Desafios e inovações no Brasil para democratizar o conhecimento
O futuro da ciência não está apenas na produção de conhecimento, mas em como ele é compartilhado — e o software (aberto ou não), além de fazer parte do conhecimento produzido, permite a produção de mais conhecimento, sendo um dos eixos-chave da ciência aberta (com publicações, dados e hardware). Em um mundo cada vez mais interconectado, onde a ciência desempenha papel crucial na solução de desafios globais, o software desponta como uma ferramenta essencial para democratizar a produção do conhecimento. A filosofia do software aberto permite acesso, reuso, adaptação e colaboração, abrindo caminhos para uma ciência mais inclusiva, transparente e alinhada às necessidades da sociedade.
A ciência aberta tem ganhado força como um movimento que busca ampliar a transparência e a acessibilidade na produção de conhecimento. Nesse cenário, o software se destaca por eliminar barreiras impostas por licenças proprietárias e oferecer maior controle, segurança e flexibilidade. “Não existe evolução na ciência sem compartilhamento de conhecimento, que é um dos principais fundamentos do software livre”, afirma Ana Cristina Fricke Matte, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Associação de Software Livre (ASL.org) e do grupo de Ciência Aberta do Brasil.
Além disso, o software é a base de boa parte do ecossistema tecnológico moderno. Estima-se que serviços livres e de código aberto são parte de cerca de 80% a 90% de qualquer software moderno (inclusive os softwares fechados e proprietários), como bibliotecas, frameworks e plataformas, de acordo com estimativas da Linux Foundation. Essa transparência aumenta a confiabilidade e oferece oportunidades para personalizações que atendam às necessidades de diferentes áreas do conhecimento, promovendo inovação colaborativa.
“Não existe evolução na ciência sem compartilhamento de conhecimento, que é um dos principais fundamentos do software livre.”
Apesar de seu potencial transformador, o desenvolvimento e a adoção de software livre ou de código aberto na ciência brasileira enfrentam entraves. A falta de infraestrutura tecnológica, capacitação técnica e políticas públicas são obstáculos significativos. Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP e ex-diretor internacional da Open Source Initiative, e Nelson Lago, pesquisador do Instituto de Matemática e Estatística da USP, destacam que superar essas barreiras é crucial para minimizar desigualdades. “O acesso às técnicas computacionais e científicas é essencial para evitar uma separação entre os ‘letrados’ e ‘não-letrados’ em ciência e tecnologia”, explicam. Para eles, a adoção de ferramentas livres também ajuda a desmistificar áreas como a inteligência artificial. Tecnologias como Llama e PyTorch tornam conceitos complexos mais acessíveis, favorecendo o diálogo entre cientistas, mídia e a população, além de estimular o engajamento em projetos de ciência cidadã.
Produção de conhecimento
A ciência moderna seria inimaginável sem o uso de software. Seja para analisar dados, simular experimentos, ou criar ferramentas colaborativas, os programas de computador são cruciais em praticamente todas as áreas do conhecimento, de matemática e física a ciências humanas e sociais. O software não é apenas uma ferramenta; ele pode ser o próprio objeto de estudo. Diversos projetos de pesquisa no mundo estão focados em desenvolver e melhorar códigos, consolidando o software como um produto científico essencial. Entretanto, a importância do software na pesquisa ainda é subvalorizada, e seu papel como produto científico merece maior reconhecimento.
O movimento por software livre e de código aberto está intrinsecamente ligado à ciência aberta. Essa abordagem promove a reprodutibilidade e a transparência, pilares fundamentais da ciência. Como destaca a Research Software Alliance (ReSA), “o software desenvolvido durante a pesquisa deve ser reconhecido e valorizado como elemento vital para o avanço científico”. A ReSA, uma organização multinacional, coordena esforços para melhorar a produtividade, qualidade e sustentabilidade do software científico, facilitando colaborações globais e otimizando recursos.
