A pós-graduação em Sociologia no Brasil

Consolidação, expansão e diversificação de um espaço (1990-2018)

Resumo

O presente artigo trata da expansão da pós-graduação em Ciências Sociais e, em específico da Pós-Graduação em Sociologia, no Brasil. São abordadas três fases do desenvolvimento da pós-graduação no sistema de educação superior brasileiro: (a) de meados do século XIX até os anos 1930; (b) da década de 1930 à de 1970; (c) dos anos 1970 aos 1990. Tendo como foco a Sociologia, são abordados os papéis da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) enquanto associações agregadoras de pesquisadores e pesquisadoras das ciências sociais e da sociologia. Abordam também o papel do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) no processo de expansão e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) na condução da política de pós-graduação nacional e do Reuni. A conclusão oferecida aqui é de que essas influências institucionais e associativas têm exigido uma nova configuração do perfil de trabalho intelectual dos cientistas sociais brasileiros ao longo das décadas.
ARTIGO – ESPECIAL EDUCAÇÃO

 

Introdução

O Brasil apresenta um vigoroso sistema nacional de pós-graduação, abarcando, praticamente, todas as áreas de conhecimento. Por isso, entender a dinâmica da produção sociológica brasileira atual pressupõe situá-la em tal quadro institucional mais amplo e é o que se faz a seguir, em três movimentos. Inicialmente, apresentam-se fases do desenvolvimento desta disciplina no país, e, em seguida, focalizam-se as últimas três décadas, com ênfase em seus arranjos institucionais mais decisivos, em sua morfologia e em suas temáticas. A título de reflexões finais, discute-se o novo molde do trabalho intelectual, resultante das transformações recentes.

 

O desenvolvimento institucional da Sociologia no Brasil

A história das ciências sociais no Brasil tem sido periodizada em três fases que se distinguem por seus agentes, instituições e modelos típicos de prática intelectual: (a) de meados do século XIX até os anos 1930; (b) da década de 1930 à de 1970; (c) dos anos 1970 aos 1990.[1]

Na primeira fase, predominavam os ensaios interpretativos da formação nacional, nos quais se encontravam diagnósticos e projetos de país, num sentido amplo (em que as esferas social, econômica e política se entrelaçavam). Trata-se do momento da publicação dos principais “clássicos” do pensamento social e político brasileiro, na pena de Joaquim Nabuco, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.[2]

A segunda fase se caracteriza pelo estabelecimento de instituições universitárias de ensino e pesquisa, nas quais o trabalho intelectual apresenta uma incipiente profissionalização, com gradientes desiguais, em alguns polos do país – notadamente em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.[3,4] Além disso, o recrutamento social tende a se abrir para camadas remediadas, imigrantes e mulheres – diferentemente da fase anterior em que os praticantes eram membros de oligarquia em descenso.

 

“A Anpocs exerceu um papel relevante na institucionalização das ciências sociais no país, visto que se tornou um dos espaços fundamentais no processo de socialização e na formação da carreira moral de futuros cientistas sociais.”

 

A terceira fase do desenvolvimento institucional da Sociologia foi marcada por uma tensa e contraditória combinação entre autoritarismo político, investimentos em ciência e cultura e censura seletiva.[5] Entre 1964 e 1988, o regime autoritário, tendo militares no Poder Executivo, empreendeu uma reforma universitária (1968), reconfigurou organismos dos anos 1950 – a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – criou a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e tirou proveito da filantropia estadunidense, incarnada nos financiamentos da Fundação Ford (Bomeny, 2001). Tal cenário foi marcado por um financiamento híbrido (estatal-nacional e filantrópico-estrangeiro) do conjunto das ciências sociais brasileiras (até os anos 1980) [6] e pela centralização e da regulação e avaliação do sistema nacional de pós-graduação (SNPG) – que se tornou o centro dinâmico da produção de pesquisa no país.[7,8]

Até o início dos anos 1960, o Brasil contava com apenas dois cursos de Pós-Graduação em Sociologia, ambos em São Paulo: o da Escola de Sociologia e Política e o da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Se não se tratava mais do estilo intelectual ensaístico e diletante da fase anterior, de certa forma, ambos os cursos estruturavam suas atividades numa modalidade próxima do modelo tutorial, por meio da realização de Seminários e de orientação do projeto de pesquisa do estudante e seu acompanhamento por parte do orientador que Bolívar Lamounier denominou de modelo mandarinístico.[9] É importante registrar que, durante o período de 1945 a 1965, foram defendidas 41 teses, incluindo as áreas de Sociologia, Política e Antropologia, ou seja, uma média de duas teses por ano. (Figura 1)


