Bernardete Gatti capa

“Nós temos lacunas enormes, tanto no ensino fundamental quanto no médio”

Confira entrevista com a educadora Bernardete Angelina Gatti, pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas

 

A educadora Bernardete Angelina Gatti, membro destacado da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) e da Academia Paulista de Educação, é uma figura central no cenário da formação de professores no país. Nascida em Matão (SP), sua trajetória acadêmica e profissional é marcada por uma busca incessante pelo conhecimento, iniciada na década de 1960. Graduada em Pedagogia pela USP em 1962, Bernardete Gatti complementou sua formação com estudos parciais na licenciatura em Matemática na mesma universidade. No entanto, foi durante seu doutorado em Psicologia na Université de Paris VII, em 1972, e seus pós-doutorados no Canadá e nos Estados Unidos, que ela moldou sua visão inovadora sobre a formação de professores. Ao retornar ao Brasil, iniciou sua carreira de pesquisadora na Fundação Carlos Chagas (FCC), destacando-se por coordenar estudos pioneiros sobre a formação de professores. “É muito questionável a formação nas licenciaturas, que nem sempre formam um profissional que tem condições de falar com crianças de 10, 11, 12 anos. Então nós temos aí uma lacuna formativa muito grande”, pontua. Em entrevista exclusiva para a revista Ciência & Cultura, Bernardete Gatti discute os obstáculos enfrentados na qualificação dos professores atuantes no ensino fundamental e médio e os desafios para os pesquisadores – especialmente as pesquisadoras mulheres, que têm que equilibrar em uma frágil balança a vida profissional e familiar. “A pesquisa não tira férias – nem a maternidade”, enfatiza. A pesquisadora também aborda as dificuldades das crianças e jovens e a necessidade de uma política educacional nacional mais integrada e sistêmica. “Nós temos que ter um planejamento educacional sistêmico porque não existe educação superior sem boa educação básica”, afirma.

Confira a entrevista completa!

 

Ciência & Cultura – No contexto da Educação, como você percebe a evolução da presença e contribuição das mulheres ao longo do tempo? Quais foram os avanços e desafios enfrentados por elas na área educacional?

Bernardete Angelina Gatti – Se você olhar, por exemplo, na educação básica, os cargos mais altos são ocupados por homens. Isso é notado inclusive no Ministério da Educação (MEC), que teve só uma mulher no comando. Então, os cargos de liderança são, na grande maioria, de homens. Nas secretarias de educação dos municípios agora estão aparecendo mais mulheres, mas ainda assim há um predomínio de homens. Em relação à pesquisa educacional, acredito que há um equilíbrio entre homens e mulheres. Mesmo assim, creio que a questão associada às mulheres tem muito a ver com a sua dedicação à família, às crianças. Eu pude observar isso enquanto coordenadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas (FCC). Muitas mulheres começavam como pesquisadoras, mas não permaneciam porque entravam na fase de escolher ter filhos, depois criar os filhos. E os cuidados com as crianças fica muito a cargo da mulher. Aí elas desistiam da carreira. Claro que algumas permaneceram, mas há sempre esse complicador. Porque a pesquisa não tira férias – nem a maternidade. Muitas vezes os pesquisadores vão a campo para coleta de dados, observação, entrevistas, etc. E é frequente que essas localidades sejam longe do domicílio dos pesquisadores, o que dificulta para as mulheres que têm filhos, escola, cuidados, horários, etc. Quando você tem financiamento de pesquisa, você tem prazos para entrega de relatórios, e eu conheço pesquisadoras e pesquisadores que varam a noite para concluir suas análises. Há casos em que a gente precisa até voltar aos nossos interlocutores, aos participantes da pesquisa. Enfim, é uma dedicação que muitas vezes se torna incompatível com a maternidade. Assim, é diferente para e mulher do que para o homem. Na sociedade brasileira nós conseguimos caminhar muito: há esposos que ajudam, ficam com os filhos, compreendem que há etapas da vida profissional da mulher que precisam de mais atenção. Mas ainda existem muitos obstáculos e muita incompreensão. Eu mesma fui testemunha de muitos divórcios, porque há uma situação de cobrança do homem que ainda acredita que a mulher tem certas obrigações em casa. Então essa questão da relação de gênero, ela não está ainda totalmente superada.

 

“Precisamos relativizar, pensando cada região, cada necessidade. Realmente discriminando contextos e situações para entender bem e para fazer as ações afirmativas.”

 

C&C – A diversidade é crucial para o avanço do ensino. Como a inclusão de diferentes perspectivas, incluindo a presença feminina, pode enriquecer e aprimorar o panorama educacional no Brasil?

