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Os cientistas e o carnaval brasileiro

Pesquisadores participam da maior festa brasileira

 

O carnaval é a festa popular mais ampla e tradicional do Brasil, que atinge uma parcela significativa de sua população a cada ano. Na medida em que a ciência e a tecnologia (C&T) se tornaram cada vez mais parte da vida cotidiana, elas penetraram no universo de artistas e foliões, em particular, de compositores, carnavalescos e participantes do carnaval. Em muitos desfiles carnavalescos, por exemplo, nas últimas décadas, temas ligados à C&T têm surgido no carnaval brasileiro. Para uma análise histórica mais ampla sobre esta relação entre carnaval e ciência pode ser consultado o artigo: “A Ciência e o Carnaval Brasileiro”.

Neste texto abordaremos um aspecto particular dentro deste tema: a presença de cientistas em desfiles carnavalescos ou como temas para enredo para escolas de samba. Tomaremos cinco casos como exemplos, nos quais grandes cientistas, brasileiros ou não, se envolveram ativamente em desfiles carnavalescos.

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Um dos grandes físicos do século XX, Richard Feynman (1918, 1988), apreciava muito o carnaval e participou dele algumas vezes no Brasil e escreveu sobre isto em seu livro mais conhecido. Extraordinariamente criativo e original, Feynman recebeu o Prêmio Nobel de Física em 1965 (com Julian Schwinger e Sin-Itiro Tomonaga) pelas contribuições independentes ao desenvolvimento da teoria da eletrodinâmica quântica. Em 1999, em pesquisa realizada com físicos de todo o mundo, foi considerado um dos dez cientistas mais importantes de todos os tempos.

Feynman esteve algumas vezes no Brasil — a primeira em 1949, a última em 1966. Apreciador da música em geral e do samba em particular, que considerava um ritmo alegre e espontâneo, desfilou em bloco carnavalesco do Rio de Janeiro. Aprendeu a tocar percussão (frigideira, agogô, etc…) e, após ensaiar alguns meses, desfilou no bloco Os Farsantes de Copacabana, que ganhou o primeiro lugar de um desfile de blocos em fevereiro de 1952. Professor dedicado e entusiasmado, lecionou por aqui e deu importante contribuição nos primórdios da física teórica brasileira, além de ter influenciado na renovação do ensino de física no país. (Figura 1)


Figura 1. Feynman no carnaval do Rio de Janeiro em 1952
(Fonte: Caltech Archives. Reprodução)

 

Em fevereiro de 1966, já tendo recebido o Nobel, veio acompanhado de sua esposa, Gweneth, ao Carnaval do Rio de Janeiro como convidado especial da Prefeitura. Folião animado e alegre, assistiu a desfiles, participou de alguns dos bailes mais famosos da cidade e recebeu das escolas de samba um agogô e o título de Folião n.o 1. Nessa sua vinda ao Brasil, as autoridades aeronáuticas proibiram a recepção que escolas de samba fariam a ele ao desembarcar no Galeão. Isto não impediu que ele criticasse, em entrevistas, as perseguições políticas a cientistas e físicos brasileiros, entre os quais Mario Schenberg e Leite Lopes. Feynman não retornaria mais ao Brasil. (Figura 2)


Figura 2. Feynman no carnaval do Rio de Janeiro em 1966
(Fonte: Arquivo)

 

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Em 1988, o grande cientista e compositor Paulo Vanzolini (1924-2013) foi o tema do enredo da Mocidade Alegre (São Paulo), “O cientista e poeta – Paulo Vanzolini”, que ficou em segundo lugar naquele ano. Vanzolini ficou famoso como compositor de nossa música popular, com clássicos como Ronda, Juízo Final e Volta por Cima. Apesar da não tocar instrumentos musicais, compôs mais de 70 canções, interpretadas por grandes nomes da música brasileira, como Chico Buarque, Elis Regina e Martinho da Vila. Formado em medicina, que nunca exerceu, tornou-se um dos maiores zoólogos brasileiros, especialista em herpetologia, tendo dirigido o Museu de Zoologia da USP por trinta anos. Em conjunto com Aziz Ab’Saber e Ernest Williams, adaptou a importante Teoria dos Refúgios, proposta pelo cientista alemão Jürgen Haffer, e ela se tornou uma das explicações científicas mais significativas para descrever os padrões de biodiversidade e endemismo na Floresta Amazônica e na Mata Atlântica. Para ele: “A vida do zoólogo é a melhor vida do mundo. Deus, quando me fez zoólogo, sabia o que estava fazendo.” (Figura 3)