A utilização de software aberto não apenas democratiza o acesso à tecnologia, mas também reduz custos e viabiliza pesquisas em regiões com menos recursos. Além disso, compartilhar códigos permite que outros pesquisadores reproduzam e validem os resultados, fortalecendo a confiança e acelerando o progresso científico. Para que os resultados de uma pesquisa sejam confiáveis, eles precisam ser reprodutíveis. Isso significa que outros cientistas devem ser capazes de chegar aos mesmos resultados utilizando os mesmos dados, métodos e condições.
O compartilhamento de software também facilita a reutilização. Quando o código é documentado e publicado de forma aberta, ele pode ser compreendido, modificado e ampliado por outros pesquisadores, evitando a duplicação de esforços. Essa prática fortalece a replicabilidade, que se refere à obtenção de resultados consistentes ao investigar a mesma questão científica com dados ou métodos independentes.
“O software livre nos coloca na linha de frente da ciência, mesmo com menos recursos financeiros do que países estrangeiros.”
Embora o software aberto traga benefícios evidentes, como maior transparência e colaboração, ainda existem desafios culturais e técnicos. É necessário criar ferramentas acessíveis e promover uma mudança de mentalidade, em que a abertura seja a norma e os resultados de outros possam ser facilmente verificados. Licenças de código aberto, como as permissivas (MIT e Apache) ou as que exigem a manutenção da abertura em derivações (GPL), permitem flexibilidade aos desenvolvedores, preservando direitos autorais e possibilitando futura comercialização. “Desenvolver software é ciência”, reforça a ReSA. “Exige conhecimento técnico profundo e colaboração ativa.”
A Organização das Nações Unidas (ONU) também reconhece o papel do software aberto em contextos mais amplos. Para a ONU, “o termo código aberto vai além do software, incluindo dados, padrões e modelos de IA licenciados abertamente, promovendo sistemas acessíveis com grande potencial para avançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”.
Iniciativas no Brasil
As políticas públicas e iniciativas voltadas para o uso de software livre ou de código aberto no Brasil têm sido fundamentais para promover a soberania tecnológica, democratizar o acesso às tecnologias digitais e reduzir desigualdades regionais. Programas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Capes incentivam o desenvolvimento de soluções abertas em projetos acadêmicos e de pesquisa. Nesse cenário, o Centro de Competência em Software Livre (CCSL), do Instituto de Matemática e Estatística da USP, destaca-se como um importante núcleo de inovação. Além de possuir uma série de parcerias internacionais em software livre, o CCSL desenvolve projetos como o InterSCity que divulga os resultados de sua pesquisa científica não apenas via artigos científicos, mas também por meio de produtos de software livre inovadores. (Figura 1)

Figura 1. Políticas de software livre promovem soberania tecnológica e reduzem desigualdades; o CCSL da USP é referência em inovação.
(Foto: CCSL-USP. Reprodução)
No setor público, soluções como o I-Educar, para gestão escolar, e o CACIC, que diagnostica o parque computacional federal, demonstram como o software livre ou de código aberto pode aumentar a eficiência administrativa e reduzir custos. Na área da saúde, ferramentas do InterSCity Health como o HealthDashboard e o Dashboard de Regionalização do SUS oferecem aos gestores públicos a capacidade de analisar milhões de dados de saúde com uma grande agilidade por meio de ferramentas de visualização interativas.
Entre os principais softwares brasileiros de código aberto destaca-se a linguagem Lua, desenvolvida na PUC-Rio e reconhecida como uma das 100 mais utilizadas globalmente. Criada em 1993, Lua é amplamente aplicada em simulações, computação gráfica e desenvolvimento de jogos, além de integrar produtos como Adobe Photoshop Lightroom e o middleware Ginga. Roberto Ierusalimschy, professor do Departamento de Informática da PUC-Rio e co-criador da linguagem, ressalta sua relevância para pesquisa e mercado: “Várias técnicas de programação surgem dentro das linguagens e vice-versa. Estudar linguagens de programação de forma organizada e consciente é essencial tanto para programadores experientes quanto para quem está entrando no mercado.”
