Pesquisador traçou bases fundamentais na consolidação da geografia, criando pesquisas inovadoras sobre a complexidade dos sistemas naturais e sociais
Professor, geógrafo, ambientalista, biólogo, ecologista, geólogo, humanista. Ao longo de seus 87 anos de vida, Aziz Nacib Ab’Sáber soube ser plural e singular ao mesmo tempo: suas contribuições científicas, o compromisso com a educação e a atuação como ativista ambiental fizeram do brasileiro uma das figuras mais influentes da ciência nacional. “Aziz fez uma profunda revisão no paradigma dos estudos ambientais brasileiros. A postura reflexiva e ao mesmo tempo comprometida com as lutas contra as situações conflituosas no uso dos recursos ambientais estabeleceu novos rumos para a investigação dos geógrafos brasileiros envolvidos com a transformação da sociedade”, destaca Rosemeri Melo e Souza, pós-doutora em Geografia Física (Biogeografia) pelo Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Transformação da geografia brasileira
Conhecido por uma abordagem multidisciplinar, Ab’Sáber traçou bases fundamentais na consolidação da geografia, criando pesquisas inovadoras sobre a complexidade dos sistemas naturais e sociais. “O professor Aziz Ab’Sáber deu uma expressiva contribuição para a modernização do pensamento geográfico brasileiro. Ele foi um dos expoentes de sua geração, colaborando para a transformação de uma geografia antes vista como ciência descritiva para uma geografia mais analítica”, destaca Vicente Eudes Lemos Alves, professor do Instituto de Geociências (IG) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A partir de seus estudos, derivou-se uma série de outras subáreas no ramo da geografia, sendo os domínios morfoclimático e fitogeográfico os conceitos mais utilizados para classificar padrões naturais encontrados nas regiões geográficas. Segundo ele, as modelagens e modificações observadas nas paisagens brasileiras são resultados da interação contínua e multifacetada entre processos geológicos, climáticos, hidrológicos e humanos que ocorreram ao longo de milhões de anos. “O aporte do professor Aziz para a construção de outra concepção de geografia ocorreu por ele considerar em seus estudos que a paisagem era um corpo dinâmico da superfície terrestre resultante de processos fisiográficos e biológicos em constante interação. Tais ideias foram muito importantes para a construção de novas abordagens sobre a natureza, especialmente no que diz respeito à construção das feições paisagísticas e ecológicas do território brasileiro”, explica Vicente Alves.
Outra abordagem importante para o entendimento dos processos históricos que influenciaram na evolução dos ambientes naturais no território brasileiro foi a conhecida Teoria dos Refúgios, evidenciada por Ab’Sáber em parceria com o professor Paulo Vanzolini. “Sua notável contribuição acerca dos complexos vegetacionais brasileiros, em suas dimensões escalares e de subambientes foram indispensáveis para as bases da biogeografia de cunho geográfico no país”, declara Rosemeri Souza. “É importante destacar seu importante papel também na implementação de políticas territoriais, como, por exemplo, o Radambrasil (projeto com a utilização de imagens via radar) cuja realização de estudos subsidiariam a elaboração do mapa das unidades de relevo pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre outros, contribuindo para a geração de produtos fundamentais ao desenho de políticas públicas territoriais”.
“Sua notável contribuição acerca dos complexos vegetacionais brasileiros foram indispensáveis para as bases da biogeografia de cunho geográfico no país.”
Inquieto, o geógrafo desenvolveu mais de 500 trabalhos e pesquisas que alcançaram relevância também internacional, sendo um dos primeiros pesquisadores a investigar sobre mudanças climáticas decorrentes dos impactos do Período Quaternário – tempo geológico que abrange desde os últimos 2,6 milhões de anos até os dias atuais – alertando inclusive sobre sustentabilidade e preservação a fim de evitar futuros efeitos em escalas ambientais e sociais ao planeta, em um momento que essa questão ainda não despertava grande interesse da sociedade brasileira.
Engajamento aos movimentos sociais e às políticas públicas
Ab’Sáber participou de inúmeros debates públicos e palestras onde buscou respaldar os movimentos sociais que lutavam contra obras desenvolvimentistas hostis aos interesses e modos de vida das populações locais. Para Vicente Alves, “ele foi um crítico dos projetos de intervenção no espaço geográfico, sobretudo daqueles que pudessem gerar relevantes impactos socioambientais, como é o caso de grandes barragens, de projetos de exploração mineral em larga escala ou de obras de intervenção em bacias hidrográficas”.
Um exemplo é a conhecida transposição do rio São Francisco, um grande projeto de engenharia hidráulica que visava desviar parte das águas do rio para abastecer áreas semiáridas do Nordeste brasileiro que sofrem com a escassez hídrica. Em 2007, Ab’Sáber escreveu o artigo “A quem serve a transposição do São Francisco?”, demonstrando sua preocupação com as decisões que afetam a natureza e a vida de comunidades ribeirinhas. Segundo o geógrafo:
“é compreensível que em um país de dimensões tão grandiosas, no contexto da tropicalidade, surjam muitas ideias e propostas incompletas para atenuar ou procurar resolver problemas de regiões críticas. Entretanto, é impossível tolerar propostas demagógicas de pseudotécnicos não preparados para prever os múltiplos impactos sociais, econômicos e ecológicos de projetos teimosamente enfatizados”.