Figura 1. Primeiras instalações da Escola de Sociologia e Política e o da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP).
(Foto: Acervo CAPH / FFLCH. Reprodução)

 

A existência desses cursos propiciou a formação de grupos de pesquisa e/ou o surgimento de instituições que favoreceram a constituição de um mercado de postos de trabalho para diplomados nesta área. Também contribuíram para pavimentar o caminho para o surgimento dos cursos de pós-graduação em diversas regiões no Brasil. Nessa direção, em 1949, deu-se a criação do Instituto Joaquim Nabuco e logo em seguida, em 1950, surgiu o curso de graduação de Ciências Sociais na Universidade do Recife, que se tornaria Universidade Federal de Pernambuco em 1965, cujo interior, no ano de 1967, deu-se o início do Mestrado em Sociologia e Economia na futura UFPE, que contou com apoio da Fundação Ford.

O novo estilo de trabalho intelectual e o novo perfil de ciência social, oriundos da última fase do desenvolvimento institucional da Sociologia e de sua vaga de profissionalização intensa, atingem seu ápice nos tempos que correm. E, para apresentar seu dinamismo, a seguir, tratamos dos processos estatais e institucionais que concorreram para moldá-los: a departamentalização, oriunda da reforma universitária de 1968; as associações profissionais, em particular a Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs, de 1977) e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS, de 1987), o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni, de 2007) e a atuação crucial da Capes, ao longo do período, estimulando a chamada “internacionalização” do campo intelectual nacional.

 

A reforma universitária de 1968 e formação do Sistema Nacional de Pós-Graduação

A Reforma Universitária de 1968 realizou-se num contexto de repressão política, conduzida com uma postura autoritária nitidamente refratária a uma participação de atores e instituições diretamente interessados em sua elaboração. Contudo, ela modernizou certos aspectos do ensino superior do país e continua impactando a configuração das ciências sociais atualmente. Na sua esteira, como foi assinalado anteriormente, ocorreu a institucionalização do sistema nacional de pós-graduação – e consequentemente da pós-graduação da sociologia, profissionalização da carreira acadêmica e a introdução dos departamentos na vida universitária no país, em substituição as cátedras então existentes. Sendo os dois arranjos institucionais mais decisivos de tal reforma, a construção do sistema nacional de pós-graduação e a departamentalização universitária das áreas, em detrimento das cátedras vigentes, trata-se deles a seguir.

 

“Entre 2003 e 2010, o número de universidades federais passou de 45 para 59 e os campi de 148 para 274. No ano de 2014, era possível contabilizar 321 campi de instituições federais espalhados por diversas regiões do país.”

 

A partir da estruturação dos departamentos, a organização das ciências sociais passou por uma divisão e especialização do trabalho intelectual a ser realizado entre as três áreas. Na medida em que os departamentos passaram a concentrar as atividades de ensino e pesquisa das disciplinas das diversas áreas do conhecimento – fenômeno extensivo às ciências sociais – intensificou-se uma fragmentação entre as áreas da antropologia, sociologia e ciência política. Assim, segundo a maioria dos currículos, oferece uma formação básica na área de ciências sociais aos alunos, geralmente, em torno de dois anos de duração, direciona-os para áreas de concentração nos campos da antropologia, sociologia e ciência política nos anos finais de formação. Nas últimas décadas, processou-se também a criação de cursos de graduação nas áreas de antropologia, ciência política e em menor escala em sociologia.

Ao regulamentar os cursos de pós-graduação, a Lei n.º 5.540/68, em vários de seus artigos, incorporou os princípios e recomendações que se encontravam contidas no Parecer n.º 977/65 e impulsionou o crescimento futuro da pós-graduação na medida em que estabelecia, no seu artigo 31, que a titulação acadêmica seria considerada como um dos critérios principais para ingresso e promoção na carreira docente.