Figura 3. Paulo Vanzolini na Virada Cultural, em 2008
(Fonte: Arquivo)

 

Vanzolini ficou absolutamente fascinado com a homenagem carnavalesca que a Mocidade Alegre lhe fez, em 1988, e percorreu todo o desfile, sorrindo ou chorando de emoção e cumprimentando os sambistas. Foi um desfile marcante, com um lindo samba, até hoje recordado na escola. O enredo foi “O Cientista Poeta – Paulo Vanzolini” e o samba dizia: (Figura 4)


Figura 4. Vanzolini no desfile de 1988
(Fonte: Arquivo)

 

“Que maravilha o cientista e poeta

Paulo Vanzolini num berço da poesia

a Mocidade hoje traz/derramando a sua arte

Deus lhe pague as suas obras

não esquecerei jamais

foi assim que começou

no Butantã o menino se encantou

e seguindo seu caminho/sempre sozinho

em verdes matas (…)

oi deixa a lira me levar

levanta sacode a poeira dá volta por cima

entra na roda quero ver você sambar”.

 

***

A mato-grossense Graziela Maciel Barroso (1912, 2003) foi uma grande botânica brasileira e a primeira mulher a fazer o concurso para naturalista do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Aos 30 anos, havia iniciado como herborizadora e separadora de sementes no Horto Florestal e também como estagiária no Jardim Botânico. Em 1946, ingressou na instituição e começou a trabalhar com seu marido em sistemática botânica. Graziela não tinha curso superior na época, mas treinava novos estagiários e até pós-graduandos. Três anos depois, o marido Liberato faleceu. Aos 47 anos, ingressou no curso de biologia na atual Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). E aos 60 anos, em 1973, defendeu seu doutorado, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Como pesquisadora, identificou 11 novos gêneros e 132 novas espécies de plantas e formou centenas de pesquisadores em mais de 50 anos como profissional. Até agora, mais de 25 espécies vegetais foram batizadas com seu nome. (Figura 5)


Figura 5. Graziela Barroso na UnB em 1967 (JBRJ)
(Fonte: Arquivo)

 

Em 1997, com 84 anos, Graziela Barroso desfilou em um carro alegórico da Unidos da Tijuca no carnaval carioca. Naquele ano, a escola prestou uma homenagem ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro com o enredo: “Viagem pitoresca pelos cinco continentes num jardim”. (Figura 6)


Figura 6. Graziela Barroso no desfile da Unidos da Tijuca
(Fonte: Arquivo)

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Roald Hoffmann, químico polonês-estadunidense e professor na Universidade de Cornell, recebeu o Prêmio Nobel de Química de 1981. Escreveu peças teatrais, poesia e livros sobre as conexões entre arte a ciência. É detentor (emérito) da cátedra Frank H. T. Rhodes de Humanidades da Universidade de Cornell. Em 2004, desfilou na Unidos da Tijuca, fantasiado de Santos Dumont (mas com um chapéu de gaúcho), com fantasia desenhada por Paulo Barros. Naquele ano, a Unidos da Tijuca fez um desfile primoroso e ficou em segundo lugar no Carnaval do Rio de Janeiro, perdendo por décimos para a Beija-Flor (há controvérsias sobre a apuração!). (Figura 7)


Figura 7. Roald Hoffmann no desfile da Unidos da Tijuca em 2004
(Fonte: Arquivo)

 

O enredo da Unidos da Tijuca, que teve a forte colaboração da Casa da Ciência da UFRJ, era baseado na ciência, “O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível”, trouxe o famoso carro alegórico sobre o DNA, e foi manchete de jornais e de revistas em todo o mundo. Entusiasmado, Hoffmann escreveu um artigo para a revista Nature (v. 428, p. 21, 2004) descrevendo sua experiência no desfile de Carnaval do Rio. (Figura 8)


Figura 8. O famoso carro alegórico do DNA da Unidos da Tijuca
(Fonte: Arquivo)

 

