Diagnósticos, tratamentos e pesquisas
Quando algo é tão pequeno que até mesmo as leis da física tradicional deixam de funcionar, entra em cena um conjunto especial de regras e princípios que é capaz de explicar a interação entre partículas menores que um átomo – a física quântica. Prestes a completar cem anos, essa área da ciência já é a base de diversas tecnologias bem conhecidas, como o GPS, as canetas laser e alguns dos componentes fundamentais para o funcionamento de chips e smartphones. No entanto, avanços recentes mostraram que os processos quânticos estão presentes de uma forma ainda mais íntima em nosso cotidiano, tendo efeito, inclusive, nas células que formam os organismos vivos. Essa percepção abriu caminho para a aplicação dos preceitos da física quântica em diversos níveis na área da saúde, desde a pesquisa clínica até a criação de terapias pouco invasivas e com efeitos colaterais reduzidos. A partir dessas ideias, a “medicina quântica” começa a dissolver as fronteiras entre a física e a medicina e transforma o modo como entendemos e tratamos o corpo humano.
Embora, popularmente, o nome “medicina quântica” já tenha sido associado a práticas sem respaldo científico, em laboratórios e centros de pesquisa, a expressão designa a aplicação legítima da física quântica na medicina, com foco em resultados mensuráveis e testáveis. Com essa abordagem, é possível observar e manipular reações que ocorrem no interior das células em escalas extremamente pequenas, revelando possibilidades antes invisíveis. “O indício de fenômenos quânticos ocorrendo em certos processos biológicos faz com que a gente veja a biologia por outra perspectiva”, diz Eveliny Nery, pesquisadora no departamento de Neurociência e Engenharia Biomédica da Universidade de Aalto, na Finlândia. “Enquanto a biologia quântica investiga se e como fenômenos quânticos podem persistir de forma relevante em organismos vivos, a medicina quântica procura utilizar tal conhecimento no tratamento de certas doenças, por exemplo”, aponta a pesquisadora. Em alguns casos, as promessas vão além. “Sensores baseados em efeitos quânticos deverão melhorar a detecção de doenças antes mesmo de elas mostrarem seus sintomas clínicos”, revela o físico Vanderlei Bagnato, do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica da Universidade de São Paulo (USP).
Física quântica, tecnologia e o diagnóstico de doenças
Ainda que essas ideias pareçam ter saído diretamente de um filme de ficção científica, muitas delas já estão em desenvolvimento e outras, como a ressonância magnética, fazem parte da rotina diária de hospitais e centros de pesquisa ao redor do planeta. Pedro Alvarez, mestre em Física pela Universidade de Campinas (Unicamp) e doutorando na Universidade de Oldenburg, na Alemanha, explica que o princípio por trás dessa tecnologia está em uma propriedade fundamental das partículas subatômicas, chamada spin. “Na ressonância magnética, usamos campos magnéticos extremamente fortes para manipular essa propriedade”, diz o pesquisador. Segundo ele, o spin faz com que átomos em tecidos que contêm água se comportem como pequenos ímãs e respondam à aplicação do campo magnético com um alinhamento de posição temporário. Ao interromper o campo, esses átomos voltam ao seu estado original, emitindo sinais que podem ser detectados e convertidos em imagens. “É assim que a ressonância magnética utiliza propriedades quânticas dos átomos para ver dentro do seu corpo sem nenhum risco à sua saúde”, complementa. (Figura 1)

Figura 1. Espectrômetro de Ressonância Magnética do Grupo de Pesquisa em Ressonância Magnética Nuclear de Proteínas
(Foto: Bianca Bosso)
Os conhecimentos de física quântica e ressonância magnética também têm sido utilizados para estudar proteínas humanas. Leonardo Tanaka, especialista em mecanobiologia, destacou os resultados de um dos trabalhos dessa linha de pesquisa no primeiro episódio da segunda temporada da websérie “Biologia Quântica na Medicina”, um projeto liderado pela Equipe Quantum Bio BR, da Ciência Pioneira, gravado em 2024. “Os autores analisaram uma assinatura [formada por proteínas] que é responsiva a campos magnéticos” destacou o pesquisador. “Essas proteínas têm uma fluorescência intrínseca (…), mas, quando você aplica um campo magnético de baixa intensidade (…), a fluorescência diminui”, afirma. Para ele, a descoberta cria espaço para o desenvolvimento de novos sensores biológicos ultraprecisos. “Você coloca uma célula para começar a expressar essa proteína e, depois, aplica um campo magnético para ver a fluorescência caindo”, previu e exemplificou Leonardo Tanaka.
