Pesquisadora defendia a necessidade de integrar a comunidade acadêmica para a criação de um país moderno
Janeiro de 1924. Em uma sexta-feira comum da capital paulista, vinha ao mundo Carolina Bori, uma das mais ilustres personagens da história científica brasileira. Ao longo de quase 60 anos de carreira, Carolina Bori lutou incansavelmente pelo desenvolvimento da ciência no Brasil e pela valorização da educação, duas de suas maiores paixões. O alcance e os impactos de suas batalhas foram tamanhos que, mesmo após seu falecimento, em 2004, aos 80 anos, seu nome e legado continuam rendendo frutos, seja na voz de seus filhos e netos acadêmicos, seja nas palavras de meninas e mulheres motivadas por suas conquistas, nas leis e normas que ajudou a construir ou nas medidas a favor da difusão científica que defendeu. Carolina Bori foi pioneira em tempos de crise democrática e sua obra transformou o rumo da ciência brasileira.
No âmbito profissional, o primeiro amor de Carolina Bori foi a Pedagogia. Foi esse o curso que a levou, no início da década de 40, para a Universidade de São Paulo (USP) e permitiu que se aproximasse do ambiente acadêmico. Durante sua graduação, descobriu a Psicologia, que, na época, era ensinada apenas como disciplina isolada e ligada à Filosofia. Pouco tempo depois, se viu encantada pelo potencial científico dessa área do conhecimento dedicada ao cuidado pelas pessoas. O novo interesse rendeu à Carolina Bori uma especialização na área e, em seu último ano de formação, um convite feito pela docente Annita Cabral para atuar como professora assistente na cadeira de Psicologia da USP.
A primeira psicóloga do Brasil
Junto à Annita Cabral, Carolina Bori teve papel crucial na criação do curso de Psicologia da USP e participou de diversos momentos importantes para a consolidação da profissão de psicólogo no Brasil, que, no fim dos anos 1900, ainda engatinhava em termos de regulamentação. “Ela organizava (…) comissões de professores, profissionais e estudantes para visitarem políticos e obterem apoio para a aprovação da lei que regulamenta a formação em Psicologia”, relembrou Maria Amelia Matos, também pioneira na Psicologia brasileira, durante a XXIV Reunião Anual de Psicologia, realizada em Ribeirão Preto em 1994. Como fruto de sua luta, Carolina Bori viu nascer, em 1962, a lei nacional de número 4.119/62, que determina o currículo mínimo para a formação em Psicologia no Brasil e regulamenta a profissão no país. Única mulher entre os primeiros membros do conselho da categoria, além de uma das precursoras da Análise Comportamental no país, Carolina Bori foi a primeira pessoa a ser registrada como psicóloga no Brasil.
“Trabalhou incansavelmente para a SBPC ser protagonista na construção da atual Constituição Federal, promulgada em 1988.”
Ao longo de sua carreira, ajudou ainda a implantar os cursos de Psicologia na Universidade Estadual Paulista de Rio Claro (Unesp), na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Também orientou mais de 100 teses e dissertações e foi fundadora e presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, além de ter presidido e participado de diversas outras sociedades dedicadas às ciências.
Engajada na missão de firmar um contato maior entre a Psicologia e as demais ciências e também movida pela vontade de estruturar um sistema nacional científico no país, em 1969, Carolina Bori passou a integrar o conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Logo nos primeiros anos, o empenho da pesquisadora foi notável. “Carolina se entregou, desde logo, de corpo e alma à SBPC”, ressalta Luiz Edmundo de Magalhães, professor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e colega de Carolina Bori, em texto publicado no Scielo Brasil em 1998. (Figura 1)
Figura 1. Carolina Bori foi a primeira presidente mulher da SBPC
(Fonte: Acervo SBPC. Reprodução)
Como resultado de seu engajamento, quase 20 anos depois, em 1987, a pesquisadora alcançou a presidência da sociedade. Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química da Unesp e membro do Conselho da SBPC, lembra que Bori foi a primeira mulher a conquistar esse cargo e teve um papel decisivo na formulação da nova democracia que estava sendo construída. “Ficou apenas dois anos no comando da SBPC, mas, em seu mandato, trabalhou incansavelmente para a SBPC ser protagonista na construção da atual Constituição Federal, promulgada em 1988”. Como presidente, destacava causas indígenas, da mulher e do meio ambiente e defendia a necessidade de integrar a comunidade acadêmica para a criação de um país moderno. “Um país que faça valer os direitos das pessoas que vivem nele”, disse Carolina Bori em julho de 1987, durante a abertura da 39ª Reunião Anual da SBPC, realizada na UnB.