Se o Parecer n.º 977/65 teve uma importância na definição conceitual e na moldura legal da pós-graduação, os Planos Nacionais de Pós-Graduação (PNPG) constituíram outro elemento crucial na construção do sistema, imprimindo uma direção para sua consolidação e institucionalização. Através deles realizaram-se diagnósticos sobre a situação da pós-graduação e foi formulado um conjunto de metas e de ações que em grande parte foram cumpridas. As ações implementadas pelos PNPG, que passaram a ser elaborados desde 1975, possibilitaram a construção de um amplo sistema de bolsas no país e no exterior durante certo período, além disso, contribuíram de forma efetiva para a capacitação de docentes e de pesquisadores que atuam no ensino superior do país, bem como para a organização de uma política de auxílio financeiro aos programas de pós-graduação. Os cursos de pós-graduação em sociologia surgiram e se expandiram na esteira da implantação do sistema nacional de pós-graduação. O pujante sistema de que tratamos no presente artigo tem, hoje, sua escala ilustrada pela Tabela 1.


Tabela 1. Dados GEOCAPES
(Fonte: https://geocapes.capes.gov.br/geocapes)

 

Os papeis desempenhados por duas associações profissionais: a Anpocs e a SBS

O surgimento e desenvolvimento institucional da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) desempenhou um papel relevante, seja direto e/ou indireto, na montagem dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia, bem como, de Antropologia e Ciência Política. A Anpocs foi criada 1977, quando ainda vigorava a ditadura militar, e seus momentos iniciais coincidiram com o período de redemocratização da sociedade brasileira e. em larga medida.

Desde o início de suas atividades, a Anpocs, a partir de seus encontros anuais, tornou-se um dos epicentros de reflexão da política de institucionalização da pós-graduação em sociologia, antropologia e ciência política. Ao longo de sua trajetória, a análise da situação das ciências sociais e questões relativas ao financiamento da política científica do país, ocuparam uma posição de destaque em sua agenda de trabalho. Antes do surgimento da Anpocs, em 1977, o país contava com apenas oito mestrados em sociologia: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 1967), Universidade de Brasília (UnB, 1970), Universidade de São Paulo (USP, 1971), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP, 1973), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 1973), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 1974), Universidade Federal do Ceará (UFC, 1976), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ, 1966), sendo que quatro deles encontravam-se concentrados na região sudeste.

 

“Na esteira da abertura das instituições universitárias a grupos anteriormente destituídos do acesso a elas, observa-se, como desdobramento disso, uma multiplicação temática relevante.”

 

Em seus anos iniciais, a associação contou com um reduzido grupo de participantes, de tal forma que, tanto em sua direção quanto na coordenação de suas atividades, divididos em grupos de trabalho (GT) formados em sua maioria por acadêmicos provenientes da geração pré-1964, muitos dos quais eram reconhecidos como lideranças no campo acadêmico, pela produção de seus trabalhos, publicados em livros, que integravam parte da bibliografia utilizada de forma recorrente nos cursos de graduação.

No entanto, contou também neste momento, com a participação de uma geração mais nova, constituída de quadros recém-titulados nas áreas de ciências sociais, que por volta de 1980, situava-se na faixa etária entre 35 e 40 anos, e que, ao lado dos fundadores da Anpocs, integravam uma circunscrita elite das ciências sociais do país. Na medida em que existiam poucos programas de pós-graduação nas três áreas, a Anpocs era formada por um “mundo pequeno de pessoas” no qual o conhecimento e reconhecimento acadêmico recíproco regravam as relações pessoais e profissionais naquele momento.

A associação promovia, desse modo, um encontro intergeracional – dos cientistas sociais formados na dinâmica institucional anterior e posterior a 1964. Isso fica evidente nas figuras que ocuparam a presidência dela. O primeiro, por exemplo, Francisco Corrêa Weffort (1977-1980), havia se formado na FFCL-USP, em 1961, e se doutorado nesta mesma instituição; já o segundo, Fábio Wanderley Reis (1981-1983), havia se formado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1964, porém, se doutorado nos Estados Unidos da América (EUA), com bolsa da Fundação Ford.