Os sensores quânticos trazem resultados promissores há anos. No artigo “Magnetocardiografia em um coração animal isolado com um magnetômetro opticamente bombeado à temperatura ambiente”, publicado em 2018 na revista Scientific Reports, pesquisadores da Universidade de Copenhague demonstraram que as propriedades quânticas do vapor de césio podem ser empregadas para medir, de forma não invasiva, o sinal cardíaco de um feto. A técnica utilizada é baseada na medida dos sinais magnéticos emitidos pelo coração durante seu funcionamento e se mostrou capaz de fornecer resultados altamente precisos a uma distância equivalente à do coração do feto no útero materno. “Na física quântica, conseguimos medir frequências de oscilação com muita precisão”, explica Gabriel Landi, professor do Instituto de Física e coordenador do grupo de Termodinâmica Quântica e Transporte Quântico da USP. O pesquisador destaca que os sensores quânticos se baseiam nesse conceito. “Por exemplo, se colocamos um átomo na presença de um campo magnético, a energia dos elétrons oscila no tempo; essa oscilação é muito limpa, consegue ser medida com alta precisão e a frequência depende do campo magnético”, diz. A ideia pode ser empregada para identificar arritmias cardíacas antes do parto, o que pode facilitar a detecção de anomalias e diminuir os riscos para o bebê. (Figura 2)

Figura 2. As amostras são colocadas em tubos como esse (ou menores) e inseridas no topo do Espectrômetro de Ressonância Magnética
(Foto: Bianca Bosso)
Para além dos sensores, os conhecimentos da física quântica também podem ajudar a antecipar processos médicos. No terceiro episódio da websérie “Biologia Quântica na Medicina”, Débora Dummer Meira, especialista em oncologia molecular e genética do câncer, revelou que a união dessa área de pesquisa com a medicina pode ajudar a prever o desenvolvimento de doenças causadas por mutações genéticas, como alguns tipos de câncer, muito antes de seu surgimento. “A característica principal do câncer é o crescimento celular desordenado (…) causado por mutações genéticas que se alinham progressivamente no DNA da célula”, explicou. De acordo com a pesquisadora, observar esse fenômeno por uma perspectiva quântica pode ser essencial para desenvolver previsões matemáticas que ditem a possibilidade do surgimento do câncer, o que permitiria ações de prevenção ou a adoção de tratamentos mais rápidos e eficazes.
Lasers, luz e novos tratamentos para câncer e dor
Uma das principais contribuições da física quântica para o avanço das ciências foi a descoberta dos quanta, pequenos pacotes de energia que só podem ser emitidos ou absorvidos em unidades inteiras, nunca em frações. Isso significa que um material pode liberar um, dois, três ou mais quanta de energia, mas jamais um quantum e meio. Uma das principais formas de energia que funciona de maneira quantizada é a luz e os pacotes de energia transmitidos por ela são chamados de fótons. A descoberta de que a luz é quantizada permitiu que os conceitos da física quântica fossem empregados na criação de terapias que a utilizam como ferramenta de cura, nas quais o físico Vanderlei Bagnato é um dos pioneiros.
“Enquanto a biologia quântica investiga se e como fenômenos quânticos podem persistir de forma relevante em organismos vivos, a medicina quântica procura utilizar tal conhecimento no tratamento de certas doenças, por exemplo.”
O pesquisador, que também participou da websérie “Biologia Quântica na Medicina”, explicou, em entrevista ao portal G1, que seu trabalho busca entender como a luz modifica as reações biológicas. Esse conhecimento torna possível, por exemplo, induzir reações químicas nas células tumorais ou no interior das células bacterianas, provocando a morte do patógeno ou da estrutura com mutações prejudiciais. “A chamada terapia fotodinâmica tem muito a ver com eficiência quântica na transferência de energia de uma molécula para outras moléculas quando ela interage com a luz, inclusive o oxigênio, resultando na morte celular ou de bactérias”, aponta Vanderlei Bagnato.