Outro destaque brasileiro é o conjunto de módulos TerraLib, criado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), utilizado no processamento de dados geográficos e no monitoramento ambiental. A biblioteca TerraLib, que estende sistemas de banco de dados para lidar com informações espaço-temporais, deu origem a ferramentas como o TerraView, para análise de dados espaciais, e o TerraAmazon, usado no monitoramento do desmatamento na Amazônia. Antonio Miguel Vieira Monteiro, chefe da Divisão de Processamento de Imagens do Inpe, explica: “Esses softwares possibilitam o uso gratuito de dados espaciais em diversos setores, de segurança pública a gestão urbana, promovendo avanços com o estado da arte em tecnologia e análise.”
Ferramentas de código aberto amplamente utilizadas na ciência brasileira, como R, Python, LaTeX e LibreOffice, também desempenham papel crucial ao eliminar barreiras financeiras e promover a autonomia tecnológica. “Essas ferramentas oferecem qualidade e versatilidade para atividades como análise de dados e produção de artigos, eliminando barreiras como custos ou dependência de equipamentos específicos”, destaca Fabio Kon. Ele aponta que o uso dessas tecnologias permite que pesquisadores brasileiros acessem ferramentas de ponta mesmo em centros de pesquisa com recursos limitados. Em áreas como computação de alto desempenho e computação em nuvem, o uso de softwares livres — Linux, Docker, linguagens de programação e bibliotecas científicas — já é considerado padrão. Além disso, há vários softwares específicos que incorporam avanços científicos e atendem a necessidades particulares de diversas áreas do conhecimento — como, por exemplo, na genômica.
No entanto, desafios permanecem. A resistência cultural às mudanças trazidas pela ciência aberta e a falta de investimentos direcionados limitam o avanço do software livre ou de código aberto nacional. Fabio Kon e Nelson Lago ressaltam que superar essas barreiras é fundamental para evitar a dependência de soluções comerciais que dificultam a autonomia científica. Ana Cristina Matte acrescenta que, embora o código aberto represente um avanço significativo, ele ainda deixa em segundo plano questões sociais importantes. “Ao dar acesso ao código, o cientista pode compreender como os dados são trabalhados. No entanto, ao ignorar aspectos como uso, cópia e desenvolvimento de softwares derivados, o modelo se torna mais relevante para a indústria, o que é ótimo, mas insuficiente para uma ciência realmente inclusiva e transformadora”, pondera.
“A ciência só evolui com o compartilhamento de conhecimentos diversos, e a educação, por definição, é o espaço onde isso pode florescer.”
Especialistas defendem estratégias para ampliar o uso do software livre ou aberto, como políticas fiscais para empresas que utilizem ou desenvolvam código aberto, capacitação técnica e a inclusão do tema no currículo escolar. Apesar do potencial do software livre ou aberto como princípio para garantir soberania, livre concorrência e redução das desigualdades regionais, esse potencial permanece subaproveitado. Soluções proprietárias dominam muitos setores, gerando custos elevados e restringindo a autonomia tecnológica. Para superar esses desafios, especialistas apontam caminhos estratégicos. “Os órgãos de fomento à pesquisa ainda são tímidos ao exigir que os projetos financiados disponibilizem o software produzido como livre”, destaca Fabio Kon. Políticas fiscais para empresas que desenvolvam ou utilizem código aberto, além de capacitação técnica para servidores públicos e inclusão do tema no currículo escolar, podem ser uma solução, sugere Ana Cristina Matte. “A computação não pode ser pensada como disciplina extra; dependemos dela para tudo. É fundamental que faça parte do Ensino Básico, assim como a lógica e a matemática”, defende a pesquisadora.
Campanhas de conscientização sobre os benefícios do software livre ou de código aberto podem acelerar sua aceitação no setor público e privado. Conferências, eventos e hackathons, além de programas de mentoria, ajudam a demonstrar casos de sucesso e a fomentar redes colaborativas de desenvolvedores. Além disso, o Brasil já conta com uma base sólida de desenvolvedores que contribuem para comunidades globais, como a do Moodle, e criam soluções competitivas internacionalmente. Contudo, há resistência cultural ao software livre ou aberto, em parte devido à propaganda de grandes corporações proprietárias. “É uma questão de qualidade e agilidade na pesquisa. O software livre nos coloca na linha de frente da ciência, mesmo com menos recursos financeiros do que países estrangeiros”, reforça Ana Cristina Matte, que defende que a promoção deste software deve ser encarada como uma política estratégica para o desenvolvimento sustentável do Brasil, que fortalece a autonomia do país, gera oportunidades econômicas e sociais e posiciona o Brasil como líder global em soluções colaborativas e acessíveis.
