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O papel das instituições e da sociedade civil na defesa da liberdade acadêmica

Quais estratégias podem ser adotadas para protegê-la em meio a retrocessos e desafios atuais? 

 

Liberdade ao realizar estudos visando o avanço do conhecimento, inovação e senso crítico. A definição de liberdade de pesquisa e acadêmica pode ser tão simples quanto a sua aplicação, já que é um fundamento que permite a utilização livre de ideias e questionamentos. Seu princípio essencial é muito mais que proteger a integridade plena do conhecimento de acadêmicos e pesquisadores: é o reflexo direto para o desenvolvimento de uma sociedade livre e democrática. “A liberdade científica é fundamental para o desenvolvimento e foi historicamente de grande importância: basta lembrar as grandes descobertas científicas do passado”, declara Sylvio Roberto Accioly Canuto, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pró-reitor de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP). “Ainda que a liberdade de pesquisa seja vital para um desenvolvimento sem amarras (embora sempre dentro dos limites éticos), ela não pode como um todo se desvincular da sociedade”.

 

Ameaças

A sociedade por muitas vezes vê, ao longo de sua história, seu direito básico à liberdade de pesquisa ameaçado por fatores que vão desde questões políticas e econômicas até éticas e censuras. “As ameaças podem ocorrer de diferentes formas, via difamação e ataque à credibilidade das instituições de pesquisa e dos pesquisadores, cortes em orçamentos e financiamentos levando ao estrangulamento das instituições e dos laboratórios de pesquisa, a desvalorização do trabalho acadêmico, e ainda, violações e pressões sobre professores e pesquisadores no exercício de suas atividades acadêmicas. Essas ameaças fragilizam o Estado democrático e comprometem a liberdade de expressão dos pesquisadores, limitando a diversidade de pensamento e a produção de conhecimento independente”, declara Lucymara Fassarella Agnez Lima, professora do Departamento de Biologia Celular e Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e secretária regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Rio Grande do Norte.

 

“A liberdade científica é fundamental para o desenvolvimento e historicamente foi de grande importância: basta lembrar as grandes descobertas científicas do passado”

 

Conforme o estudo “A liberdade acadêmica está em risco no Brasil?”, conduzido pelo Observatório do Conhecimento em parceria com a SBPC, 58% dos 1.116 pesquisadores entrevistados das cinco regiões do país afirmam conhecer experiências de pessoas que já sofreram limitações ou interferências indevidas em suas pesquisas. Ainda, 27% já limitaram aspectos de suas próprias pesquisas e conteúdos em suas aulas por receio de retaliações. “A liberdade para pesquisar e ensinar é, por si própria, um fundamento da democracia. Portanto, uma democracia plena não pode existir quando as pessoas são intimidadas, perseguidas e assediadas pelo trabalho que realizam na docência ou na pesquisa”, aborda Fernando Cássio, professor do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação na USP. “As instituições de ensino, de pesquisa, de fomento e de governo têm um papel fundamental na defesa dessas liberdades, uma vez que ataques ocorrem quase sempre contra indivíduos, visando infundir medo e estimular a autocensura. Isso envolve até a forma como os governos (que, frequentemente discordam dos diagnósticos dos especialistas, por razões óbvias) lidam com as críticas de pesquisadores”.  (Figura 1)


Figura 1. Pesquisa nacional com docentes, pesquisadores e estudantes de pós-graduação analisou cerceamentos às suas atividades
(Fonte: SBPC. Reprodução)

 

Atuações 

Ao promover uma cultura de liberdade acadêmica, desenvolver políticas de proteção eficazes e atuar em defesa da autonomia acadêmica, instituições como Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), ABC, SBPC, dentre outras, frequentemente atuam na promoção de debates e campanhas de conscientização. Além de sustentar os valores democráticos de liberdade de expressão e pensamento crítico, capacitando os cidadãos para avaliarem de forma independente as informações e argumentos apresentados em debates públicos. “As instituições científicas são bastiões na luta por maior desenvolvimento socioambiental, sendo essencial que estejam politicamente vivas, isto é, que escutem e dialoguem com a sociedade para melhoria na qualidade de vida hoje e sempre. A SBPC, como liderança nacional na defesa da ciência e defesa da sociedade, é parte essencial da luta pelo respeito social e desenvolvimento”, declara Vandick da Silva Batista, doutor e professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e secretário regional da SBPC de Alagoas.  Para Sylvio Canuto, “o conhecimento científico é um elemento essencial para o desenvolvimento de uma sociedade e tanto a SBPC como a ABC têm se engajado fortemente apontando que recursos para a ciência são verdadeiros investimentos para uma sociedade melhor”.

 

Divulgação científica 

A divulgação científica desempenha um papel essencial na promoção e defesa da liberdade de pesquisa e acadêmica ao tornar a ciência mais acessível e compreensível para o público em geral. Além disso, contribui para a transparência e a democratização do conhecimento, ao combater a desinformação e garantir que os resultados das pesquisas sejam compartilhados ampla e livremente. “A divulgação científica é um caminho importante para o reconhecimento público da ciência e, em certa medida, funciona como um estímulo para que a sociedade como um todo se acostume a valorizar a produção do conhecimento e a reconhecer as tentativas de atacá-la”, destaca Fernando Cássio. “Contudo, para além da divulgação científica que parte de nós, não é infrequente que o debate em diversas áreas seja dominado por não especialistas na grande imprensa e nas mídias alternativas. Esse ‘desperdício’ da inteligência nacional, que quase sempre simplifica perigosamente o debate público de questões complexas, também contribui para afastar a sociedade de pesquisadores e cientistas e para dessensibilizá-la em relação às tentativas de perseguir e intimidar aqueles e aquelas que trabalham para expandir as fronteiras do conhecimento”.