BAG – Na minha percepção, e pelos dados que eu tenho do professorado, essa diversidade varia de região para região. Existem regiões em que há uma diversidade maior até de nível socioeconômico – porque o nível socioeconômico menos vantajoso atinge justamente essas etnias. Eu acredito que é preciso haver mais estímulo em regiões onde, por exemplo, há um predomínio dessas etnias. Por exemplo, na região Norte, a etnia indígena é muito bem representada. Então precisamos fazer um esforço no sentido de fornecer apoios diversificados para que mais indígenas tenham acesso à pós-graduação e se candidatem a uma carreira de pesquisador, de professor de nível superior e instituições públicas, onde também o número de negros e pardos não é correspondente à sua proporção na população. Como pesquisadora, acredito que essa proporção é diferente em diferentes regiões. E temos que considerar isso porque o dado geral pode camuflar as situações. Então precisamos relativizar, pensando cada região, cada necessidade. Realmente discriminando contextos e situações para entender bem e para fazer as ações afirmativas. Você tem que ter essas distinções para saber onde vai atuar, senão não acaba tendo o efeito esperado. Ainda assim, temos, no nível nacional, considerando a proporção de negros, pardos e brancos, uma predominância de pesquisadores brancos. Isso é visível.

 

C&C – Quais são os principais desafios da educação no Brasil atualmente? Como podemos superar obstáculos como a desigualdade de acesso, a qualidade do ensino e a formação de professores?

BAG – Eu acho que nós temos que encarar a verdade desse país em relação à educação básica. Nós tínhamos muitos problemas antes da pandemia. Problemas que eram mostrados de diversos modos. Você não tinha uma evolução na aprendizagem – isso já estava muito bem colocado. Nós temos lacunas enormes, tanto no ensino fundamental quanto no médio. O grande problema que nós temos na educação básica é a qualidade. É de realmente você ter condições da escola, dos professores e dos gestores, de se organizarem para propiciar condições de aprendizagem dos conteúdos básicos necessários à vida comum. Esses conhecimentos básicos nos currículos definidos por estados e municípios a partir da base nacional comum nem sempre são bem tratados pelos professores, porque nós temos também um problema em relação aos professores. É muito questionável a formação nas licenciaturas, que nem sempre formam um profissional que tem condições de falar com crianças de 10, 11, 12 anos. Então nós temos aí uma lacuna formativa muito grande que as pesquisas vêm mostrando reiteradamente. Não é de hoje que grupos de pesquisadores batem nessa tecla que nós tínhamos que rever a proposição das licenciaturas. Porque é o professor que vai estar lá na linha de frente. E esse professor pode se tornar um coordenador pedagógico, um diretor, um supervisor de ensino. Então precisa melhorar as condições formativas iniciais desse profissional, porque ele se sacrifica muito na cadeira dele para ter aquelas aprendizagens que ele não teve no seu curso de iniciação. Esse é um ponto que está colocado muito claramente: a necessidade de mudança de política e de investimento muito forte. O segundo ponto é que deixamos de lado, não fizemos uma política forte para formar professores nas áreas mais duras (física, química, matemática, ciências, biologia). Nós temos falta desses professores. Nós temos uma lacuna enorme e aí os gestores da educação básica têm que escolher pessoas que têm formação por proximidade. E isso é uma questão que nunca foi objeto de um projeto nacional, porque isso é competência do governo federal atuar nesses nichos para suprir formações adequadas para o trabalho, seja com os adolescentes do final do ensino fundamental, seja para o ensino médio. Nós discutimos muito currículo, mas não nos perguntamos quem é que vai realizar na prática esse currículo. Nós avançamos, mas mesmo assim, os avanços ao nível do conjunto nacional ainda são precários. Temos que pensar também na carreira do professor, o que é oferecido. Nós temos o piso nacional, que foi uma iniciativa muito importante. Mas as carreiras não são tão atraentes para jovens que estão ingressando num mundo competitivo no sentido de que oferece muitas oportunidades diferenciadas. E a profissão de professor ficou um pouco amarrada. Então precisamos mexer um pouquinho nisso, com uma política articulada para a formação de professores. Nós temos que ter um planejamento educacional sistêmico porque não existe educação superior sem boa educação básica. Não adianta querer que a educação superior cresça quando 48% dos que acessam o ensino médio não terminam. Não adianta querer ampliar o ensino superior sem pensar nessa base. Porque o ensino superior e a pesquisa dependem de uma boa formação básica.

 

“O ensino superior e a pesquisa dependem de uma boa formação básica.”

 

C&C – Muita gente culpa a pandemia pelas dificuldades e baixos índices educacionais no país, mas, na verdade, isso é um problema anterior. Mas como a pandemia impactou realmente a educação?

