Pesquisador defendia visão social, política e ecológica na proteção e manutenção das florestas
As últimas décadas do século XX testemunharam o surgimento de iniciativas que buscavam estudar e minimizar o impacto das ações humanas sobre os ecossistemas globais. Em 1988, por exemplo, a Organização das Nações Unidas (ONU) apoiou a criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), encarregado, até os dias atuais, de sintetizar os conhecimentos científicos relativos ao fenômeno até então conhecido como “aquecimento global”. No mesmo ano, em uma importante conferência sobre Clima e Desenvolvimento realizada em Hamburgo, na Alemanha, um desafio foi lançado para o Brasil: promover um projeto inédito de florestamento, aproveitando o potencial do território e as condições climáticas do país. A missão foi acatada por pesquisadores do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) e se tornou, anos depois, um dos trabalhos mais aclamados de um dos mais respeitados geógrafos e ambientalistas brasileiros, o defensor da Amazônia, Aziz Nacib Ab’Sáber.
Mesmo sem saber o que o futuro reservava, Ab’Sáber, falecido em 2012, deixou o interior de São Paulo aos 16 anos, em 1940, e encontrou no campus da USP seu refúgio. Apaixonado por bibliotecas e enciclopédias, iniciou os estudos no curso de História e Geografia e, logo na primeira semana, descobriu o rumo que daria à sua carreira. “Escolhi ser geógrafo no primeiro dia de aula na Universidade (…); eu gostei de ler a paisagem mais do que gostei de ler livros sobre história”, revelou o pesquisador em entrevista ao projeto A Ciência que Eu Faço, do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). Segundo Jacques Marcovitch, professor emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, colega de trabalho e amigo de Ab’Sáber, a paixão pelas paisagens cresceu junto com o geógrafo tanto como uma causa quanto como uma consequência. “Aziz Ab’Sáber afirmou certa vez que, em sua juventude, não podendo comprar muitos livros de geografia, decidiu ler a paisagem como forma de aprendizado”, recorda.
“Aziz Ab’Sáber afirmou certa vez que, em sua juventude, não podendo comprar muitos livros de geografia, decidiu ler a paisagem como forma de aprendizado.”
Após anos de dedicação durante a graduação e pós-graduação, Ab’Sáber finalmente viu seu sonho de trabalhar na USP se concretizar. Com poucas vagas disponíveis, o pesquisador, a princípio, aceitou o cargo recém-disponibilizado de jardineiro do campus, enquanto também lecionava geografia em escolas e faculdades. Apenas três meses depois, foi transferido para a função de prático de laboratório e assumiu uma posição mais próxima da academia. Conheceu de perto diversas paisagens e biomas brasileiros, incluindo a Amazônia, em 1952, e tornou-se livre-docente em 1965. Depois de duas décadas como docente, aposentou-se, mas continuou atuando na Universidade como professor visitante. Foi assim que, em 1988, ingressou no IEA ao lado de outros renomados pesquisadores de diversas áreas, como o administrador Jacques Marcovitch e o físico José Goldemberg. Lá, sua presença se tornou fundamental para enfrentar o desafio lançado ao Brasil na conferência de Hamburgo.
Pesquisas na Amazônia
De caráter tão interdisciplinar quanto Ab’Sáber idealizava, o IEA foi berço para a criação de uma ambiciosa iniciativa que visava a recuperação da cobertura vegetal brasileira, especialmente nas florestas. “Era um somatório de projetos regionais, relacionado a uma correta tipologia de florestamentos ou reflorestamentos”, afirma Jacques Marcovitch. A Amazônia, o maior bioma do país, se tornou foco do projeto, batizado como “Floram Amazônia – Florestas para o Meio Ambiente”. O pesquisador destaca que a iniciativa combinou as vivências de nomes como Leopold Rodés, experiente em questões tecnológicas, e Werner Zulauf, conhecedor de temas sobre a preservação ambiental, com a visão de Aziz Ab’Sáber, engajado na pesquisa e no reconhecimento do território nacional. José Goldemberg, que já foi reitor da USP e presidente da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC), além do membro responsável por trazer as questões tratadas na conferência para o IEA, concorda que a participação de Ab’Sáber foi essencial. “Era ele quem conhecia a região [amazônica], podia identificar quais áreas seriam adequadas para o reflorestamento e que tipo de espécies vegetais seriam indicadas para tal”, afirma.
“Julgava indispensável enxergar toda a área como um conjunto de fatores sociais e políticos, físicos e ecológicos, tendo como pano de fundo uma lamentável ‘filosofia da devastação’ então, ali, dominante.”