Nos momentos iniciais de sua trajetória, a Anpocs contou também com o apoio de organizações estrangeiras, especialmente da Fundação Ford, cujos recursos reverberaram na construção e consolidação de centros pioneiros de pós-graduação em ciências sociais. Além disso, a Anpocs exerceu um papel relevante na institucionalização das ciências sociais no país, visto que se tornou um dos espaços fundamentais no processo de socialização e na formação da carreira moral de futuros cientistas sociais, no sentido evocado por Erving Goffman [10] em suas análises sobre a trajetória percorrida por um indivíduo durante sua vida, ou seja, o processo durante o qual transcorre a constituição de uma subjetividade e um estilo de vida, razoavelmente congruente, com a categoria social específica a qual o indivíduo pertence e/ou almeja vincular-se no futuro.

Muitos dos participantes que frequentaram seus encontros, nas décadas de 1980 e 1990, enquanto estudantes de graduação e/ou de pós-graduação, ingressaram mais adiante na carreira docente e, posteriormente, integraram o corpo de professores dos programas de pós-graduação nas três áreas. Posteriormente, esta geração assumiu posições de destaques nas diretorias da Anpocs, nas coordenações de Grupos de Trabalho e também integrando Comitês de Área na Capes e no CNPq, bem como, em outros órgãos semelhantes.

A Anpocs exerceu um papel importante na reativação da Sociedade Brasileira de Sociologia (1987), assim como na criação da Associação Brasileira de Ciência Política (1986) e na movimentação da Associação Brasileira de Antropologia (1955).

A Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) teve suas atividades interrompidas durante o regime militar. Elas foram retomadas em 1987, e, desde então, estabeleceu-se como o espaço institucional legitimo para discutir questões relativas aos cursos de graduação de ciências sociais, na sua interface com a sociologia, e, igualmente, como local apropriado para elaboração de estratégias de institucionalização da pós-graduação da disciplina ao lado de outros atores desde campo, como os coordenadores de programas de pós-graduação, membros dos comitês desta área presentes nos órgãos federais de fomento. A junção das lógicas da organização departamental e da atuação institucional da SBS, tiveram o efeito de reconfigurar a prática do trabalho sociológico nas últimas décadas, que assumiu cada vez mais uma feição disciplinar vis a vis diante de outros campos das ciências sociais.

 

O Reuni, uma nova morfologia dos praticantes de Sociologia e a diversificação temática da área

Nos anos 1990 as universidades federais atravessaram um período de parcos recursos materiais e humanos que resultaram em precárias condições estruturais e institucionais de trabalho acadêmico, reverberando no funcionamento deficiente dos laboratórios de pesquisa e na deterioração de suas instalações físicas. Esta situação foi agravada por uma série de aposentadorias precoces por parte de docentes e de quadros técnico-administrativos destas instituições, diante de informações oficiosas que circularam no meio universitário a propósito de uma eventual reforma da previdência social a ser patrocinada pelo governo federal daquela época que implicaria em perdas trabalhistas.

A atitude de desapreço do governo central pelas universidades federais produziu um ambiente de insatisfação em seu interior e uma profusão de críticas realizadas por uma ampla gama de acadêmicos que ocupavam posições de destaque no espaço universitário nacional. O clima de reprovação do tratamento adotado pelo governo diante das instituições federais encontra-se expresso no livro “Universidades em ruínas na república dos professores”,[11] que teve ampla repercussão no meio universitário. Esse posicionamento crítico por parte da comunidade acadêmica, acentuou-se diante da política de privatização do ensino superior de nível de graduação.

Em contrapartida, o governo que assumiu o comando do país em 2003, procurou gradualmente recompor a situação deficitária tanto dos recursos físicos quanto dos quadros docentes e de técnico-administrativo das universidades federais. Entre 2003 e 2007, ocorreu uma nova orientação de política educacional com relação ao ensino superior, visando   a expansão e interiorização do ensino superior, por meio da criação de novas universidades federais e de novos campi para regiões não metropolitanas. Em 2007 ocorreu a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) que terá um forte impacto na expansão dos cursos de pós-graduação de sociologia. O Reuni possuía também o propósito de diversificar a oferta de cursos de graduação, ampliar o acesso de diferentes grupos sociais que se encontravam excluídos do ensino superior, bem como readequar a infraestrutura física das instituições federais e otimizar os recursos humanos e físicos existentes.

