Pesquisadora dedicou sua vida a formar cientistas e promover a ciência, participando, criando e gerenciando várias sociedades científicas.
“Militância é a palavra que, cremos, melhor caracteriza a natureza da atuação de Carolina Bori em suas inúmeras frentes de trabalho. Militância na formação de docentes/pesquisadores; na implantação de cursos e laboratórios de Psicologia Experimental em todo o Brasil; na introdução e consolidação da Análise Experimental do Comportamento em nosso meio científico; junto a associações e órgãos de fomento, para viabilizar políticas adequadas de incentivo à pesquisa, não apenas na psicologia, mas para a ciência em geral; no esforço permanente de implementar melhores condições de educação, através de programação de cursos, de formação e aperfeiçoamento de docentes de primeiro, segundo e terceiro graus; na divulgação da ciência para os jovens e para a população em geral; e, com não menos empenho, na liderança da comunidade científica em prol da redemocratização do país, da defesa dos direitos humanos e de todas as outras lutas que o país tem assistido nas últimas décadas”. Assim descrevem Maria Amélia Matos e Anna Maria Almeida Carvalho em artigo publicado em uma edição especial da revista Psicologia USP de 2018, em homenagem à Carolina Bori.
Nascida em São Paulo em 1924, Carolina Martuscelli Bori se formou em Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), da Universidade de São Paulo (USP), em 1947. No ano seguinte foi contratada pela mesma universidade como professora assistente de Psicologia. Movida pela premissa de que a ciência tem que ser feita dentro e fora do laboratório, desde o início de sua carreira ela participou de sociedades científicas, tendo atuado na criação e gestão de várias delas. “Carolina foi uma personalidade política construída no trabalho pela ciência em seu aspecto mais amplo. Inspirada nos grandes modelos tinha uma forte convicção de que toda crítica tinha que ser estruturada sobre o conhecimento científico para ter validade, daí seu trabalho e dedicação para formar pessoas, formar cientistas”, conta Eda Terezinha de Oliveira Tassara, professora emérita do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. “Só que formar pessoas demandava recursos e, portanto, para garantir estes recursos era fundamental o envolvimento na política científica, nas instituições”, complementa Eda Tassara, que foi orientada por Carolina Bori em seu mestrado e em seu doutorado e que trabalhou com ela na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
“Carolina foi uma personalidade política construída no trabalho pela ciência em seu aspecto mais amplo.”
Conforme aponta o texto publicado no Memorial Carolina Bori, idealizado pela SBPC para celebrar o centenário da pesquisadora, Carolina Bori presidiu ou participou da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), da Sociedade de Psicologia de São Paulo e da Associação de Modificação do Comportamento. Fundou a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia e a Associação de Docentes da USP. Criou e dirigiu o Departamento de Psicologia na então recém-criada Universidade de Brasília (UnB), no início da década de 1960. Sua carreira como cientista pioneira da Psicologia Experimental se confunde com uma atuação institucional ativa ao longo de toda sua trajetória.
A consolidação do Curso de Psicologia no Brasil talvez tenha sido um dos primeiros desafios institucionais que Carolina abraçou. Ciente do impacto no contexto da reforma universitária que estava em curso nos anos 1960 e que culminaria com a substituição do sistema de cátedras pelo de departamentos, institutos de centros, ela passou a lutar para a Psicologia ser reconhecida como uma ciência autônoma. Isso porque, até os anos 1960, no Brasil, esta não era uma área de pesquisa formalmente constituída. “É a partir dos anos 1950 que começam os primeiros esforços para a autonomização da Psicologia no Brasil, ou seja, como uma área independente da Educação, da Filosofia ou da Medicina”, explica Gabriel Vieira Cândido, psicólogo e pesquisador da área de História da Psicologia, que estudou a trajetória de Carolina Bori em seu doutorado, concluído em 2014 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP.
“Sua atuação na SBPC chama a atenção pelas diversas iniciativas nas ciências, no Brasil, extrapolando o campo da Psicologia.”
“A regulamentação se concretizou em 1962, por meio da Lei n.º 4.119. Carolina Bori foi fundamental em todo o processo, desde seu empenho na elaboração do projeto de lei e na busca de assinaturas”, lembra Gabriel Cândido, que está preparando um livro sobre ela, a ser publicado ainda este ano, com apoio da SBPC. “A história dela como cientista acabou ficando ofuscada por essa motivação de consolidar a Psicologia como um campo científico, de formar pessoas todas as áreas, de lutar pelo fortalecimento da ciência como um todo no Brasil. Nesse sentido, ela foi assumindo cada vez mais posições políticas, não como um objetivo final, mas como um meio para fazer jus a essas convicções”, pontua Eda Tassara.
