Enfoques instrumental, filosófico e especulativo: uma análise crítica das interpretações
A Física Quântica se consolidou em 1926 como a teoria que descreve átomos, moléculas, suas interações mútuas e suas interações com diferentes formas de radiação. Também conhecida como Mecânica Quântica ou Teoria Quântica, este novo paradigma passou a ter um imenso sucesso, gerando extensões e aplicações nos mais diversos campos da Física.[1]
No presente texto, considerarei três enfoques dados à Teoria Quântica. O primeiro é o enfoque científico instrumental, que designa como os físicos e outros cientistas utilizam o formalismo e realizam experimentos, consolidando o aspecto objetivo da teoria. O segundo é o enfoque filosófico, que explora questões de interpretação da teoria, ou seja, questões que geralmente vão além daquilo que se pode testar experimentalmente. O terceiro é o enfoque místico-quântico, que usa teses filosóficas a respeito da Mecânica Quântica e às vezes experimentos controvertidos, para defender uma ligação íntima entre a mente humana ou a alma humana e os princípios da Física Quântica.
O misticismo quântico é um tema polêmico entre cientistas porque suas afirmações não têm fundamento experimental reconhecido pela comunidade científica, mas mesmo assim são bastante divulgadas pela mídia, sendo usadas por muitos para obter lucro em cima da ignorância dos consumidores ou dos seguidores. O combate feito por cientistas que se autodenominam “céticos científicos” (céticos em relação às teses místicas e parapsicológicas) é um movimento bastante importante,[2] mas que muitas vezes adota simplificações e uma atitude agressiva que acaba dificultando a obtenção das metas almejadas.
Em texto publicado em 2010, explorei diversos aspectos do fenômeno cultural do misticismo quântico.[3] Argumentei que o misticismo quântico faz parte de uma longa tradição científica, que chamei de “naturalismo animista”, que no passado tinha uma posição mais central na ciência, mas que hoje em dia está relegada à periferia da ciência estabelecida (onde ocorre a divulgação científica), sendo que hoje a maioria dos cientistas pode ser classificada como materialista ou positivista. Apresentei também uma lista de 19 teses que podem ser adotadas por visões místico-quânticas. Explorei a questão ética de como a ciência estabelecida, de cunho não-místico, deve dialogar com o misticismo quântico, apresentando cinco atitudes possíveis. Formulei também o dilema que todo místico deve resolver: ou adotar uma atitude conciliadora, ou uma atitude desafiadora com relação à ciência estabelecida.
Analisei também um típico argumento místico-quântico, conhecido como “lei da atração”, que aparece no livro “O segredo”.[4] Esta tese pode ser reconstruída da seguinte maneira:
Ao entrar em contato com outras pessoas ou ambientes, nossa mente pode entrar em um “emaranhamento quântico” com essas outras mentes ou até com objetos. Mesmo após a separação, o estado emaranhado permanece. Podemos então efetuar uma medição quântica e com isso provocar um colapso não-local da onda quântica emaranhada. O resultado disso é a transformação do estado da outra pessoa ou do ambiente. Dado que na física quântica o observador pode escolher se o fenômeno observado será onda ou partícula, podemos também escolher se o colapso quântico será associado a uma energia-chi positiva ou negativa. Para isso, é preciso treinar as técnicas de pensamento positivo, divulgadas em diversos livros de autoajuda quântica. Uma vez que esse segredo é aprendido, pode-se utilizar o pensamento para alterar diretamente a realidade, mesmo à distância, e assim transformar o mundo de uma maneira positiva para nós.[5]
A análise feita do argumento faz uma separação de cinco teses. Dessas, uma é aceitável e outra é uma tese interpretativa que não se consegue falsear: o colapso quântico é causado pela tomada de consciência do observador. Apesar de esta tese ser pouco aceita entre cientistas, é preciso ter tolerância filosófica em relação a ela. Uma terceira tese é a afirmação empírica, não muito bem aceita, de que o cérebro humano (ou a consciência humana) é essencialmente quântica. Até aqui, essas três teses mencionadas podem ser aceitas como parte de um argumento; o problema está com as outras duas afirmações.