Entre 2003 e 2010, o número de universidades federais passou de 45 para 59 e os campi de 148 para 274. No ano de 2014, era possível contabilizar 321 campi de instituições federais espalhados por diversas regiões do país. Até o ano de 2016, ocorreu um número expressivo de novas contratações de quadros técnico-administrativos e de docentes para atender esta política de recuperação e expansão das instituições federais.

Se por um lado, as novas contratações (Gráfico 1) interromperam a tendência da endogamia na estruturação do corpo docente de vários programas, ao mesmo tempo, possibilitou que os docentes recém-contratados transportassem para seu novo espaço institucional de trabalho laços intelectuais e relações pessoais construídos nos locais nos quais obtiveram sua formação doutoral, possibilitando a inserção dos novos programas de pós-graduação na comunidade nacional da sociologia e também a formação de redes formais e/ou informais de parcerias acadêmicas, algumas delas incrementadas durante os Encontros da Anpocs.


Gráfico 1. Dados GEOCAPES
(Fonte: https://geocapes.capes.gov.br/geocapes)

 

Nesses anos, os programas de pós-graduação das instituições federais, estaduais e confessionais, contaram com adequados recursos financeiros para desenvolver suas atividades de ensino e pesquisa, receberam um volume expressivo de bolsas de Iniciação Científica, bem como bolsas de estudos para mestrandos e doutorandos. Se por um lado houve uma limitação do número de bolsas para realização de doutorado pleno no exterior – política esta que vigorou no período inicial da construção institucional do sistema nacional de pós-graduação – por outro, os órgãos de fomento do governo federal fornecerem um volume considerável de “bolsas sanduíches” (Gráfico 2) e de bolsas de pós-doutoramento, visando a complementação de formação pós-graduada em universidades estrangeiras.


Gráfico 2. Dados GEOCAPES
(Fonte: https://geocapes.capes.gov.br/geocapes)

 

A expansão da pós-graduação deu origem a uma inédita mobilidade geográfica de docentes, que os conduziram a buscar postos de trabalho em diversas regiões do país, diversificando academicamente a composição dos novos e/ou programas existentes, alterando, desta forma, a morfologia e a dinâmica a da pós-graduação das ciências sociais. Esta expansão e nova configuração da pós-graduação têm permitido a formação de novas elites acadêmicas regionais.

O estado atual do campo da sociologia resulta tanto de processos de continuidade quanto de descontinuidade e inovação com relação ao observado nesta última fase “histórica” (que convencionou balizar em 1988, em função da outorga da Carta Constitucional, nos quadros do retorno ao regime de eleições regulares). Do ponto de vista da regulação e da avaliação da produção científica, destaca-se a contínua e crescente capacidade dos organismos federais centralizarem a definição dos padrões de excelência intelectual dos sociólogos profissionais – ainda que de modo controverso e polêmico.[7] Já do ponto de vista da morfologia, observam-se descontinuidades. A política federal de expansão institucional do ensino superior, concentrada nas presidências petistas (2002-2016), ainda que com variações de intensidade de recursos e direção dos mesmos, possibilitou o aumento do número de estudantes e de professores (ao nível graduação e de pós-graduação), na medida em que cresceram o número de vagas de ingresso para os primeiros e de postos disponíveis aos segundos (por vezes, formados por/nesta mesma voga de crescimento; por vezes, em estado de espera de oportunidades, formado pela voga anterior). (Figura 2)


Figura 2. Expansão das universidades brasileiras propiciou maior diversidade dos alunos
(Foto: UnB. Reprodução)

 

Desse modo, uma nova morfologia dos praticantes é notável. Na esteira da abertura das instituições universitárias a grupos anteriormente destituídos do acesso a elas, observa-se, como desdobramento disso, uma multiplicação temática relevante. Tanto o processo de segmentação das três áreas entre si (Ciência Política, Antropologia e Sociologia), quanto a especialização no interior de cada uma delas, que pode ser ilustrado com a diversificação temática observada no Gráfico 3. [12]


Gráfico 3. Informação extraída de Nascimento M. A agenda de pesquisa sociológica no Brasil: o caso dos Programas de Pós-Graduação.
(Fonte: Rev Ciências Sociais. 2021;52(2):145–78)

 

A Capes, a internacionalização e o novo estilo de trabalho na área de sociologia

O estabelecimento dos PPG em Sociologia foi criando um estilo de trabalho intelectual que se afastou de um paradigma da intelligentsia que existiu no período de pré-1964 e era integrada por uma conjunção de jornalistas, escritores, críticos literários, artista que exerciam suas atividades relativamente distantes do meio universitário. Uma manifestação deste tipo de intelligentsia era ilustrada pela Revista Civilização Brasileira, sob a chancela de Ênio Silveira, que comandava a Editora Civilização Brasileira e que ocupava uma posição de destaque no campo editorial nacional.

