Carolina Bori: a psicologia brasileira como missão

Em 1958, a Universidade de São Paulo abriu as portas para a primeira turma de Psicologia, marcando um passo crucial na regulamentação e valorização da profissão no país.

Resumo

Em 1958, foram abertas inscrições para o primeiro vestibular de Psicologia no Brasil, na Universidade de São Paulo, onde fui aluna da primeira turma. Antes disso, a Psicologia era ensinada como disciplinas isoladas em cursos de Filosofia e Pedagogia, com alguns cursos específicos oferecidos pelo Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP) no Rio de Janeiro e por cursos de Medicina em várias partes do país. O curso na USP, inicialmente de três anos, conferia o diploma de Bacharel em Psicologia, mas sem validade profissional. Esse reconhecimento foi buscado nacionalmente, gerando discussões sobre a formação dos psicólogos. Simultaneamente, um grupo de médicos tentou regulamentar a profissão, restringindo-a a funções auxiliares de médicos.

Em 1958 foram abertas as inscrições para o primeiro exame vestibular, no Brasil, para um curso de Graduação em Psicologia. No caso, este curso estava sendo aberto na Universidade de São Paulo, e eu fui uma das alunas da primeira turma de estudantes admitidos.

Anteriormente a este vestibular, o ensino de Psicologia no Brasil se fazia através de disciplinas isoladas, ministradas em cursos de Filosofia e de Pedagogia. Além disso, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), no Rio de Janeiro, oferecia cursos de psicometria voltados para o treinamento no uso de testes; e cursos de Medicina pelo Brasil afora ofere­ciam disciplinas voltadas para a prática psiquiátrica, as quais enfocavam a Psicanálise e apenas bordejavam a Psicologia (e isso em seu aspecto apenas clínico). Algumas sociedades, científicas ou profissionais, ofereciam espora­dicamente cursos de extensão cultural, ministrados por psiquiatras e psi­cólogos clínicos, ou por professores, ex-bolsistas de regresso de suas viagens ao exterior.

O curso ministrado na USP era de nível superior, porém tinha âmbito exclusivamente estadual. Inicialmente era um curso de três anos de duração e conferia apenas o diploma de Bacharel em Psicologia, o que não permitia, a quem quer que fosse, o exercício profissional em carreira alguma. Para atender a ansiedade dos alunos, buscou-se o seu reconhecimento e validade ao nível nacional. Isto acendeu uma discussão sobre a formação desses, e de outros alunos futuros.

Simultaneamente, uma tentativa de um grupo de médicos, liderados por Newton Campos, médico psiquiatra e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tentava fazer passar uma lei que, regulamentando o exer­cício profissional do psicólogo, o restringia às funções de mero auxiliar de médico, tipo “enfermeira sem formação biológica”.

Dentro deste duplo contexto se situa meu primeiro contato com a Pro­fessora Carolina Martuscelli Bori. (Figura 1)


Figura 1. Maria Amelia Matos e Carolina Bori.
(Fonte: ABPMC. Reprodução)

 

Inicialmente, à frente da Sociedade de Psicologia de São Paulo, e pos­teriormente, da Associação Brasileira de Psicólogos, Carolina Bori liderou um movimento de rejeição da proposta do Rio de Janeiro e de aprovação do estatuto que, ainda hoje, regulamenta o exercício profissional do psicólogo no Brasil.

Eu me lembro de reuniões em salas de aula na Maria Antônia e no vizi­nho Colégio Rio Branco, e/ou em porões na “Saúde Mental”, onde se discutia acalorada e apaixonadamente, ao lado da questão do exercício profissional, e a seu pretexto acredito hoje, a questão mais básica da formação acadêmica e profissional em Psicologia. Discutiam-se experiências realizadas em outros países e as necessidades do Brasil; discutiam-se o modelo de psicólogo que se desejava formar e as condições para isso. Em todos esses momentos as inter­venções de Carolina recolocavam o rumo dos debates, elevavam o nível das aspirações, e serenavam os ânimos. Mais do que isso, produziam propostas concretas que desaguavam em projetos e anteprojetos de lei.

 

“Carolina Bori liderou um movimento de aprovação do estatuto que, ainda hoje, regulamenta o exercício profissional do psicólogo no Brasil.”