Acesso à educação
O software de código aberto representa um poderoso instrumento para transformar a educação em regiões periféricas e rurais do Brasil, além de integrar comunidades historicamente marginalizadas, como indígenas e quilombolas, ao universo científico. Sua gratuidade e flexibilidade eliminam barreiras financeiras, permitindo que escolas e projetos comunitários adotem ferramentas tecnológicas mesmo em contextos de recursos limitados. Assim, o software livre ou de código aberto democratiza o acesso ao conhecimento e fortalece iniciativas que promovem inclusão social.
Para jovens em regiões remotas, projetos que ensinam programação e desenvolvimento de sistemas com base em softwares livres ou abertos abrem portas para o mercado de tecnologia, um dos setores mais dinâmicos globalmente. No ensino fundamental e médio, essas ferramentas contribuem para reduzir desigualdades educacionais, desde que acompanhadas de infraestrutura adequada, profissionais capacitados e políticas de incentivo à permanência escolar. “O software livre reduz custos para escolas e alunos, já que programas essenciais, como Linux, LibreOffice e alguns navegadores, podem ser instalados e atualizados facilmente, mesmo em computadores obsoletos. Isso facilita a reutilização de equipamentos e amplia o acesso a ferramentas tecnológicas”, destaca Nelson Lago.
No ensino superior, o impacto do uso do software livre é ainda mais abrangente. Ele possibilita o ensino à distância, o acesso a cursos especializados e o desenvolvimento de pesquisas colaborativas. Além disso, fomenta a ciência aberta, essencial para que jovens pesquisadores possam reproduzir, analisar e criticar estudos de qualquer lugar do mundo. “O acesso a dados abertos e ao software necessário para processá-los permite recontextualizar pesquisas para as especificidades de comunidades diversas, ampliando a aplicabilidade de estudos e fortalecendo a inclusão científica”, explica Fábio Kon.
Para comunidades indígenas e quilombolas, o software de código aberto viabiliza soluções que respeitam suas especificidades culturais e linguísticas. Ferramentas como plataformas de aprendizado podem ser adaptadas para incluir idiomas tradicionais e conteúdos que preservem suas histórias e conhecimentos. Essa abordagem não apenas promove a inclusão digital, mas valoriza o patrimônio cultural. “As comunidades mais isoladas enfrentam barreiras de acesso à tecnologia educacional, além de um contexto de desvalorização da educação específica, como ocorre na Educação do Campo”, pontua Ana Cristina Matte. Segundo a pesquisadora, este software oferece soluções leves, compatíveis com celulares básicos e funcionais mesmo em redes de internet deficitárias. “Além disso, comunidades brasileiras de software livre já desenvolveram tecnologias para melhorar o acesso à internet via redes locais integradas, assim como ferramentas para a produção de equipamentos a partir de tecnologias abertas”, afirma. (Figura 2)

Figura 2. Software de código aberto transforma a educação e integra comunidades marginalizadas ao universo científico.
(Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)
O uso de software livre ou de código aberto também fomenta uma ciência mais inclusiva ao incentivar a participação ativa de comunidades locais em projetos científicos. Ferramentas colaborativas permitem que moradores monitorem seus territórios, coletem dados sobre biodiversidade e mudanças climáticas e contribuam diretamente para pesquisas. Essa abordagem promove o diálogo entre o conhecimento local e a ciência formal. “Precisamos pensar a ciência de forma cidadã, incluindo a visão de mundo de comunidades excluídas, como quilombolas e indígenas, assim como de outros grupos marginalizados. A ciência só evolui com o compartilhamento de conhecimentos diversos, e a educação, por definição, é o espaço onde isso pode florescer”, enfatiza Ana Cristina Matte.
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