A expansão dos PPG em sociologia constitui uma comunidade científica que passou a produzir seus trabalhos em grande medida modulados pela avaliação da Capes conduzida pelos pares, assim como balizada pelos padrões de bolsas de produtividade do CNPq e seu correlato, ou seja, o Currículo Lattes, passando a privilegiar uma produção constante que vem transformando os acadêmicos em microempresários de si mesmos, conduzindo-os a divulgarem seus trabalhos e recompensas acadêmicas em redes sociais. Embora tenha ocorrido uma nacionalização dos PPG em sociologia, prevalece um campo hierarquizado, pautado por constantes disputa, conduzidas de forma latentes e pautadas por padrões de rituais de interação formulada por Goffman,[10] ou seja, por formas de deferências entre os membros destes PPG.

Dentre as práticas mais estimuladas pela Capes, na última fase do desenvolvimento institucional da Sociologia, encontra-se a internacionalização. Contudo, também é correto observar que desde sua gênese, as ciências sociais brasileiras foram marcadas por tipos diversos intercâmbios com países estrangeiros: de um lado, o país recebeu numerosos pesquisadores (franceses, alemães e estadunidenses, notadamente), interessados em grupos e fenômenos como “objeto” – o caso de Roger Bastide e Levi-Strauss são exemplares.[14] Por outro lado, o estabelecimento de instituições universitárias nos anos iniciais do século XX, contaram com a “importação” de professores estrangeiros para sua inauguração.

Na definição de “excelência” tem peso e centralidade (histórica e hodiernamente) a “internacionalização”, em suas diversas práticas e estratégias. Celi Scalon e Richard Miskolci [17]identificaram novos padrões de intercâmbio entre os acadêmicos brasileiros e seus pares estrangeiros: se comparados com décadas anteriores, eles ocorriam “predominantemente ‘em mão única’, já́ que carecíamos de quadros, condições institucionais e apoio financeiro para nos articularmos a redes internacionais em condições equitativas”.

No entanto, se as condições de intercâmbio no âmbito de relações bilaterais e/ou transnacionais são menos assimétricas que outrora, elas não são igualitárias.  Dois tipos de estudos o demonstraram com farto embasamento empírico. Matheus Ribeiro e Rodolfo Nóbrega [18,19]caracterizaram e mensuraram as chances de publicação em periódicos do primeiro escalão do espaço transnacional (isto é, aqueles que possuem alto impacto). Segundo eles, têm mais chances scholars europeus e estadunidenses, que trabalhem em instituições no topo dos rankings globais, redigindo em coautoria, estudos quantitativos e que versem sobre países do norte global. As pesquisas sobre chances de publicação supracitadas identificaram assimetrias, tratando do âmbito estrangeiro e mirando o “norte global”. Um segundo tipo de abordagem volta-se diretamente para o “sul global”, e, particularmente, à geopolítica interna do espaço intelectual brasileiro. Assim, João Marcelo Ehlert Maia e Jimmy Medeiros (Maia, Medeiros, 2020) identificaram os seguintes fatores como “preponderantes” na determinação de uma “carreira internacional”: a realização de pós-doutorado no exterior e o pertencimento a um PPG nota 7 ou 6 na avaliação Capes (o que, segundo eles, reproduz e reforça a histórica desigualdade entre brancos, pardos e pretos). Por suposto, a língua franca das publicações analisadas permanece o inglês [20]e os latino-americanos penam e são raros a publicarem nas revistas centrais.[7,21]  Tem-se ideia das assimetrias internas que persistem, ao se comparar o número de matrículas na pós-graduação e sua distribuição pelas cinco regiões do país. (Tabela 2)


Tabela 2. Dados GEOCAPES
(Fonte: https://geocapes.capes.gov.br/geocapes)

 

Abaixo, pode-se ter ideia dos países estrangeiros que mais atraem os brasileiros bolsistas da Capes. (Tabela 3)


Tabela 3. Dados GEOCAPES
Fonte: https://geocapes.capes.gov.br/geocapes)

 

Em que se pese a atual renovação do repertório de leituras incontornáveis nos cursos de ciências sociais, oriundas de reivindicações por mais autoras e autores negros e oriundos de países do “sul global”, é notável que o “norte global” exerça mais atração em se tratando de circulação internacional, atente-se ao fim da tabela onde todos os países são europeus mais os Estados Unidos da América.