Além do conhecimento científico e territorial, as contribuições de Ab’Sáber para a criação do projeto Floram tiveram também um forte caráter social e pessoal, decisivo para que o projeto alcançasse a dimensão científica e o prestígio que conquistou. Jacques Marcovitch enfatiza o papel único do geógrafo e ambientalista na facilitação do diálogo entre empresários e acadêmicos, bem como na proteção da biodiversidade. “Defendia tolerância zero com os devastadores (…), não negociava porcentagens de redução e evitava que os espaços da Amazônia virassem mercadorias”, observa. O pesquisador também ressalta que Ab’Sáber buscava implementar uma abordagem multifacetada na Amazônia, considerando não apenas a geomorfologia e a vegetação da região. “Julgava indispensável enxergar toda a área como um conjunto de fatores sociais e políticos, físicos e ecológicos, tendo como pano de fundo uma lamentável ‘filosofia da devastação’ então, ali, dominante”, recorda. (Figura 1)
Figura 1. Projeto Floram visava promover o reflorestamento numa escala de magnitude inédita
(Fonte: Ambiente Legal. Reprodução)
Com os esforços de Ab’Sáber e dos demais integrantes do IEA, o projeto Floram se destacou no cenário mundial. A proposta apresentava potencial para posicionar o Brasil como protagonista nos debates ambientais, contribuindo para a mitigação das mudanças climáticas e a recuperação do meio ambiente. “O Brasil poderia colaborar com um programa internacional de sequestro de gás carbônico e alcançar vários resultados. O país se colocava em condições morais de exigir contrapartidas dos países pós-industrializados, principais responsáveis pela liberação e concentração de CO2 na atmosfera; ao mesmo tempo, poderia obter uma reserva de fitomassa, de grandes proporções, para efeitos produtivos múltiplos de interesse nacional”, explica Jacques Marcovitch. Apesar do enorme potencial, passados 25 anos desde sua concepção, as propostas do Floram não foram implementadas por falta de recursos financeiros, conforme observa Goldemberg.
Junto às dificuldades para o financiamento, outros desafios enfrentados durante a elaboração da proposta podem ter colaborado para o status atual do projeto. José Goldemberg explica, por exemplo, que alguns dos principais problemas identificados por Ab’Sáber nos anos 1980 caracterizam, até hoje, os trabalhos na Amazônia, como a enorme área envolvida, dificuldades de acesso e o grau de destruição do bioma original. “Só um profundo conhecedor da área como Ab’Sáber poderia tentar resolver estes problemas via reflorestamento”, acrescenta. Ainda assim, o projeto serve como referência e inspiração para novas propostas. “O Floram foi um precursor das ideias correntes de plantar um trilhão de árvores nas florestas devastadas no mundo (em particular na Amazônia) para resolver ou atenuar o problema da recaptura de carbono já lançado na atmosfera”, comenta o pesquisador, citando um projeto em desenvolvimento pelo Instituto Tecnológico de Zurich.
Legado
O legado de Aziz Ab’Sáber atinge a humanidade em diversos aspectos. Além da contribuição para o ambientalismo por meio de propostas como o Floram, o pesquisador inovou a Geografia ao introduzir o conceito de Redutos e Refúgios, inspirado na Teoria da Evolução do biólogo Charles Darwin. A ideia defende que, em um passado distante, mudanças climáticas e no nível das marés criaram zonas de clima seco que dividiram as florestas. Segundo o geógrafo, plantas e animais migraram para refúgios, ou redutos, úmidos, onde se desenvolveram separadamente por décadas. Quando a volta da umidade permitiu uma nova expansão das florestas, as espécies que viveram isoladas haviam acumulado tantas mudanças que se dividiram em espécies diferentes. O conceito é semelhante àquele defendido por Darwin em sua mais famosa Teoria, que considera o isolamento das populações um fator crucial para a diferenciação das espécies. Para Ab’Sáber, Darwin estava estudando os redutos sem saber. “O pioneiro em estudar os refúgios é certamente Darwin”, disse em entrevista ao Portal Dráuzio Varella em 2012.
“Qualquer projeto de reflorestamento depende da participação da população nativa que ajuda a implantar a floresta, se transforma no guardião da floresta e, dependendo das espécies plantadas, usa os produtos para sua manutenção.”
Como ativista, Aziz Ab’Sáber defendeu a ideia de uma Geografia mais humana, que levasse em conta as necessidades sociais em sua formulação. Jacques Marcovitch relembra que o amigo foi “introdutor, entre nós, do conceito de ‘geografia humanista’, defendido por Antoine Bailly”. A abordagem citada coloca o homem no centro das análises geográficas e incentiva a integração do geógrafo, pessoalmente, no estudo. Goldemberg acrescenta que o âmbito social defendido por Ab’Sáber se torna ainda mais relevante em projetos como o Floram, focados na conservação do meio ambiente e da biodiversidade. “Qualquer projeto de reflorestamento depende da participação da população nativa que ajuda a implantar a floresta, se transforma no guardião da floresta e, dependendo das espécies plantadas, usa os produtos para sua manutenção”, comenta. Nas palavras de Aziz Ab’Sáber durante a entrevista ao projeto A Ciência que Eu Faço, “o problema é saber se os projetos vão ser úteis para o conjunto da população, e não para alguns meros capitalistas”.
Prestes a completar seu centenário em outubro de 2024, Aziz Ab’Sáber se destaca, hoje, como um dos geomorfologistas brasileiros mais respeitados no mundo. Os reconhecimentos recebidos em vida, como dois Prêmios Jabuti, em honra por dois de seus livros, o Prêmio Internacional de Ecologia (1998), o Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente (2001), entre outros, somam-se aos frutos colhidos como consequência de seus trabalhos e ocupam lugar importante na memória coletiva. Ainda que parte dos diversos desafios identificados por ele para a preservação da Amazônia ainda não tenham sido superados, sua contribuição para o entendimento e a valorização do bioma foi essencial. Para Jacques Marcovitch, o legado é também uma lição. “A história do Brasil conquistou um intelectual que não via o universo ao seu redor apenas como objeto de análise, mas igualmente como cenário de injustiças por ele diagnosticadas e denunciadas”, conclui.
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Texto muito interessante!