“O misticismo quântico é um tema polêmico entre cientistas porque suas afirmações não têm fundamento experimental reconhecido pela comunidade científica.”
Esse tipo de exercício de análise é uma maneira de combater os abusos do misticismo quântico, “desafiador” da ciência, e em sala de aula é uma boa oportunidade para ensinar elementos de Física Quântica para os alunos. Sobre outros problemas do debate com o misticismo quântico, remeto o leitor aos dois artigos mencionados.
Quando o termo “quântico” é invocado em diferentes contextos culturais, busca-se fundamentar uma prática cultural, sugerindo que ela se baseia em uma ciência bem estabelecida. Isso é geralmente rejeitado por físicos e físicas, e muitas vezes os usuários do termo nem entendem muito bem a Física Quântica. O que eles querem então dizer ao usar o termo “quântico”? Parece-me que há duas ideias associadas a este termo no imaginário popular, por exemplo, ao se falar numa “empresa quântica” ou em “tantra quântico”. 1) Holismo: o todo não se reduz às partes separadas. 2) Pensamento mágico: o pensamento positivo pode transformar diretamente a realidade.
Estamos usando o termo “misticismo quântico” para designar as propostas de estender a Mecânica Quântica para além dos domínios da Física, fazendo conexões com a mente humana ou com sua espiritualidade. Porém, muitos que adotam essa proposta consideram o termo “misticismo” pejorativo. Haveria um termo mais apropriado?
Comecemos com a definição de “misticismo”. O “Dicionário de Filosofia” de Abbagnano [6] define misticismo como toda doutrina que postula uma comunicação direta entre o homem e Deus. Por exemplo, no século XII, Bernardo de Claraval defendeu o caminho “místico” contra a filosofia e, em geral, contra o uso da razão. O chamado “misticismo” passou a designar um modo de conhecimento não racional, que podemos chamar de intuição, e que no Cristianismo culmina na “contemplação” do divino. No século XIV alemão, Meister Eckhart e outros místicos voltaram a criticar o uso da razão no campo da religião. A frase de Eckhart, “Deus e eu, somos um”, exprimia a experiência mística da dissolução do eu (a dissolução da distinção sujeito-objeto). Autores como Ninian Smart, em seu “World philosophies”,[7] apontam semelhanças entre esta cosmovisão e a do hinduísmo do Advaita Vedanta. Claramente, a definição de misticismo se aplica bem para as correntes orientais do Hinduísmo, Budismo e Taoísmo, além da Cabala judaica, do Sufismo islâmico, etc.
O termo “misticismo quântico” parece ressurgido a partir das comparações entre a Física de Partículas e o misticismo oriental, exploradas por Fritjof Capra no seu “O Tao da Física” (1975),[8] mas as comparações com o misticismo oriental já tinham sido sugeridas antes por alguns pioneiros da Física Quântica.[9] O termo passou a ser adotado por críticos do movimento, sugerindo que haja aqui uma “mistificação”, que pode ser definida como uma interpretação obscura, tendenciosa ou falsa. Talvez seja por essa conotação negativa que o termo “misticismo” não é apreciado por parte dos defensores de uma espiritualidade quântica.
“A sala de aula é uma boa oportunidade para ensinar elementos de Física Quântica para os alunos.”
Para sermos rigorosos, então, parece que o termo “misticismo quântico” deve se referir somente às visões que aceitam que haja um conhecimento intuitivo, não-racional e não-científico a respeito de dimensões espirituais ou transcendentais da realidade, e que defendem que esse conhecimento primordial tem conexões com a Física Quântica.
Uma visão distinta defenderia uma abordagem mais racional à questão das ligações entre espiritualidade e Física Quântica. De fato, há muitos pesquisadores que procuram adotar uma postura que se poderia chamar “científica”, especulando sobre a natureza da espiritualidade e lançando hipóteses sobre as possíveis conexões com a Física Quântica.[10] Naturalmente, não se trata de teorias bem confirmadas, mas somente de ideias na busca por uma compreensão da consciência humana, ideias essas articuladas racionalmente, e onde as intuições não são consideradas uma forma de conhecimento pré-científico seguro, mas somente como hipóteses de trabalho. Neste caso, o termo “misticismo quântico” não se aplicaria corretamente. Como caracterizar então semelhantes abordagens?