 

“A liberdade para pesquisar e ensinar é, por si própria, um fundamento da democracia. Portanto, uma democracia plena não pode existir quando as pessoas são intimidadas, perseguidas e assediadas pelo trabalho que realizam na docência ou na pesquisa”

 

A democracia depende de uma sociedade que tenha acesso à informação gerada com critérios transparentes e com amplo acesso. “Pesquisas com base científica que não sejam limitadas por repressão, contratos ou constrangimentos, se torna um instrumento de defesa da voz da natureza e da sociedade e viabiliza o desenvolvimento sustentável de empresas, da cidadania e da evolução cultural. Pseudo-informação, gerada por opiniões não embasadas em informação criteriosa e checável, é crime altamente danoso a todos, devendo ser fortemente combatida”, reforça Vandick da Silva Batista.

 

75 anos de comprometimento 

Idealizada no ano seguinte à fundação da SBPC em 1948, a revista Ciência & Cultura fomenta a disseminação do conhecimento científico, sempre comprometida com a liberdade de pesquisa e com as condições necessárias para sua realização. Durante seus 75 anos de existência, a revista testemunhou uma série de avanços científicos, transformações culturais e desafios enfrentados pela comunidade científica brasileira e internacional. Desde o período da ditadura militar, passando pelos mais recentes retrocessos à democracia e a Constituição Federal de 1988, a Ciência & Cultura é uma das publicações mais antigas de divulgação científica e um marco para a institucionalização da ciência no país. “Passamos um dos piores momentos da ciência brasileira com um governo negacionista. A SBPC foi e continua sendo um braço forte na defesa da ciência, das instituições e dos pesquisadores, denunciando e combatendo as ações antidemocráticas e o desmonte do nosso sistema de ensino e pesquisa. Entidades como a SBPC têm um papel fundamental em promover e proteger a autonomia científica, garantindo que os pesquisadores possam exercer suas atividades de forma independente”, declara Lucymara Lima.  (Figura 2)


Figura 2. Participantes da 29ª Reunião Anual da SBPC lotam o teatro da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e protestam contra a ditadura
(Fonte: Marcos Santili/ Editora Abril. Reprodução)

 

Ao celebrar essa longa jornada, é crucial reconhecer não apenas sua relevância, mas também o impacto como importante ferramenta para os debates contemporâneos. “A liberdade continua fundamental, mas hoje vivemos em uma sociedade muito complexa com demandas que necessitam que seus problemas sejam considerados. O conceito de excelência hoje coloca o engajamento social como um ponto relevante de uma instituição científica”, segundo Sylvio Canuto.

 

Papel da sociedade civil 

O papel da sociedade civil na defesa das liberdades de pesquisa e acadêmicas também é indispensável, em que estratégias podem ser adotadas para protegê-las em meio a estes retrocessos e desafios atuais. “A popularização e conscientização da pesquisa em todas as áreas do conhecimento são fundamentais, incluindo a valorização das instituições e dos profissionais, garantindo liberdade à pesquisa independente realizada com o rigor científico necessário”, segundo Lucymara Lima. Além disso, a sociedade civil tem o papel de pressionar autoridades e instituições pelo estabelecimento de políticas que garantam o desenvolvimento da ciência, tecnologia e a inovação (CT&I). “É necessário o engajamento nos debates públicos, a defesa de políticas que fortaleçam a autonomia das instituições de ensino e pesquisa, e a participação na promoção de um ambiente acadêmico plural e democrático”.

 

“É necessário o engajamento nos debates públicos, a defesa de políticas que fortaleçam a autonomia das instituições de ensino e pesquisa, e a participação na promoção de um ambiente acadêmico plural e democrático”.

 

A sociedade civil, ao mobilizar e defender a liberdade de pesquisa e acadêmica, contribui para a construção de uma sociedade indiscutivelmente mais democrática baseada no conhecimento. Para Vandick Batista, “precisamos de mais pontes entre os conhecimentos da pesquisa e as demandas sociais, demandando liberdade de expressão, mas também de realização. Para termos uma verdadeira Ordem e Progresso, há a necessidade da real comunicação entre gestores e pesquisadores, de onde conhecimentos venham a ser base das tomadas de decisão”.

 

Capa. Pesquisas com base científica que não sejam limitadas por repressão, contratos ou constrangimentos, se torna um instrumento de defesa da voz sociedade
(Fonte: ABC. Reprodução)
Priscylla Almeida

Priscylla Almeida

Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca.
2 comments
  1. Entre os grandes inimigos d Ciência estão os próprios cientistas na forma de assessores “anônimos” e vigilantes do trabalho alheio em vez de se preocuparem com os seus. Quando em situação de poder, como por exemplo membros da CAPES, criam regras que impõem camisas de força à Ciência brasileira. Fetiches como número de citações, índice de impacto, etc. colaboram para limitar a liberdade de pesquisa e a obtenção de financiamento. Reconheço, entretanto, que a produtivite, que substitui a qualidade pela quantidade, é um fenômeno global.

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