoas. Nós precisamos humanizar nossa prática e obter as informações necessárias, mas também agir para modificar aquela realidade, que é cruel. Quando eu fui pesquisar as travestis que estavam vivendo em Portugal na pandemia eu pude verificar essas condições precárias e dar visibilidade para essa questão. Isso rendeu inclusive matérias na TV. Mas não é só dar visibilidade, também tem que contribuir para a modificação daquela realidade. Se nós podemos com nossa dinâmica melhorar a qualidade de vida daquelas pessoas, e até mudar aquela realidade, por que não atuar? Por isso é fundamental deixar de ver as pessoas como objeto para ver as pessoas como de fato seres humanos. E entender que não basta coletar informação, mas que é preciso modificar aquela realidade. Outra pesquisa que estou desenvolvendo é um estudo in loco sobre quem são, como vivem, como estão resistindo as travestis e transexuais que estão dentro das universidades. Olhar para isso contribui para saber o que pode ser feito para essas populações. Nós necessitamos de dados, pois sem dados não tem como agir. Então acho que essa é uma pesquisa de grande relevância. Outra atuação que estou desenvolvendo é uma atividade de extensão que busca aproximar a universidade dos movimentos sociais. Porque é uma via de mão dupla, um precisa colaborar com o outro para podermos ter como protagonista dessas relações a própria população LGBTQIA+. Então esses movimentos têm que estar presente, fortalecendo esses jovens as essas jovens que estão lá.
“A universidade tem que estar preparada para essa sociedade em transformação, tem que produzir profissionais qualificados para o mercado de trabalho e que respeite as pessoas nas relações interpessoais.”
C&C – Quais os desafios dessas pessoas ocuparem esses espaços, especialmente o espaço acadêmico?
LNA – Existe a tentativa desse silenciamento, dessa desqualificação, como se não existisse uma produção desse sentido porque existe um preconceito também com quem faz pela sua singularidade. Temos que superar isso porque essas pessoas são capazes de ocupar esses espaços. Quando eu passei a ocupar esses espaços, quando eu entrei na universidade e me tornei a primeira travesti professora em uma universidade desse país, eu passei a fazer palestras para o Brasil inteiro, e até em outros países, para poder apresentar minha produção. Eu era vista como algo a ser observado. As pessoas se questionavam: como se comporta uma pessoa travesti em uma palestra? O que ela vai falar? Inclusive eu não falava sobre a minha história de vida nesse período porque eu entendia que não daria credibilidade. Assim, eu passei a relatar exatamente o que eu tinha escrito, o que eu tinha produzido enquanto ciência. Isso foi muito importante para mostrar que realmente eu tinha feito um doutorado, eu tinha feito uma produção científica de qualidade, que tinha sentido e tinha relevância social. Isso foi ótimo porque as pessoas começar a avaliar a importância dessas populações ocuparem esses lugares. Posteriormente nós tivemos mais uma travesti que conseguiu adentrar esse espaço de doutora e se tornar professora na Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Megg Rayara. Aí outras e outros vem conseguindo isso. Então, as pessoas começaram a observar essas conquistas e muito tempo depois começam a entrar novas travestis e transexuais em doutorados. Nós iniciamos uma história de quebra de tabus que começa a dialogar sobre essa singularidade e a importância da inclusão dessa diversidade e a contribuição dessa diversidade para universidade. Porque a nossa presença dentro da universidade em qualquer lugar que nós estejamos é pedagógica, os nossos corpos ensinam o tempo todo, e isso modifica o espaço e a dinâmica.
C&C – E como as universidades estão acolhendo essas mudanças?
LNA – Quando se trata de uma pessoa que tomou consciência política, o sistema muda. Quando eu entrei na universidade como professora, uma das radicais contribuições que fiz participar da construção do Projeto Pedagógico do Curso (PPC). Isso é realmente relevante, porque trata do que vamos levar para formação dos futuros professores e professoras. Então trazer novas disciplinas, como educação, gênero e sexualidade, para o curso de pedagogia de forma obrigatória é uma mudança no sistema, porque o sistema não vê isso como importante. Porque nós não podemos continuar formando profissionais que vão atuar nesse mercado dizendo quem é que eles vão atender, dizendo “só vou atender pessoas brancas” ou “só vou atender pessoas heterossexuais”. A universidade tem que estar preparada para essa sociedade em transformação, tem que produzir profissionais qualificados para o mercado de trabalho e que respeite as pessoas nas relações interpessoais. Apesar de toda a voz que nós temos tido nos últimos anos, ainda existe muita resistência em aceitar a diversidade, em especial de uma pessoa travesti e transexual, dentro da universidade. Hoje eu sou diretora de um instituto, mas continuo sofrendo discriminação e preconceito. Inclusive no período eleitoral para a diretoria, eu sofri ataques na tentativa de me retirar do processo. Mesmo após eu ser eleita pelo maior instituto da UNILAB, eu acabei sofrendo represálias. Todos os servidores foram removidos pela reitoria e não houve transição entre uma gestão e outra. Ainda hoje estou sofrendo vários ataques na tentativa de sucateamento do Instituto que eu dirijo. E por eu denunciar essa situação publicamente, o que acabou saindo na mídia nacional, o reitor da instituição entrou com uma notícia-crime na Justiça Federal contra mim por calúnia e difamação. Felizmente, o juiz entendeu a situação e rejeitou a notícia-crime. Isso é uma evidência de como ocorre o tratamento das pessoas travestis e transexuais, principalmente quando ousam ocupar espaços chancelados pelas elites, que não aceitam a nossa existência dentro desses lugares de tomada de decisão.
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