Mesmo assim, a transposição começou a ser construída em 2007 e atualmente encontra-se 98,98% concluída, somando cerca de R$ 14 bilhões de investimentos, segundo o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR). (Figura 1)
Figura 1. Aziz Ab’Sáber criticava transposição do Rio São Francisco
(Fonte: Agência Brasil. Reprodução)
A barragem dos rios do Vale do Ribeira também recebeu destaque onde o geógrafo, ao lado de outros defensores ambientais, criticava novamente a falta de planejamento e de análises técnica, econômica, ambiental e sobretudo social para prever o máximo possível dos impactos nas áreas atingidas. Por mais de 30 anos a população do Vale do Ribeira, respaldada pelo Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB), conseguiu impedir que a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) do grupo Votorantin, avançasse no projeto. Porém, em 2021, o então governador de São Paulo, João Doria, anunciou a retomada da primeira fase da obra sob o argumento de que, quando pronta, a barragem controlará cheias do rio Ribeira de Iguape. O investimento nesta primeira etapa é estimado em mais de R$ 4 milhões, de acordo com o Governo de São Paulo.
Promoção da educação e um legado permanente
Ab’Sáber também construiu uma importante e engajada trajetória social, por meio de suas ações e posições públicas, provocando um papel mais ativo dos cientistas na sociedade e reforçando que a ciência deveria ser aplicada em benefício das pessoas e do meio ambiente em que vivem. “O professor Aziz Ab’Sáber foi um ativista em defesa da democratização da ciência e da universidade pública, sobretudo defendia que todos tivessem o acesso ao conhecimento científico independente da camada social que pertencia”, reforça Vicente Alves. “Para tanto, ele foi um entusiasta da promoção do diálogo com iniciativas sociais e culturais, desde palestras, criação de bibliotecas, aulas em cursinhos populares e em periferias, abertura da universidade para os mais pobres para que não somente os filhos de trabalhadores pudessem estudar em uma instituição pública de qualidade, mas também foi um defensor de que a universidade se aproximasse dos movimentos sociais rurais e urbanos de distintos segmentos da sociedade organizada”.
“Ele foi um crítico dos projetos de intervenção no espaço geográfico, sobretudo daqueles que pudessem gerar relevantes impactos socioambientais.”
Paralelamente, Ab’Sáber desempenhou um papel crucial à frente na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) atuando inicialmente como vice-presidente (1983-1985), secretário (1987-1989) e posteriormente como presidente (1993-1995), sendo sua gestão marcada por um forte compromisso e lutas pela ciência, meio ambiente e sobretudo a favor da educação. “Quando Aziz entrou na SBPC, a primeira coisa que ele fez foi enviar uma carta ao conselho demonstrando a intenção de criar um espaço para que os estudantes pudessem frequentar. Ele então utilizou uma sala grande que a sede tinha, adaptou-a com vários sofás e estantes e as preencheu com livros, deixando um ambiente confortável para todos. Ele adorava essa vivência com os jovens, era uma pessoa muito humanista”, recorda Eunice Personini, secretária-executiva da SBPC desde 1988. “Aziz também colocou muitos mapas nos corredores e tinha o maior prazer em ensinar, era um professor nato. Cada pessoa que o visitava, ele recebia com o mesmo cuidado, ajudava e orientava”, relembra. (Figura 2)
Figura 2. Aziz Ab’Sáber foi presidente da SBPC entre os anos de 1993 e 1995.
(Fonte: Acervo SBPC. Reprodução)
Após sua gestão, Ab´Saber foi nomeado como Presidente de Honra da entidade e tinha o costume de ir toda semana até a sede para produzir o Leituras Indispensáveis, cartilha que Eunice Personini o auxiliava a escrever. Nesse último dia ao terminarem, Ab’Sáber entregou para ela um material com sua obra e um bilhete escrito, pedindo-a que enviasse ao maior número de pessoas:
“Tenho o grande prazer de enviar para os amigos e colegas da Universidade o presente DVD que contém um conjunto de trabalhos geográficos e de planejamento elaborados entre 1946-2010. Tratando-se de estudos predominantemente geográficos, eu gostaria que tal DVD seja levado ao conhecimento dos especialistas em geografia física e humana da universidade”.
Eunice Personini lembra que toda situação soava como uma carinhosa despedida. “Eu fui acompanhá-lo até a saída e, enquanto o elevador não chegava, Aziz me falou de duas alunas da geografia que eram muito inteligentes, mas que tinham dificuldade em chegar até a universidade por morarem distante e que as auxiliava com a condução… Ele então me deu o nome delas e falou ‘Dona Nicinha, veja se a SBPC consegue ajudá-las’. E foi muito emocionante, porque parecia que de alguma forma, ele sabia que era o último encontro ali na SBPC. No dia seguinte, estávamos em reunião da diretoria e recebemos a notícia de seu falecimento, na manhã de 16 de março de 2012”.
“O professor Aziz Ab’Sáber foi um ativista em defesa da democratização da ciência e da universidade pública, sobretudo defendia que todos tivessem o acesso ao conhecimento científico independente da camada social que pertencia.”
Confira depoimento completo de Eunice Personini:
Aziz Ab’Sáber: vivências e memórias