O trabalho liderado por ele resultou em uma tecnologia inovadora capaz de tratar cânceres de pele do tipo não melanoma, oferecendo uma abordagem rápida e com menos efeitos colaterais do que os métodos tradicionais. “Esse negócio é tão poderoso que você vai vendo o tumor murchar em tempo real”, afirmou no terceiro episódio da websérie. O processo envolvido, chamado de oxidação fotoquímica, é comparado por Vanderlei Bagnato a uma espécie de queimadura química controlada. “Em 20 minutos, conseguimos resolver o problema de um tumor de pele ou de colo de útero”, celebrou. O equipamento desenvolvido por sua equipe, que utiliza lasers, já está disponível e é utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2023. “Estamos trabalhando para chegar o mais próximo de 100% com a eficiência dessas técnicas”, ressalta.
Os esforços do pesquisador também vão ao encontro do tratamento de doenças que causam dores crônicas, como a fibromialgia e a artrose. Pedro Alvarez ressalta que estratégias baseadas no uso de lasers também podem ser usadas para a criação de alternativas com esse objetivo. “É o caso de fotobiomodulação, em que lasers altamente precisos e calibrados individualmente são usados para estimular reações moleculares que produzem analgésicos diretamente nas células do paciente”, diz. Segundo o pesquisador, essa é apenas uma das abordagens que aproveitam o conhecimento sobre os processos quânticos para manipular as ferramentas já presentes no corpo, sem precisar prescrever medicamentos ao paciente.
Quântica e o “delivery” de medicamentos no organismo
Quando a doença está localizada em uma área restrita ou em uma estrutura específica do corpo, os princípios da física quântica também podem ser aplicados para direcionar o tratamento com alta precisão, tornando-o mais eficiente, menos invasivo e com menor impacto para o paciente. Na websérie “Biologia Quântica na Medicina”, Leonardo Tanaka trouxe à tona a possibilidade de usar proteínas responsivas a campos magnéticos para fazer o “delivery” direcionado de substâncias para os alvos desejados. A ideia se baseia no conceito de que essas proteínas sofrem uma alteração na conformação, ou seja, no formato, quando expostas a esses campos. Essa alteração cria um mecanismo de liberação em escala nanométrica. “Você conecta essas proteínas no fármaco que quer entregar em uma região específica (…) e ativa com um campo magnético para mudar a conformação e mandar esse fármaco para essa região”, descreveu o pesquisador.
“Muita gente ainda tem uma visão muito equivocada do que é a biologia e a medicina quântica, o que põe a área em risco de ser rotulada como pseudociência.”
A incorporação de outras tecnologias avançadas pode potencializar as vantagens desses minientregadores quânticos. No artigo “O papel dos pontos quânticos na análise farmacêutica e biomédica e sua aplicação na administração de medicamentos”, de 2020, pesquisadores da Turquia e do Irã relataram que o uso de invólucros, como metais nobres ou polímeros, tem potencial para aumentar o desempenho desses sistemas de entrega – baseados nos chamados pontos quânticos. A ideia funciona como uma cápsula: o envoltório protege e interage com o conteúdo, oferecendo benefícios adicionais. O estudo cita que pesquisas que adotaram essa abordagem observaram melhorias significativas, como maior contraste para visualização durante a aplicação do medicamento ou em técnicas diagnósticas, por exemplo.
Ciências quânticas e biologia molecular no estudo de causadores de doenças
Além de impulsionar a criação de novas estratégias para diagnosticar, prevenir e tratar doenças, os avanços da física quântica também ajudam a desvendar os mecanismos biológicos envolvidos no desenvolvimento de diversas condições – conhecimento que pode ser essencial para impedir que elas aconteçam. É o caso de um dos estudos realizados pela equipe de Roberto Kopke Salinas, pesquisador no Instituto de Química (IQ) da USP e no Centro de Pesquisas em Biologia de Bactérias e Bacteriófagos (CEPID B3), onde lidera o Grupo de Pesquisa em Ressonância Magnética Nuclear de Proteínas.
Em colaboração com cientistas do Instituto de Biociências (IB) da USP e com o Conselho Nacional de Pesquisa Italiano (CRN), o grupo une práticas de biofísica e biologia molecular para investigar uma proteína específica do parasita Leishmania amazonensis, causador da leishmaniose no Brasil. “Temos utilizado várias técnicas para entender a função dessa proteína; a ressonância magnética, por exemplo, tem sido usada para analisar as interações dela com possíveis ligantes”, explica o pesquisador. Uma das hipóteses é a de que a proteína estudada participe do mecanismo pelo qual o organismo infecta as células humanas. Se a ideia for comprovada, o trabalho pode contribuir para a formulação de táticas preventivas que poderiam reduzir a incidência da doença, que conta com cerca de 21 mil novos casos por ano apenas no Brasil.