Constituinte
Nesse sentido, a atuação de Carolina Bori na SBPC é emblemática. “Sua atuação na SBPC chama a atenção pelas diversas iniciativas nas ciências, no Brasil, extrapolando o campo da Psicologia”, escreveu Gabriel Cândido. Seu primeiro cargo na diretoria foi em 1973, como primeira secretária, assumindo posteriormente a secretaria geral (1977-1981), depois a vice-presidência (1981-1986) e, finalmente, a presidência (1986 a 1989). “Foi algo extraordinário uma mulher assumir a presidência da SBPC, mas, ao mesmo tempo, isto foi uma conquista que construiu ao longo de toda a sua trajetória na entidade guiada por uma visão iluminista da ciência, que para ela, era um motor de desenvolvimento e de transformação do país”, lembra Eda Tassara. (Figura 1)
Figura 1. Carolina Bori em sessão de encerramento da 56ª Reunião Anual da SBPC realizada em Cuiabá em 2004
(Fonte: Acervo SBPC. Reprodução)
Como presidente da SBPC, Carolina Bori articulou a elaboração de propostas da comunidade científica para a atual Constituição Federal, promulgada em 1988. Em 17 de julho de 1987, um documento de 15 páginas com propostas para as áreas de ciência e tecnologia, educação, saúde, espaço territorial, meio ambiente e populações indígenas foi pessoalmente entregue por Carolina para o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães. “Os pesquisadores atuaram como assessores, muitas vezes informais, na Constituinte. Durante a abertura da 39ª Reunião Anual da SBPC, realizada na UnB em 1987, Carolina afirmou: ‘Estamos na expectativa de ação, urgente, imediata, no sentido de que nossas propostas se concretizem na nova Constituição como uma contribuição da comunidade acadêmica para a criação de um país moderno, um país novo, um país que faça valer os direitos das pessoas que vivem nele’”.
A Constituição de 1988 é a primeira que manifesta de modo explícito a importância estratégica da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil ao estabelecer que é responsabilidade do Estado promover o progresso da ciência visando o desenvolvimento econômico e social e o bem-estar da população. O Artigo 218 determina que “a pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências”. “Acredito que Carolina Bori fez parte de uma comunidade de grandes nomes da ciência brasileira, como Milton Santos e Cesar Lattes, pessoas que tinham um programa para o país. E isso fez toda a diferença!”, destaca Gloria Malavoglia, bióloga e idealizadora do Canal Ciência, um serviço de divulgação científica do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). “Em minha opinião, Carolina Bori representa essa geração de cientistas ao captar essa vontade de expandir as fronteiras da academia e criar uma ponte com a sociedade”, complementa. (Figura 2)
Figura 2.Como presidente da SBPC, Carolina Bori articulou a elaboração de propostas da comunidade científica para a atual Constituição Federal, promulgada em 1988
(Fonte: Acervo SBPC. Reprodução)
Divulgação de ciência e educação
E essa ponte dependia de uma boa comunicação com a sociedade, ou seja, dependia de uma boa divulgação da ciência. “A difusão era a expressão de uma consciência da necessidade de intervir na sociedade”, pontua Gloria Malavoglia que, na década de 1980, trabalhou no departamento de difusão científica da pesquisa brasileira criado por Carolina Bori na SBPC. “Ela fez algo inédito que foi idealizar um programa de bolsas do CNPq para atuação de pesquisadores em divulgação de ciência e ainda estabelecer parcerias com veículos de comunicação como a Rádio USP e a Rádio Cultura, de São Paulo”, conta. Ainda segundo ela, buscando apoiar o trabalho dos jornalistas na cobertura das reuniões anuais da SBPC e, com isso, ampliar a presença das pautas de ciência na mídia, Carolina Bori capitaneou a criação de uma sala de imprensa e de uma comissão de difusão científica que selecionava temas e pautas que poderiam gerar interesse junto à imprensa.
Uma das atuações institucionais pouco lembradas de Carolina Bori é sua passagem pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), criado no Rio de Janeiro em 1946, como uma Comissão Nacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Após atuar como secretária na longa gestão do professor Oscar Sala, ele a indicou substituí-la quando se aposentou, sugestão que foi prontamente aprovada pelo Itamaraty. “Sua trajetória até chegar a essa posição, no campo da formação de professores nas diferentes áreas científicas, foi enorme e cobriu várias iniciativas e ações. Passou pela participação na criação de programas de pós- graduação em ensino na USP, tendo prosseguido no IBECC. Participou das atividades da Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais (Cecae), da USP, articulando professores de Ciências em atividades de extensão. Por esse envolvimento foi diretora da Estação Ciência, um centro de difusão científica, tecnológica e cultural da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, onde permaneceu até 1994, quando entrou na compulsória”, contou a professora Eda Tassara. “São dimensões amplas de ação que transcendem a Psicologia e que criaram fatos irreversíveis”, destaca.
“Ela entendia a necessidade de conferir maior flexibilidade para os cursos poderem fazer arranjos próprios, possibilitando uma atualização nas áreas de atuação do psicólogo para incluir temas como a promoção da qualidade de vida.”
Mesmo após aposentada, Carolina se manteve ativa. Entre 1994 e 1999, ela compôs a comissão de especialistas em ensino de psicologia criada para discutir alternativas à formação na área que posteriormente gerariam subsídios para uma revisão das diretrizes curriculares para o ensino de psicologia. “Uma das principais discussões do grupo era sobre como garantir flexibilidade e inovações nos cursos sem correr o risco de uma especialização precoce dos profissionais”, conta Antonio Virgílio Bastos, do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que trabalhou com Caroline Bori na comissão. “Ela percebia os limites do primeiro currículo mínimo de cuja elaboração ela havia participado nos anos 1960 e entendia a necessidade de conferir maior flexibilidade para os cursos poderem fazer arranjos próprios, possibilitando uma atualização nas áreas de atuação do psicólogo para além das tradicionais ‘clínica, escola e trabalho’, e de incluir temas como a promoção da qualidade de vida”, complementa Bastos que também é conselheiro do Conselho Federal de Psicologia.
Carolina Bori morreu em 2004 devido a complicações advindas de sequelas de um desastre de carro que ela sofreu em São Carlos anos antes e que foram agravadas por uma queda que ela sofreu em meio às atividades da reunião anual da SBPC daquele ano. Tinha 80 anos.
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