O termo que parece mais interessante e amplo é “espiritualismo”, que tem uma acepção geral que se refere à crença na existência de seres imateriais, como Deus e almas imortais. Trata-se da antítese do materialismo, que considera que a alma ou consciência são frutos da matéria organizada em animais, e que desaparecem na morte do corpo. Há diversas acepções mais restritas de “espiritualismo”, todas contidas na acepção geral.
“Quando o termo ‘quântico’ é invocado em diferentes contextos culturais, busca-se fundamentar uma prática cultural sugerindo que ela se baseia em uma ciência bem estabelecida.”
Assim, definimos uma classe de visões de mundo que chamaremos “espiritualidade quântica”, ou “espiritualismo quântico”, e que englobaria tanto o misticismo quântico quanto um “naturalismo espiritualista quântico”, sendo que este é mais próximo da ciência e da filosofia analítica. Por outro lado, há a posição que nega o espiritualismo, mas defende uma conexão entre mente e Física Quântica: como denominar esta posição materialista? Usarei o termo “neuroquantologia”, que é o título de um periódico internacional sediado na Turquia, para designar as visões que consideram que a Física Quântica é essencial para explicar ou descrever a alma ou a consciência. Assim, a terceira posição mencionada acima seria uma “neuroquantologia materialista”.
A Figura 1 representa esta classificação.[11] O círculo externo engloba todas as concepções que se preocupam com o espírito, a alma, a mente ou a consciência humana. O círculo interno inclui as posições que chamamos neuroquantologia, e fora deste círculo interno, no anel entre os dois círculos, há materialistas e espiritualistas que negam que a Física Quântica desempenhe um papel essencial na consciência (negam a neuroquantologia). No círculo neuroquantológico há as três posições descritas acima, divididas pelos eixos horizontal e vertical. O eixo vertical divide as concepções materialista (à esquerda) e espiritualista (à direita). O eixo horizontal divide as visões místicas (abaixo) e a que chamaremos naturalista (acima). Assim, definimos o misticismo quântico (uma forma de espiritualismo), o naturalismo espiritualista quântico e a neuroquantologia materialista. Aparentemente, não há materialistas místicos quânticos, e mesmo uma posição materialista mística geral parece difícil de articular. Está claro que uma mesma pessoa pode ter diferentes visões em diferentes ocasiões, ou defender uma mistura entre essas posições. A finalidade do diagrama é ajudar-nos a definir os conceitos filosóficos, e não classificar as opiniões das pessoas de maneira rígida.

Figura 1. Representação imagética de diferentes posições filosóficas na discussão sobre a relação entre a Física Quântica e a mente ou espiritualidade.
(Fonte: Produção do autor)
O que chamei acima de “naturalismo animista” identifica-se com o que agora estou denominando naturalismo espiritualista. “Animismo” é a crença, comum a povos rudimentares, de que as coisas naturais são todas animadas, ou seja, que elas todas têm alma. Na antropologia, segundo Abbagnano, houve uma discussão de se o ser humano de um povo rudimentar se interessava em explicar os acontecimentos pela ação de forças animadas (o animismo), ou se ele se voltava para a caça, a pesca e suas festividades, usando a “magia” (sem querer explicar nada). A magia é uma atividade prática, que procura dominar as forças naturais com os mesmos procedimentos com que se sujeitam os seres animados.
Um último termo a ser considerado é “ocultismo”, usado por Patrick Grim no título de sua excelente coletânea, “Philosophy of science and the occult”.[12] Trata-se da crença em fenômenos que se julgam produzidos por forças ocultas, estando associado à magia, astrologia, parapsicologia, etc. Grim considera que este termo é mais neutro do que “pseudociência”, que é pejorativo, e mais amplo do que “paranormalidade”, que tende a se restringir à parapsicologia.