Em outros estudos, a equipe também usa a ressonância magnética como ferramenta para compreender mecanismos envolvidos na secreção de substâncias por bactérias. “Nós estudamos o sistema de secreção do tipo IV em Xanthomonas citri, uma bactéria que infecta plantas; mas esse mesmo sistema está envolvido na patogenicidade de outras espécies que infectam humanos”, destaca. Ele cita o exemplo da Helicobacter pylori, que tem a capacidade de causar câncer no estômago e utiliza o sistema de secreção do tipo IV para liberar toxinas no organismo do hospedeiro.
Charlatanismo quântico e perspectivas
Ainda que o potencial do uso das ciências quânticas no avanço da medicina seja genuíno, o termo “medicina quântica” ainda aparece mesclado com conceitos que têm pouco ou nenhum embasamento científico. “Pessoas, às vezes, bem intencionadas, porém leigas, e, às vezes, mal intencionadas, usam esses termos para vender tratamentos quase milagrosos e que, no melhor dos casos, não surtem efeitos, e, no pior dos casos, podem ferir gravemente alguém”, explica Pedro Alvarez. Eveliny Nery concorda: “muita gente ainda tem uma visão muito equivocada do que é a biologia e a medicina quântica, o que põe a área em risco de ser rotulada como pseudociência”, acrescenta. O fenômeno de promover práticas e crenças que não têm suporte científico sob o véu do “quântico” leva o nome de “charlatanismo quântico” e, embora se misture, nas ferramentas de pesquisa, com trabalhos na área da saúde que envolvem conceitos quânticos reais, tem métodos e objetivos bem diferentes.
Para que uma técnica ou ideia seja reconhecida como confiável na ciência, ela precisa passar pelo chamado método científico. Isso significa que especialistas fazem perguntas, criam hipóteses, testam, analisam e reproduzem os experimentos. Quando esses processos são ignorados, não é possível afirmar que uma hipótese tem base em evidências – e é isso o que acontece, por vezes, com as terapias quânticas pseudocientíficas promovidas sem qualquer teste clínico, validação científica ou aprovação por órgãos de saúde. Pedro Alvarez alerta que é preciso atenção redobrada para prevenir incidentes. “Recomendo cuidado com tratamentos que parecem mais fáceis, especialmente se tiverem o nome “quântico” bem na frente. Se busca algum tipo de tratamento ou complemento, sempre fale com um médico antes”, defende.
“A física quântica já tem cem anos de vida, mas, antigamente nós não tínhamos tanto controle sobre as propriedades quânticas.”
Apesar do desafio de diferenciar as abordagens e reforçar a confiança em pesquisas sérias, as ciências quânticas seguem evoluindo e têm nos horizontes possibilidades ainda mais inovadoras. “A segunda revolução das ciências quânticas já está ocorrendo e se trata da aplicação de conceitos fundamentais da mecânica quântica à engenharia e outras áreas do conhecimento”, diz Pedro Alvarez. Ele destaca que dois dos protagonistas dessa nova era devem ser os computadores quânticos e os já conhecidos sensores quânticos. “Os sensores quânticos já vêm mostrando seu potencial e os computadores quânticos ainda são jovens, mas sua principal aplicação futura, a meu ver, é na simulação de reações químicas que nos permitirão uma precisão muito maior ao simular interações”. Para Gabriel Landi, a palavra-chave para definir o novo período é “controle”. “A física quântica já tem cem anos de vida, mas, antigamente, nós não tínhamos tanto controle sobre as propriedades quânticas”. Segundo o pesquisador, a ideia é que, com alto nível de controle, seja possível realizar tarefas que antes eram impossíveis, como sistemas de computação e comunicação avançados.
Com essas perspectivas em mente, pesquisadores brasileiros buscam seguir o exemplo de pioneirismo de Vanderlei Bagnato com a Escola de Biologia Quântica, a primeira iniciativa do modelo no país, que está prevista para acontecer em pleno Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas, 2025. O evento será realizado na cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, entre os dias 11 e 15 de agosto, e pretende reunir alunos e palestrantes de diversas instituições para discutir fundamentos e o futuro da área. Os diálogos deste encontro podem ser fundamentais para encaminhar a física quântica para o futuro previsto por Vanderlei Bagnato: “vamos viver, de fato, uma nova era quântica”.