Bori e o pioneirismo feminino
Eda de Oliveira Tassara, que conviveu por 25 anos com Bori e hoje é professora do Instituto de Psicologia da USP, apontou, em declaração publicada em 1998, que Carolina foi essencial para que seus alunos, orientandos e parceiros desbravassem e ocupassem novos espaços. Em especial, as mulheres. “Engajada na construção da história do país, ela ofereceu, a mim e a todos que a circundavam, oportunidades enriquecedoras de vir a contribuir para e nesta construção”, disse. No entanto, as conquistas de Carolina Bori há tempos deixaram de ser um legado apenas para aqueles que conviveram com ela e resistem, com seus efeitos, até os dias de hoje.
“Engajada na construção da história do país, ela ofereceu oportunidades enriquecedoras de vir a contribuir para e nesta construção.”
Após ocupar o cargo de primeira presidente mulher em uma sociedade antes liderada apenas por homens, abriu portas para que outras duas mulheres notórias assumissem o mandato posteriormente: a bioquímica Glaci Zancan e a biomédica Helena Nader. “Hoje em dia, a maior parte da diretoria da SBPC é constituída por mulheres, mas não era. O exemplo de Carolina Bori está se reproduzindo e melhorando”, pontua Fernanda Sobral, ex-vice-presidente da SBPC e professora emérita do Instituo de Ciências Sociais da UnB.
“[Até hoje, a SBPC] teve apenas três mulheres presidentes! Carolina Bori, sendo a primeira, viveu todo o preconceito de um Brasil subdesenvolvido, na época, enfrentando muitos problemas de ordem econômica e de desenvolvimento social”, comenta Vanderlan Bolzani. Em entrevista ao podcast “O Som da Ciência”, uma produção da SBPC, Eunice Maria Fernandes Personini, secretária-executiva da entidade, disse que a resistência à eleição de Bori para o cargo de presidente foi marcante. “Naquela época, as cédulas de votação eram impressas e nós, funcionários da comissão eleitoral, ficávamos numa sala para a apuração. Um grupo de sócios nos avisou que iria conferir e fiscalizar as eleições. Era uma resistência muito grande, porque o outro candidato que estava concorrendo era um homem”, relembra. Carolina Bori não cedeu à pressão e fez parte de um movimento revolucionário na entidade que ficaria registrado na história como um marco de pioneirismo feminino.
Ainda que a atuação de Carolina Bori tenha surtido efeitos positivos para a presença de cada vez mais mulheres em posições relevantes nas sociedades científicas brasileiras, Fernanda Sobral ressalta que ainda há um longo caminho pela frente. “Embora as mulheres sejam a maioria atualmente nos cursos de mestrado e doutorado, por exemplo, quando analisamos os dados salariais, elas ainda recebem menos”, diz a professora. “No topo da carreira e líderes de destaque nacional e internacional, os homens ainda são dominantes. Apenas 38% dos líderes são mulheres e recebem, em geral, cerca de 78% do salário pago aos homens na mesma função”, completa Vanderlan Bolzani. Nesse cenário, o eco de Carolina Bori resiste e seu nome está presente em diversas iniciativas que buscam dar voz às mulheres cientistas.