***

Vale recordar ainda uma experiência, esta não muito apreciada por ele, de um grande cientista inglês com o carnaval brasileiro. Na realidade ela ocorreu no entrudo, em Salvador, em 1832, quando Charles Darwin estava nesta cidade em sua viagem no Beagle. Darwin escreveu no Diário do Beagle, no dia 4 de março 1832:

“Hoje é o primeiro dia do Carnaval, mas Wickham, Sullivan e eu próprio, nada indômitos, estávamos determinados a encarar seus perigos. Esses perigos consistem em sermos impiedosamente atingidos por bolas de cera cheias de água e molhados pelo jorro de grandes tinas. Achamos muito difícil manter nossa dignidade andando pelas ruas. Carlos V disse que valente é o homem capaz de apagar uma vela com seus dedos sem fraquejar; eu digo que valente é aquele que consegue andar a passo firme quando há baldes d’água prestes a serem jogados sobre ele de ambos os lados. Após horas enfrentando o desafio, chegamos por fim ao campo, determinados a permanecer ali até que escurecesse. Assim fizemos, e tive alguma dificuldade para encontrar a estrada de volta, pois tivéramos o cuidado de seguir pela costa além dos limites da cidade. Para completar nossos risíveis tormentos, uma intensa tempestade nos molhou até os ossos e, por fim, felizmente chegamos ao Beagle.”

 

Ou seja, Darwin escapuliu do Carnaval da Bahia. Sabia de nada sobre evolução no Carnaval… (Figura 9)


Figura 9. Augustus Earle (companheiro de Darwin no Beagle)
(Fonte: Cena de Carnaval; Entrudo, 1822)

 

Em 2011, Darwin retornou ao carnaval brasileiro, desta vez na Comissão de Frente e no enredo de uma escola de samba. Naquele ano, a escola de samba União da Ilha do Governador, do Rio de Janeiro, apresentou o enredo “O Mistério da Vida”, tendo Alex de Souza como carnavalesco. A escola buscou fazer uma viagem no tempo para falar do mistério da vida e da evolução das espécies. Os organizadores justificaram a escolha do enredo:

 

“O meio científico ainda comemora os 150 anos da primeira publicação do livro A Origem das Espécies, livro este que causou uma verdadeira revolução no mundo com a teoria da evolução. A aventura vivida pelo naturalista inglês Charles Darwin a bordo do H.M.S. Beagle, o navio britânico, que em aproximadamente cinco anos, deu a volta ao mundo e que tinha a missão de mapear a América do Sul, onde aportaram nas cidades de Salvador e Rio de Janeiro. Esta expedição científica será revivida pela escola de samba…”

 

O enredo foi influenciado pelas atividades relativas ao Ano Darwin, realizadas dois anos antes pelo projeto Caminhos de Darwin, organizado pelo MCTI e pela Casa da Ciência – UFRJ, e teve a colaboração de pesquisadores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Apesar de um trágico incêndio anterior em seus barracões, a escola fez um excelente e animado desfile, conquistou o público e o Estandarte de Ouro como melhor escola e melhor enredo. (Figura 10)

Figura 10. O enredo da União da Ilha do Governador em 2011
(Fonte: Reprodução)

 

Em 2014, o desfile da Grande Rio contou a história de Maricá, município próximo do Rio de Janeiro, no qual Darwin passou em sua expedição de 1832. Várias alas trouxeram componentes vestidos como gafanhotos, formigas, borboletas, joaninhas e outros animais observados por ele na Serra da Tiririca. No início, desfilou o carro alegórico “Estufa de Estudos Darwinianos”, com grandes arbustos de grama sintética habitados por acrobatas fantasiados de insetos. Contrariado ou não, Darwin havia retornado ao carnaval brasileiro. Sem perder a dignidade. (Figura 11)


Figura 11. Charles Darwin nos anos 1830
(Fonte: Reprodução)

 

Capa. Unidos da Tijuca/ Arquivo. Reprodução
Ildeu de Castro Moreira

Ildeu de Castro Moreira

Ildeu de Castro Moreira é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Recebeu o Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica do CNPq em 2013. É presidente de honra da SBPC, membro do Conselho Editorial de Ciência & Cultura.
Ildeu de Castro Moreira é professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Recebeu o Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica do CNPq em 2013. É presidente de honra da SBPC, membro do Conselho Editorial de Ciência & Cultura.
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