 

 

Capa. Influências institucionais e associativas têm exigido uma nova configuração do perfil de trabalho intelectual dos cientistas sociais brasileiros ao longo das décadas.
(Foto: Capes. Divulgação)
1. Trindade H. Uma longa viagem pela América Latina: invenção, reprodução e fundadores das ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO; 2021.
2. Bastos ER. Ciências sociais e trabalho intelectual. Tempo Soc. 2002;14(1):209–12.
3. Bastos ER. A Sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista.” In: Miceli S, editor. História das Ciências Sociais no Brasil vol 2. São Paulo: Sumaré; 1995.
4. Bastos ER. A modernidade possível: cientistas e ciências sociais em Minas Gerais. In: Miceli S, editor. História das Ciências Sociais no Brasil vol 1. São Paulo: Sumaré; 2001.
5. Ortiz R. Notas sobre as ciências sociais no Brasil. Novos Estud Cebrap. 1990;27:163–75.
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7. Martins CB. As origens da pós-graduação nacional (1960-1980). Rev Bras Sociol. 2018;6(13):9–26.
8. Lima J, Cortês S, Barreira I. A sociologia fora do eixo: diversidades regionais e campo da pós-graduação no Brasil. Rev Bras Sociol. 2018;6(13):76–106.
9. Lamounier B. Expansão e institucionalização das ciências sociais no Brasil: um estudo preliminar, mimeografado. 1981.
10. Goffman E. Asylums: essays on the social situation of mental patients and other inmates. Aldine Transaction; 1961.
11. Trindade H. Universidades em ruínas na república dos professores. Petrópolis/Rio Grande do Sul: Vozes/CIPEDES; 2000.
12. Nascimento M. A agenda de pesquisa sociológica no Brasil: o caso dos Programas de Pós-Graduação. Rev Ciências Sociais. 2021;52(2):145–78.
13. Fernandes F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. 2nd ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional; 1967.
14. Massi FP. Estrangeiros no Brasil: a missão francesa na Universidade de São Paulo. Universidade Estadual de Campinas; 1991.
15. Rodrigues LS. Fernando Henrique Cardoso nos Estados Unidos da América: a obra de um scholar, um scholar como obra. Novos Estud Cebrap. 2022;41:273–93.
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18. Ribeiro M. A divisão global do trabalho intelectual em revistas internacionais de teoria social (2000-2016). Rev Ciências Sociais. 2021;52(2):209–49.
19. Nóbrega RC. Desigualdades na academia: determinanates para publicação em periódicos de impacto na sociologia. Universidade de Brasília; 2018.
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21. Braga Filho EM. Condição periférica: a internacionalização da sociologia brasileira e seus desafios. Rev Habitus. 2017;7(10):64–78.
Carlos Benedito de Campos Martins é professor titular do departamento Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Foi Visiting Scholar da Universidade Columbia (EUA), Universidade Oxford (Inglaterra), Universidade Livre de Berlim (Alemanha), Universidade de Hong Kong (China), Universidade Nacional de Singapura (Singapura), University London College (Inglaterra). Coordenador do projeto Capes-Cofecub “Globalização das sociologias francesa e brasileira: agentes, instituições, temáticas…
Lidiane Soares Rodrigues é professora adjunta do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC. Professora Visitante Sênior na École Normale Supérieure Paris-Saclay (França). Visiting Scholar Jr. na Brown University (EUA). Pesquisadora no projeto Capes-Cofecub “Globalização das sociologias francesa e brasileira: agentes, instituições, temáticas (1990-2018)
Sávio Barros Sousa é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (PPGSOL-UnB). Pesquisador no projeto Capes-Cofecub “Globalização das sociologias francesa e brasileira: agentes, instituições, temáticas (1990-2018).

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