Um legado atemporal
Um exemplo é o Prêmio “Carolina Bori Ciência e Mulher”, criado por Vanderlan Bolzani em 2019 como uma forma de ampliar o reconhecimento de meninas e mulheres cientistas. A ideia surgiu em 2018, quando a pesquisadora era vice-presidente da SBPC, sendo acatada pela diretoria como uma homenagem para grandes personalidades no cenário científico. “[Até então], a SBPC, criada no pós-segunda guerra, só tinha prêmios dedicados a homens!”, relembra a idealizadora. Em fevereiro de 2024, a celebração completou sua quinta edição, premiando a química Yvonne Mascarenhas, a antropóloga Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha e a biomédica Regina Pekelmann Markus. (Figura 2)
Figura 2. Prêmio “Carolina Bori Ciência e Mulher” homenageia a pesquisadora e reconhece meninas e mulheres cientistas
(Foto: SBPC. Reprodução)
Para Fernanda Sobral, que já participou da premiação como coordenadora de avaliação, a honraria tem um papel essencial para estimular a formação e a ascensão de mulheres cientistas. “Esse prêmio mostra ao público meninas e mulheres reconhecidas e serve de estímulo para poderem entrar na carreira científica”, defende.
As lutas de Carolina Bori pelo desenvolvimento científico também são homenageadas com o sucesso de uma agência de divulgação científica que leva seu sobrenome, a Agência Bori. A plataforma, fundada pelas jornalistas e pesquisadoras Sabine Righetti e Ana Paula Morales, tem o objetivo de desenvolver soluções para tornar o conhecimento científico de pesquisadores brasileiros acessível. “A gente acessa esse conhecimento por meio de uma tecnologia inédita que, através de parcerias com periódicos científicos e editoras do mundo todo, mapeia a ciência brasileira em tempo real”, elucida Morales. “Já divulgamos à imprensa, de maneira explicada, cerca de 600 estudos — e metade deles tem mulheres como porta-voz, porque a diversidade, inclusive de gênero, está na nossa espinha dorsal”, completa a fundadora.
“Embora as mulheres sejam a maioria atualmente nos cursos de mestrado e doutorado, por exemplo, quando analisamos os dados salariais, elas ainda recebem menos.”
Sabine Righetti enfatiza que a escolha do nome não foi por acaso. “Nós duas, fundadoras da Bori, sempre nos deparamos com homenagens a pesquisadores homens ao longo da nossa carreira. Então, desde que começamos a desenhar a nossa iniciativa para dar voz à ciência nacional, pensamos em homenagear uma cientista brasileira”. A jornalista conta que Carolina Bori foi encontrada durante as pesquisas para nomear a Agência e que o fato de a psicóloga ter sido a primeira mulher presidente da SBPC chamou a atenção. “Entendemos que a SBPC é o principal órgão científico do país, então presidi-lo pela primeira vez é muito simbólico. Não tivemos dúvida, nunca nem tivemos uma opção de nome como plano B”, diz, em referência à pesquisadora que também defendia a divulgação científica como parte essencial das ciências.
Memória e história de Carolina Bori
Mesmo após sua partida, 20 anos atrás, diversas outras homenagens à Bori podem ser encontradas no meio acadêmico e científico, como uma plataforma nacional de revalidação dos diplomas internacionais e uma série de prédios de universidades públicas. Além disso, suas contribuições, bem como sua história e seus ideais, estão reunidos no Memorial Carolina Bori, um portal virtual preparado como parte das homenagens da SBPC para o centenário da pesquisadora, recém-completado em janeiro de 2024. O site reúne depoimentos, documentos e textos escritos por Carolina Bori, assim como vídeos da própria pesquisadora, fotografias e um gráfico de sua árvore genealógica acadêmica mostrando a quantidade de filhos, netos e bisnetos que ajudou a formar. (Figura 3)
Figura 3. Memorial Carolina Bori, desenvolvido pela SBPC, celebra centenário da pesquisadora
(Fonte: Divulgação)
O legado de Carolina Bori, refletido na vasta quantidade de pessoas, projetos e iniciativas que influenciou, seja em vida ou através de sua memória, é uma parte fundamental da história da ciência e da democracia no Brasil. Nesse contexto, a ideia de relembrar e celebrar suas lutas atua como um farol para construção de uma nação mais comprometida com os ideais que Carolina Bori prezava, como a igualdade de gênero, a integração da ciência na formulação de políticas públicas, a defesa da educação e a promoção de um diálogo mais próximo entre a ciência e a sociedade. “Temos que conhecer nossa história para entender o presente e projetar o futuro”, conclui Vanderlan Bolzani.
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