A jornada pioneira do médico brasileiro Maurício Oscar da Rocha e Silva, da observação do veneno da jararaca à criação de medicamentos que transformaram a vida de milhões ao redor do mundo.
Em 1949, no Instituto Biológico de São Paulo, um experimento com o veneno da jararaca deu início a uma das maiores descobertas científicas do Brasil. Liderado pelo médico carioca Maurício Oscar da Rocha e Silva, o estudo identificou a bradicinina, uma molécula que revolucionaria o tratamento da hipertensão e de doenças cardíacas.
A bradicinina, cujo nome deriva das palavras gregas para “movimento” e “lento”, é um peptídeo formado por aminoácidos com propriedades vasodilatadoras. Ela reduz a pressão arterial e desempenha um papel crucial na inflamação e na defesa do organismo. Durante pesquisas sobre a histamina, Rocha e Silva observou que o veneno da jararaca causava reações vasodilatadoras que não podiam ser explicadas por essa substância já conhecida. Essa descoberta revelou um novo mecanismo biológico. Contando com a colaboração de Wilson Teixeira Beraldo, seu assistente formado em Medicina pela então UMG, e Gastão Rosenfeld, a equipe conseguiu isolar a substância, que resultou em um pó. No entanto, a aplicação terapêutica só se tornou possível anos depois, quando Sérgio Ferreira, discípulo de Rocha e Silva, isolou o Bradykinin Potentiating Factor (BPF) do veneno da jararaca.
“Maurício Oscar da Rocha e Silva não apenas liderou uma descoberta revolucionária, como também formou uma geração de cientistas que ampliaram o impacto de sua pesquisa.”
A bradicinina é uma cadeia de aminoácidos com função hipotensora, atuando em diversos órgãos e tecidos, além de mediar processos inflamatórios. Ela faz parte da atividade fisiológica do corpo humano, agindo como vasodilatadora e reduzindo a pressão nos vasos arteriais. Nos anos 1940, Rocha e Silva investigava a histamina, outra substância vasodilatadora, quando, em um experimento com cobaias e amostras de veneno de jararaca (Bothrops jararaca), ele e sua equipe perceberam que a resposta ao veneno não estava relacionada à histamina, já que anti-histamínicos haviam sido utilizados. Em poucos dias de trabalho, o novo princípio foi desvendado, marcando um avanço significativo para a ciência.
A primeira comunicação sobre a bradicinina foi publicada em 1949 na edição inaugural da revista Ciência & Cultura, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e no American Journal of Physiology.

Figura 1. Maurício Oscar da Rocha e Silva
(Fonte: Centro de Memória / SBPC)
Da bradicinina ao captopril
O segundo ato dessa história começa em 1957, quando Rocha e Silva se transferiu da Seção de Bioquímica e Farmacodinâmica do Instituto Biológico para a USP, assumindo o Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP). Lá, ele e seu grupo de pesquisa deram continuidade aos estudos sobre a bradicinina, explorando diferentes aspectos dessa molécula. Um de seus discípulos, o então estudante Sérgio Henrique Ferreira, foi incumbido de buscar uma substância capaz de inibir a destruição da bradicinina no organismo. Isso porque a bradicinina sintética, ao ser injetada na corrente sanguínea, causava uma queda de pressão muito breve, já que era rapidamente degradada ao passar pelos pulmões. Um efeito mais duradouro poderia torná-la útil no controle da pressão arterial.
“A descoberta da bradicinina e sua aplicação prática no captopril são um exemplo notável de como a ciência pode transformar conhecimento em inovação que salva vidas.”
Ferreira descobriu a resposta no próprio veneno da jararaca, que continha substâncias capazes de prolongar a ação da bradicinina. Essa descoberta abriu portas para colaborações internacionais, incluindo o laboratório de John R. Vane, futuro ganhador do Prêmio Nobel. Juntos, eles demonstraram que o veneno da jararaca também inibia a conversão de angiotensina-1 em angiotensina-2, uma substância que eleva a pressão arterial. Esses achados culminaram no desenvolvimento do captopril, o primeiro medicamento oral eficaz no tratamento da hipertensão. Lançado pela farmacêutica Squibb, o remédio é utilizado até hoje, salvando milhões de vidas ao redor do mundo.

Figura 2. Maurício Oscar da Rocha e Silva com pesquisadores do Instituto Biológico
(Fonte: Centro de Memória / Instituto Biológico. Reprodução)
Reconhecimento e legado
Maurício Oscar da Rocha e Silva não apenas liderou uma descoberta revolucionária, como também formou uma geração de cientistas que ampliaram o impacto de sua pesquisa. Seu trabalho, reconhecido mundialmente, colocou a ciência brasileira em evidência e mostrou como o estudo da biodiversidade pode gerar benefícios globais. A descoberta da bradicinina e sua aplicação prática no captopril são um exemplo notável de como a ciência pode transformar conhecimento em inovação que salva vidas.