BAG – Para mim, quem mais teve problema foi a criançada que estava entrando no período de alfabetização, que é o período mais delicado. Não há vídeo, não há projeto de interação síncrona que possa suprir a presença ou a observação da criança nos detalhes, ou a aprendizagem coletiva da criança. Uma criança de 6 ou 7 anos ficar numa tela como uma sala de aula é problemático. Os pais vivenciaram isso e as pesquisas mostram. As crianças sofreram muito e houve, sim, uma lacuna num período em que a parte neurológica da criança está florindo. Se existe um processo mais difícil nas etapas da atuação da educação escolar é o período da alfabetização básica inicial. Até há um grupo na Fundação Carlos Chagas com a Unesco que estamos fazer um estudo para analisar as iniciativas que existiram nesse período e o impacto daquilo que foi feito – ou deixou de ser feito. Então, foi um período muito difícil, sim, de muita perda. A vantagem é que a criança é muito resiliente. Ela aprende nas mais adversas situações. A criança é exposta novamente à escola e ao grupo, ao letramento e a atividades de leitura, e acaba recuperando. Por outro lado, os professores também sofreram bastante. Mais tarde, muitas pesquisas mostram o esforço que eles tentaram fazer. Por exemplo, a maioria não tinha o hábito de usar muito computador, não dominava certas plataformas e ferramentas. Eles também tiveram que se adaptar e aprender. Mas foi em uma urgência, uma angústia, e que realmente deixou sequelas.

 

C&C – A educação em ciências desde a infância é essencial. Como podemos incentivar e estimular o ensino de ciências para crianças, tornando esse aprendizado mais interessante e acessível?

BAG – Infelizmente, essa educação não tem muita base. Uma vez eu estava discutindo verbas para bolsas para a área da educação com grande cientista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E ele me disse “não sei o porquê de tanta bolsa para educação”. Eu respondi “você é um grande pesquisador que acabou de se queixar que não tem podido ter o número de auxiliares e assistentes necessários para o seu campo. Por quê? Porque a educação básica não está caminhando. Precisamos de bolsas para educação porque a pesquisa vai ajudar a educação básica a caminhar”. Ele ficou pasmo porque não tinha pensado nisso, de que a pesquisa depende daqueles que vêm com a formação na educação básica. Acho que os pesquisadores deviam ajudar muito com a educação básica, porque são essas pesquisas que vão indicar o caminho.

 

“Nós necessitamos de uma política integrada do Ministério da Educação (MEC) para a educação brasileira escolar como um todo.”

 

C&C – Quais políticas públicas poderiam contribuir significativamente para a melhoria do sistema educacional brasileiro, especialmente em termos de qualidade, inclusão e acesso equitativo à educação?

BAG – Nós necessitamos de uma política integrada do Ministério da Educação (MEC) para a educação brasileira escolar como um todo. Nós não temos isso, ainda mais considerando a regionalidade, as diferenças sociais. Os órgãos do MEC funcionam separado. As políticas são esparsas: vão aparecendo aqui e ali em forma de programas. Não há um projeto unificado, um projeto de nação. Falta um pouco de interlocução e de uma política articulada. Além de articular essa política no nível federal, ela tem que estar articulada com as políticas estaduais e municipais. Sempre pensando que nós temos um “pé de barro” – a educação básica. Então vamos ajudar a torná-la um “pé de aço”. Todo mundo junto para que se robusteça toda a educação. Nós ficamos atirando pra lá, atirando pra cá, atirando pra cima, atirando pra baixo, sem enfrentar o problema de uma política educacional. Porque uma política educacional precisaria de no mínimo 15 a 20 anos de continuidade. Mas não é o que acontece. Cada governo que entra muda tudo e tem que começar tudo outra vez. Houve um período, entre 2007 e 2015, que nós até conseguimos ter uma ideia de política nacional de educação, com um esforço de integração. Mesmo assim, havia dificuldades. Mas depois entramos num período de muitas disputas, houve uma ruptura muito grande. Nós tivemos cinco ministros da educação desconexos entre si, desconexos com o que vinha sendo feito. E agora nós estamos tentando recuperar. Então vamos ver para onde vamos caminhar.

Blog Ciencia e Cultura

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1 comment
  1. Isso é que é lucidez e otimismo! Assim como eu. Acredito num projeto de educação nacional (que não existe e precisamos fazer); acredito num investimento maciço em educação básica (que não existe e precisamos fazer); acredito numa formação de professores que pense a educação básica (que não existe e precisamos fazer). Pensar uma política salarial e carreira que sejam atrativas. Um projeto que seja do Estado e não de Governos.

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