 

E essas propostas não ficavam no papel: ela organizava grupos de es­tudantes e profissionais para irem a campo obter assinaturas de apoio da co­munidade aos estatutos do exercício da profissão de psicólogo no Brasil* organizava comissões de professores, profissionais e estudantes para visitarem políticos e obterem apoio para a aprovação da lei que regulamenta a forma­ção em Psicologia. Foi presidente da comissão de estudos que elaborou o projeto de lei para a constituição do currículo mínimo para cursos de Psico­logia, até hoje em vigor. Foi presidente da comissão que supervisionou a transição entre esses dois momentos do exercício profissional, realizando a delicada tarefa de, defendendo a recém-criada profissão, proteger os direitos daqueles que, sem diploma ou registro, já a praticavam no país.

Contudo, suas atividades para o desenvolvimento da Psicologia no país não se encerraram aqui.

Foi a principal responsável pela criação e disseminação de laboratórios de ensino em Psicologia Experimental no país. Introduziu formalmente a ati­vidade de laboratório como parte integrante da disciplina Psicologia Experi­mental, pela primeira vez no país, quando docente em Rio Claro. Compreen­dendo a importância de uma produção nacional de equipamentos para esses laboratórios, montou projetos de planejamento e construção e protótipos nacionais para equipamentos de ensino e pesquisa em Psicologia Sensorial, Psicofísica, Psicologia da Aprendizagem, e Análise Experimental do Com­portamento.

Em 1968, ajudou a criar e estruturar o Departamento de Psicologia So­cial e Experimental do Instituto de Psicologia da USP. Juntamente com o Professor Walter Hugo Cunha idealizou e implantou o excelente curso de pós-graduação em Psicologia Experimental desse Instituto. Presidiu a comis­são que instituiu e organizou o Curso de Pós-Graduação no Instituto de Psi­cologia, estabelecendo suas características iniciais e itinerário futuro. (Figura 2)

 
Figura 2. Carolina Bori trabalhou incansavelmente para unir grupos em prol da institucionalização da psicologia como ciência no Brasil
(Fonte: ABPMC. Reprodução)

 

Fundou o antigo Departamento de Psicologia da Universidade Bra­sília (hoje Instituto de Psicologia), assessorou Darcy Ribeiro na idealização da estrutura dos cursos de formação básica naquela Universidade. Idealizou e organizou o Curso de Mestrado em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos. Participou das discussões de criação do Curso de Mestrado em Análise do Comportamento na Universidade Federal do Pará. Assessorou a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte na criação de núcleos de pesquisa. Alterou profundamente o ensino em escolas técnicas do país, introduzindo o treino de seus professores em programação de ensino.

 

“Alterou profundamente o ensino em escolas técnicas do país, introduzindo o treino de seus professores em programação de ensino.”

 

Deu ao Sistema Personalizado de Ensino (PSI) um novo e inteiramente diferente rumo: A análise de Contingências na Programação de ensino. Dife­rentemente da versão do Professor Keller, que se centrava na análise dos te­mas e textos a serem estudados e no como isso seria avaliado, a Análise de Contingências em Programação de Ensino voltava-se para a análise das ha­bilidades e conhecimentos necessários para o exercício de uma atividade, e para o planejamento das condições de ensino que favorecessem a aquisição dessas habilidades e conhecimentos. Este foi, e continua sendo, pois não ex­cedido, o mais pristino exemplo, no Brasil e no exterior, de aplicação dos princípios da Análise Experimental do Comportamento à análise das contin­gências envolvidas no ensinar e no aprender.


Texto publicado originalmente em:
MATOS, Maria Amélia. Carolina Bori: a Psicologia Brasileira como Missão. Psicologia USP. São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.
Leia o texto original em:
http://www.scielo.br/cgi-bin/fbpe/fbtext?got=last&pid=S0103-6564(98)00900109&usr=fbpe&lng=en&seq=0103-6564-003.
* Esse texto foi atualizado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Capa. Carolina Bori promoveu a valorização da ciência no Brasil através de sua liderança e dedicação à pesquisa
(Fonte: ABPMC. Reprodução)
Maria Amélia Matos foi uma das pioneiras na área de psicologia no Brasil. Foi professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), secretária na primeira gestão da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e contribuiu para a criação e a manutenção do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Experimental da USP.

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