Pesquisas inovadoras e desafios do bioma ameaçado revelam o potencial medicinal e os impactos do desmatamento acelerado.
O Cerrado, uma das regiões de maior diversidade biológica do planeta, é também um vasto laboratório natural ainda pouco explorado cientificamente. Além de sua importância ecológica, esse bioma oferece um universo de possibilidades para a pesquisa e a inovação. Na Faculdade UnB Ceilândia (FCE), cientistas do Laboratório de Ciências Biológicas e Nanotecnologia (LCBNano), sob a liderança da professora Graziella Joanitti, vêm transformando essa riqueza natural em soluções para a saúde humana. Utilizando nanotecnologia, o grupo investiga as propriedades de óleos extraídos de plantas típicas do Cerrado, como pequi, buriti e andiroba, manipulando-os em escala nanométrica.
Apesar de sua importância, o Cerrado — segundo maior bioma brasileiro, com cerca de 2 milhões de km² — enfrenta sérios riscos. A vasta biodiversidade da região, que abriga milhares de espécies de plantas e animais, vem sendo ameaçada pela substituição de áreas nativas por monoculturas, especialmente soja.
Ameaças e contradições
A expansão agrícola é hoje o principal vetor da devastação do Cerrado. Uma ironia amarga, pois a própria agricultura depende da natureza para prosperar — precisa de polinizadores, controle biológico de pragas, solos férteis e recursos hídricos abundantes. Enquanto a ciência busca promover saúde e bem-estar, o Cerrado, que oferece mais de seis mil espécies vegetais e animais, sofre com o avanço do desmatamento.
“A flora do Cerrado, com raízes, cascas, óleos e folhas, é utilizada há séculos por povos indígenas e comunidades tradicionais para o tratamento de enfermidades.”
Segundo dados do Prodes Cerrado, entre agosto de 2022 e julho de 2023, mais de 11 mil km² de vegetação nativa foram perdidos, um aumento de 3% em relação ao ano anterior. Esse cenário é agravado pela ocupação desordenada e pelo uso intensivo da terra, comprometendo áreas críticas para a preservação da biodiversidade e dos recursos naturais.
O desmatamento afeta diretamente a qualidade do solo e a disponibilidade de água — elementos-chave para uma agricultura sustentável. Ao substituir a vegetação nativa por monoculturas, perdemos diversidade biológica, tornando o ecossistema mais suscetível a pragas, doenças e desequilíbrios ecológicos.
Saberes tradicionais e saúde
A flora do Cerrado, com raízes, cascas, óleos e folhas, é utilizada há séculos por povos indígenas e comunidades tradicionais para o tratamento de enfermidades. Esses saberes, transmitidos de geração em geração, ainda são pouco valorizados fora dessas comunidades, embora tenham enorme potencial terapêutico.
Um estudo de 2009, intitulado “Diversidade e uso de plantas medicinais por comunidades quilombolas Kalunga e urbanas no nordeste de Goiás”, da pesquisadora Natália Prado Massarotto, identificou 358 espécies nativas empregadas por essas populações para fins medicinais. A partir desses conhecimentos, foram desenvolvidos cerca de 90 remédios naturais — como chás, pomadas, tinturas, xaropes e garrafadas — produzidos com ingredientes coletados em áreas preservadas do bioma. Desde 2006, o governo federal reconhece oficialmente o uso de plantas medicinais como estratégia para melhorar a atenção à saúde, fortalecer a agricultura familiar e gerar renda de forma sustentável.

(Barbatimão. Foto: Eurico Zimbres. Reprodução)
As plantas medicinais do Cerrado contêm compostos bioativos como flavonoides, taninos e óleos essenciais, que apresentam propriedades curativas comprovadas. O barbatimão (Stryphnodendron adstringens) é conhecido por sua forte ação adstringente e cicatrizante, sendo tradicionalmente utilizado no tratamento de feridas, cortes, queimaduras, inflamações na pele, mucosas e sistema digestivo, além de infecções bacterianas, fúngicas e virais. Também é empregado em casos ginecológicos, como infecções vaginais, e no alívio de hemorroidas devido às suas propriedades anti-inflamatórias. Já o óleo de copaíba (Copaifera sp.), extraído do tronco da árvore, destaca-se pelo efeito anti-inflamatório e analgésico, sendo indicado para dores articulares, distúrbios respiratórios e cuidados com a pele — especialmente no controle da acne, regeneração de tecidos e combate a microrganismos.
A sucupira (Pterodon emarginatus / Pterodon pubescens), por sua vez, é amplamente usada para aliviar inflamações articulares, dores musculares e problemas respiratórios, graças à sua ação analgésica, antimicrobiana e antioxidante. A erva-baleeira (Cordia verbenacea) também é valorizada por suas propriedades anti-inflamatórias, cicatrizantes e expectorantes, sendo útil no tratamento de artrite, dores nas costas, bronquite e infecções de pele. Já a pimenta-de-macaco (Piper aduncum) é reconhecida por sua potente ação antimicrobiana e anti-inflamatória, sendo indicada no combate a bactérias, fungos, parasitas e em processos inflamatórios variados.

(Erva-baleeira. Foto: Marcia Stefani. Reprodução)
Pesquisa e resistência
É dentro desse cenário que a pesquisa científica vem se tornando um ponto de resistência. A diversidade de moléculas presentes nas plantas do Cerrado, produzidas para defender as espécies ou atrair polinizadores, pode ser a chave para o desenvolvimento de novos medicamentos, cosméticos e até combustíveis. Já foram isolados cerca de 100 mil compostos de plantas que são usados em diversos produtos. Esse universo invisível precisa ser protegido, pois agrega um valor imensurável à nossa biodiversidade.
“A diversidade de moléculas presentes nas plantas do Cerrado pode ser a chave para o desenvolvimento de novos medicamentos, cosméticos e até combustíveis.”
As pesquisas científicas que surgem no coração do Cerrado podem ser um ponto de virada para a preservação desse bioma. Iniciativas como o Programa Biota-FAPESP estão mapeando e isolando compostos químicos com potencial medicinal e biotecnológico, com a missão de preservar a biodiversidade e ao mesmo tempo impulsionar a inovação. Esses esforços, no entanto, não são suficientes se o desmatamento continuar a um ritmo alarmante. A união entre ciência e conservação ambiental é, portanto, uma das únicas formas de garantir que o Cerrado continue a ser um recurso sustentável para as futuras gerações.